O escritor Biagio D’Angelo, vencedor do Prêmio Jabuti de Literatura Infantil em 2012 lança seu segundo livro infantil. A partir da própria experiência pessoal recria histórias que têm fascinado cada vez mais leitores
Histórias ele conta aos montes. A maioria vivências pessoais. E ditas até na frente de quem acaba de conhecer, com uma graça típica de quem é livre para rir também de si. Duas dessas muitas histórias viraram livros infantis: Benjamin, que ganhou o Prêmio Jabuti de Literatura Infantil em 2012, e Tito, meu irmão e eu, lançado em 2014. Na entrevista a seguir, Biagio D’Angelo fala que a obra de um artista, como a de um escritor, surge da experiência de religiosidade, ainda que não obrigatoriamente ligada a uma fé. Ah, Benjamin foi escrito em língua portuguesa, sua “língua de memória”, mas não de origem, porque é italiano. Um italiano orgulhoso de ser brasileiro e, atualmente, brasiliense. Embora também orgulhoso da sua real origem, como são os sicilianos. Atualmente Biagio é professor de Teoria, Crítica e História da Arte da Universidade de Brasília, e carrega no curriculum a experiência em diversas universidades internacionais (Hungria, Peru, Bélgica, Rússia).
De onde nasce uma história?
A história nasce em primeiro lugar de memórias. De minhas memórias. De experiências que ficaram guardadas em algum lugar e que estão relacionadas a coisas que eu reencontro. Por exemplo, o livro Tito, meu irmão e eu trata de uma coisa que sempre me deixou inquieto, que é a questão da morte. Como faço para poder falar de morte? Quando escrevo, tanto uma poesia, como um conto para crianças ou um conto em geral, sempre eu penso na questão da finitude das coisas e dos seres. E essa experiência do coelho (no Tito, meu irmão e eu) é minha, pessoal. Então afunda na memória uma questão que é do presente.
É uma experiência revivida?
Sim. São reencontros de história já vivida que foi esquecida, por exemplo, por 25 anos. Num dado momento acontece alguma coisa, como um chip que está ligando de novo e te faz pensar naquilo. Eu lembro de coisas que aconteceram quando eu tinha cinco, seis, sete, oito, dez, 15 anos.
Se nasce de uma experiência, todas as pessoas são capazes de criar histórias?
Obviamente todo mundo é capaz de contar histórias. Acho que é uma coisa antropológica o desejo e a necessidade de contar histórias. A novela brasileira é um contar histórias pelo desejo que o povo tem de escutá-las. De fato a novela é sempre a mesma coisa. A novela, como gênero, é uma repetição de clichês. O problema é como são contadas as histórias. A literatura, a poesia, a arte, são o como contar uma história.
Aí entra o dom, então?
Aí entra o talento, o trabalho que você faz consigo mesmo de escritura, de leitura. Se você não lê, não pode escrever. Tem que ter um pouco de referências. E aí entra o como escrever. Tem um conto de duas-três páginas, que fica entre a primeira e a segunda parte da obra Decamerón, na qual o autor, Giovanni Boccaccio, faz questão de dizer como se conta uma história. É um conto simpático: um cavalheiro encontra uma bela dama e essa dama está sofrendo porque está caminhando e faz um calor imenso. Está também uma dama de companhia com ela. O cavaleiro diz para ela: “Oh, nobre figura, venha aqui. Eu vou a pé e a senhora fica no meu cavalo”. Um gesto nobre. A um dado momento, o cavaleiro começa a contar uma história e a dama fica entediada. Até o ponto que diz: “Cavaleiro, eu prefiro morrer de calor a escutar uma história sem sentido e tão babaca”. E Boccaccio explica que nem todo mundo sabe contar histórias em vez de ouvi-las, a ouvi-las, é melhor até quase passar calor.
Além de talento, falaste também de trabalho e de leitura. É possível com a leitura de bons autores desenvolver o talento?
Existe o talento que é pessoal e a gente tem ou não e não tem como negar. Mas, ao mesmo tempo, se não houver um trabalho, esse talento fica desperdiçado ou fica instintivo. Os grandes artistas sempre trabalharam. Eles têm um talento que foi incentivado pelo estudo, por uma escola, universidade, mas trabalharam. Escrever poemas ou pintar um quadro é exercício. Às vezes fica melhor e, às vezes, pior. Eu não acredito no puro instinto, no puro talento. Se o dom que alguém te dá não é trabalhado pelo exercício fica esquecido.
Quando resolveste escrever os dois livros infantis, por que tu querias dividir tuas histórias?
