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Passos N.168, Abril 2015

VENEZUELA

Quem ousa esperar?

por Mauro Pianta*

Em um ano foram 25 mil mortes. A falta de comida e remédios; o petróleo em baixa e a repreensão política. O país sul-americano está nas trevas de uma das suas crises mais difíceis. No entanto, a coisa mais frágil não desmorona

O engenheiro Alejandro Marius, venezuelano por decisão, como ele mesmo diz, abandonou há alguns anos seu trabalho em grandes empresas para se dedicar ao empreendedorismo social. Fundou e é o atual presidente da Associação “Trabalho e Pessoa”, que se dedica a projetos de educação para o trabalho.
Com a morte de Chávez em 2013, e com a chegada de Nicolás Maduro, a situação no país mudou pouco. Os dados oficiais da Venezuela, hoje, falam claro: a inflação chegou a 64%, o PIB diminuiu em 2,8%, o preço do petróleo caiu de 100 dólares para 38 dólares por barril. O resultado é notável: o país, onde muitas empresas agrícolas e comerciais foram expropriadas, sem dinheiro para comprar produtos, incluindo gêneros de primeira necessidade, que eram anteriormente adquiridos no exterior. Por eles, as pessoas fazem filas enormes do lado de fora dos supermercados, mas as prateleiras estão quase sempre vazias. E surge a violência, confrontos que têm causado tanto sofrimento. Segundo as estatísticas, fala-se de um morto a cada meia hora. E Maduro responde com a prisão para os dissidentes políticos. O perigo de que o país caia no caos é muito alto.
Na entrevista a seguir, Alejandro mostra como a experiência do encontro com Cristo educa um povo a viver, construir e ter esperança mesmo numa realidade tão dura.

Então, Alejandro, o que significa viver num lugar como este?
A Venezuela está vivendo uma das piores crises de sua história. Os especialistas é que podem oferecer os dados no âmbito da saúde, da economia e da segurança pública. O que eu vivo é que nos últimos anos tivemos desvalorização da moeda, e a inflação, mesmo pelos dados oficiais, é uma das mais altas do mundo (nos últimos dois anos foi mais de 50%) e com preços controlados dos produtos básicos. Além disso, temos escassez de produtos – entre os mais críticos, alimentos e remédios. As filas de gente frente aos mercados e farmácias de todo o país são algo desumano. Por necessidade do meu trabalho, estive num povoado no interior e vi dois grupos de mulheres carregando seus filhos e a certidão de nascimento deles para ir comprar fraldas. A escassez também gera mais especulação e mercado negro. Há pessoas que entram nas filas para conseguir alimentos pelo preço oficial e logo os revendem a preços abusivos, e com isso ganham o dobro do salário mínimo. Isso já é considerado um emprego. A produtividade nacional caiu, nos últimos quinze anos, de uma maneira importante e agora quase tudo é importado, e quem controla a compra e venda de dólares é o governo. No ano de 1998, antes que Chávez assumisse o poder, me lembro da inflação e também tínhamos petróleo a preço baixo (menos de dez dólares o barril), mas o povo encontrava comida e remédios.

Em todos esses anos de “socialismo do século XXI”, como viveram os católicos? Como o Estado trata suas obras sociais?
A maioria do povo venezuelano é católica, com um componente de religiosidade importante, mas vive-se de um modo um tanto dualista, entre a religião e o concreto da vida. De fato, embora o chavismo tenha gerado uma forte polarização no país, inclusive nos momentos de maior tensão, as igrejas eram os únicos lugares onde se podia ver chavistas e antichavistas sentados lado a lado. Sem dúvida há muitos católicos que ainda se definem chavistas, mas o problema é que se vive a fé como algo que não tem nada a ver com a vida, de maneira sentimentalista e não incidente sobre a capacidade de julgamento. O conflito entre o governo e a Igreja sempre foi com a hierarquia eclesiástica e de maneira especial com os bispos, que denunciaram situações de violação dos direitos humanos e a falta de uma política que favoreça o bem comum. As obras sociais da Igreja têm uma grande penetração nos setores populares e rurais do país todo, de maneira especial as obras educacionais. Desde antes do governo de Chávez um acordo entre o Estado venezuelano e a Igreja permitiu subsidiar a maior parte da educação popular em todo o país. As condições de pagamento e benefícios dos professores não são suficientes e é certo que o acordo teve momentos de altos e baixos, porém é uma realidade que qualquer governo tem que reconhecer e apoiar, porque representa uma realidade positiva e estável.