Eu não queria dividir histórias. Tudo começou porque eu tinha escrito muita coisa que estava numa agenda. Tudo estava bem registrado. Aconteceu que, por acaso, eu ganhei um prêmio no Peru como melhor poeta do ano, como anônimo. Na verdade, coloquei um pseudônimo, mandei para o concurso e ganhei a publicação. Eu não queria. Porque não gostava de ficar exposto. Uma vez que você publica uma coisa, ela já não é mais sua. Não sei se é necessário, mas dizem que o artista precisa dessa exposição também. Não pode ficar fora, dentro das quatro paredes de casa. E eu comecei a me abrir, a conversar. Mas eu sou bastante prudente e um pouco tímido com as minhas coisas. Senti necessidade, um dia, de escrever sobre uma criança que tinha asma, que poderia ser eu. Comecei a escrever e em português. Fluiu muito bem, muito rápido. E eu pensei em escrever essa história em português. Não queria escrever em italiano, porque eu estava aqui e pensei: vou escrever em agradecimento ao Brasil que me acolheu. Acho que ficou muito bonita. E eu não consegui traduzir para o italiano. Traduzi, mas não ficou boa. Eu estou buscando uma língua portuguesa das origens. Mas das origens minhas que não são origens portuguesas. É como uma busca de mim dentro do espaço do Brasil.
No que a tua religiosidade, tua experiência dentro de um Movimento católico, ajudou nisso? De alguma forma ela provocou o surgir do escritor, já que até o prêmio pelo poema, no Peru, não te reconhecias um artista?
Talvez a pessoa sinta já antes ser artista. Mas não cai a ficha até quando não há uma citação pública. Agora sobre a religiosidade, acho que cada sujeito é religioso de uma própria maneira. Esse espaço de vínculo que o sujeito tem com o metafísico ou com o físico também, com o religioso, é aquilo que move qualquer experiência artística. Mas move qualquer experiência de trabalho também. A grande arte existe quando o sujeito artista vivencia esse link: o vínculo que existe entre o seu próprio eu, finito, e o desejo de algo mais. Não é uma religiosidade que se expressa necessariamente numa fé.
É a pergunta da existência?
Sim. Não existe arte sem essa pergunta. Aliás, quando não existe essa pergunta não é arte. Para mim é uma coisa radical quase. Eu, o que percebo dizendo ser arte contemporânea, considerada uma arte difícil, complicada, é porque acho que em certos artistas esse espaço para o religioso é presente. Não precisa ser cristão, zen, budista, judeu. Mas quando o artista vive isso e há uma pessoa que percebe isso, ali acontece o milagre da arte. Recentemente vi uma exposição de uma mulher que se chama Tatiana Trouvé. É uma artista plástica contemporânea muito bizarra. Ela tem uma instalação plástica que é formada por duas malas hiper pesadas, que fica num museu. O título é “I Cento Titoli”, e é de 2013. Quando vi aquelas malas super pesadas, que não se podem mover, pensei: quanto me movi na vida e tenho uma mala cheia de amigos dentro! Pensei em alguma coisa que ela queria dizer. Algum patrimônio, arquivo de vida, de pessoa, de objeto. Sou fissurado em objeto também. Então, um cara que, como eu, vê uma mala desse tipo, posso me questionar e talvez aquela mala se torne um trabalho artístico.
Tem uma intenção por trás de uma obra? Foi uma intenção tua, escrevendo Tito ou Benjamin, que as pessoas se perguntassem sobre a vida?
O autor pode ter uma intenção de explicação, mas a explicação não funciona. Não é arte. Quando escrevi Benjamin, eu queria mostrar a história de uma criança que tinha asma, de como essa asma pode ser curada não pelos remédios, mas pela amizade e pelo amor. No Tito, eu queria mostrar que a morte não é a última palavra, que a família fica unida no final. Para chegar a esse ponto há um trabalho pessoal, de escrita, de lembranças, memórias. O artista tem uma intenção. Se não tem uma intenção não é artista. Porque não existe arte sem mensagens. A arte veicula uma mensagem: eu quero dizer isso, fazer isso. No Movimento de CL fomos educados por Dom Giussani ao porquê das coisas. Talvez hoje a arte contemporânea não queira dizer por que. Mas eu, como professor, tenho que dizer aos meus alunos para se interrogarem sobre o porquê do objeto. Sem o porquê do objeto, não há recepção da arte. É como se o gosto não tivesse mais razões de ser explicado.
Dom Giussani define como gênio aquele que expressa o que já está no coração do outro, e por isso há uma identificação com uma obra, uma música, um poema, um livro. É possível que nessas duas obras infantis tenha se revelado um gênio, considerando que ao lê-las as pessoas se identificam, especialmente adultos?
A palavra gênio é muito forte e não me sinto nenhum gênio.
Mas percebes que as pessoas se reconhecem na tua obra? Se você se reconheceu, fico feliz. Mas não quero que as pessoas se reconheçam na obra porque vão saber um pouco mais da minha vida. Acho que toda arte é biográfica porque tem a ver com o trabalho do eu. Então, se quem lê quer saber da minha vida pessoal, se tive um coelho, se tinha uma vovó com bigodes, se eu tive aquele pai com sarampo, se meu verdadeiro nome é Benjamin, a leitura não é tão interessante. Mas se a leitura te permite fazer uma experiência, como você contou, da frase “esperar faz adulto” [trecho do livro Benjamin], se te ajuda, a arte nesse caso tem um “sucesso”, por assim dizer, teve seu objetivo alcançado.