Poderia indicar alguns fatos concretos, pequenas experiências sobre sinais positivos e que deem esperança ao povo quanto ao futuro?
Eu dirijo uma obra que educa jovens e mulheres para o trabalho. Há uma senhora que vive fora de Caracas, tem seis filhos e mantém a casa. Gasta três horas por dia para vir fazer o curso de “Empreenderas da Beleza” e assim começar sua atividade de cabeleireira e aumentar a renda familiar. Ou também jovens que começam a produzir chocolates com os cursos que lhes damos e logo começam a ensinar a outras pessoas de sua comunidade e compartilham as ferramentas de trabalho para atender juntos aos clientes. Vendemos chocolates, em dezembro, feitos por mulheres das favelas no laboratório de uma grande empresa, que doou o lucro ao projeto para que ele tivesse prosseguimento. Vejo amigos que fazem um grupo de whatsapp para se ajudarem a encontrar remédios, e outros amigos no interior do país que fazem uma feira escolar como ação caritativa para que as pessoas do povoado possam comprar uniformes ou material escolar a preço mais baixo, pois o governo não tem esse tipo de projeto. São sinais de uma humanidade que não foi reduzida, de pessoas que encontraram algo maior em suas vidas. São fatos e pessoas transformadas (e não ideias) que podem dar uma esperança.

Na recente carta ao povo venezuelano, os bispos convidam para não se cair no desânimo e insistem na necessidade de se reencontrar “entusiasmo, audácia e criatividade”. Como começar?
Para mim, frente a esta crise, há quatro posturas que o povo toma. A primeira é escapar da realidade, e então muitas pessoas estão saindo do país sem fazer uma verificação séria, buscam uma escapatória nos vícios ou caem na depressão. Outra é negar a realidade, abstrair-se do que acontece e tratar de sobreviver e se salvar por si mesmo (algo que é cada vez mais difícil). No outro extremo estão os que tentam mudar a realidade só com a vontade e com sentimentos patrióticos, que são válidos mas não suficientes, em muitos casos, para superar o cansaço. Finalmente, a quarta posição é aquela de entender a vida como uma vocação e, então, enfrentar a realidade fazendo uma caminhada para entender o que é que Deus está pedindo neste tempo e nesta terra venezuelana. O “entusiasmo, audácia e criatividade” citados pelos nossos pastores, os bispos, não podem ser gerados sozinhos; partem do reconhecimento de Algo maior que dá sentido à vida. Para um cristão, a fadiga do trabalho quotidiano tem um sentido, a dificuldade tem um valor que permite ir ao essencial de cada coisa. Quando não se encontra o básico para viver, quando um médico vê seu paciente morrer porque não tem o remédio indicado nem tem a possibilidade de ser operado, quando a vida não vale nada porque há um pagamento na favela para se matar alguém ou se conseguir uma arma, quando as pessoas temem que seus filhos caminhem pelas ruas ou vão sempre com os vidros do carro fechados, porque a qualquer momento podem ser assaltados por alguém armado, quando a gente se sente impotente por não encontrar carne ou frango para levar para casa, é evidente a exigência de uma inteligência maior. Qualquer uma das três posturas de que falei antes existem quando se põem as forças e a esperança no que cada um pode fazer, ou só num projeto político. Na Venezuela, o grande desafio que nós cristãos temos é retomar o que disse o Papa Bento XVI: que a inteligência da fé se converta em inteligência da realidade. Só assim se poderá mostrar a pertinência do cristianismo como possibilidade de uma vida melhor para as pessoas.

Então, num momento tão dramático, o que é mais necessário para que a sociedade volte a crescer e viver melhor?
A situação da Venezuela exige uma mudança, porém não é só em termos de governo ou de política econômica. Estes são necessários e até setores do chavismo concordam, frente às necessidades que podem ser constatadas. A política é importante, os partidos políticos são necessários, os projetos de país são indispensáveis para salvar o ser humano e lhe dar felicidade. Em outros países essas são vitórias já alcançadas; a nós falta muita coisa ainda, inclusive se compararmos com a média da América Latina. Porém, a verdadeira mudança que o país requer é cultural. Trata-se de entender que o Messias já veio e se chama Jesus de Nazaré. Assim, não é de se esperar a salvação de velhos ou novos messias, caudilhos visionários que iriam resolver os problemas usando o petróleo. Na Venezuela há o mito de que já somos ricos devido a tantos recursos naturais, e que a salvação é ter um bom governo que possa repartir a riqueza. Ao contrário, é o momento do protagonismo de cada pessoa através do que lhe cabe fazer, de seu trabalho e responsabilidade em construir o bem comum. Desde a empregada doméstica, o operário ou estudante, até o arquiteto têm que entender o concreto e o transcendente da tarefa que Deus deu a cada um. Para que isso aconteça, é necessário que existam lugares que eduquem o desejo e a liberdade da pessoa. Lugares de vida nova que ajudem a ver a realidade de maneira adequada e que de maneira comunitária respondam às necessidades concretas. Requer-se um cristianismo capaz de viver uma verdadeira comunhão e dessa forma gere pessoas capazes de construir, a partir do trabalho e de obras que sejam exemplos de uma resposta mais adequada para as necessidades das pessoas. A boa notícia, como disse o Papa Francisco, é que Cristo veio antes e, então, também na Venezuela, com toda a crise e os problemas que temos, podemos partir dessa certeza.

*Artigo escrito para o Vatican Insider.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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