Tu te sentes realizado por ter publicado esses livros infantis? Mais por um do que por outro?
Sim, realizado pelos dois da mesma forma. Sou feliz desses filhos como um pai.
Qual o papel das ilustrações nos teus livros? São as mães?
Nos dois casos as ilustradoras são mulheres. Eu adoro a leitura infantil, ou aquilo que a gente chama de infantil, justamente porque sinto que a ilustração completa a história. E talvez possa dar até outra voz à história. Então para mim é uma grande experiência isso de colaborar com artistas plásticos, do desenho, ilustradores. Eu conto a história e eles comentam desenhando, pintando. Aliás, meu sonho é trabalhar com pop up, aqueles livros com objetos que se abrem, com colagem. Gosto da ideia de que a página saia dela, se torne um objeto. Porque ela é um objeto. Estou super feliz de ter trabalhado com a Thais Beltrame [ilustradora de Benjamin] e com a Elma, para o Tito. São diferentes ilustrações. Foram as editoras que as chamaram e eu as conheci depois.
Qual é o “milagre” ou a mágica de alguém ler um texto e conseguir completar a história com ilustrações ao ponto do autor dos textos dizer que é a tradução perfeita?
É uma coisa misteriosa. A Elma me falou que quando ilustrou Tito, ela vivenciou a morte de uma pessoa da família. E que ter desenhado sublimou [a dor] e a fez entender que mistério é a morte. Fizemos uma mesa redonda em Porto Alegre [no lançamento de Tito, em 2014] sobre a morte na literatura infantil. Ela falou pouquíssimo, porque tinha vivenciado momentos tristes recentes.
Por que tratar dessa temática da morte em um livro para crianças? Por que não? Esse livro foi recusado por duas editoras importantes no Brasil porque falava de morte. Falavam que não era um tema adequado às crianças. Eu não concordo. Em primeiro lugar, não acredito que existe uma literatura infantil. Existe boa ou má literatura. Essa divisão de literatura infantil, juvenil, policial, ficção científica, são todas reduções mercadológicas. O mercado quer uma separação para poder vender melhor. Alice no País das Maravilhas é um grandíssimo livro que não é para crianças. Peter Pan é a mesma coisa, é um livro muito violento para criança. Chapeuzinho vermelho, também! Por que não contar para a criança de uma forma delicada, sobre a experiência da morte? Quando uma criança tem seis ou sete anos, como meu sobrinho, se questiona sobre quem não está mais. Por que um animal morreu? Por que o sorvete caiu no chão? Na apresentação do livro eu digo que cada perda representa uma morte para a criança. Um objeto que desaparece, um brinquedo, a criança vivencia a morte com esses pequenos momentos. Uma criança não vai entender Guerra e Paz, mas um adulto pode ler Alice no País das Maravilhas quando criança e quando adulto, e será uma experiência diferente. É importante dizer que quem escreve para crianças não são crianças, são adultos. E é esse adulto que tem uma voz diferenciada na literatura infantil, mas é adulto. A literatura infantil, para ser etiquetada como infantil, deveria ser escrita por crianças e para crianças. Mas não é assim.
Que autores te influenciaram?
Quando escrevi Benjamin, me senti acompanhado por Guimarães Rosa, Ana Maria Machado, Ângela Lago e Manoel de Barros. A Ana Maria Machado e Ângela têm coisas para criança. Manoel de Barros é um gênio e Guimarães Rosa, também. Quando escrevi o Tito me senti muito próximo de um livro de um escritor alemão que se chama Wolf Erlbruch. O livro é O pato, a morte e a tulipa. Mas foi uma experiência posterior. Não li antes e depois escrevi o Tito. Nesse livro o Erlbruch se pergunta sobre a morte. É um livro mais convidativo pelas imagens. Meu sonho é que a letra se transforme em pintura. O que posso fazer para isso é literatura infantil. Vai ser sobre figuras muito conhecidas pelo público infantil, mas dentro de uma releitura pessoal, minha, que faz parte de problemas da adolescência.
Quem é o Biagio?
Um miserável. Cada um de nós tem um talento na vida. E como diz a Dante, no Paraíso, o personagem Carlo Martello: todo mundo tem um talento. A tarefa da vida é desenvolver um talento e redoá-lo. Meu talento, por exemplo, é dentro da Literatura ou da Arte, da docência e da pesquisa. Talvez sei cozinhar um pouco, mas não sei fazer muita coisa. Esse talento tem de ser usado para redoá-lo a quem me ofereceu esse talento.
Qual a importância que o prêmio Jabuti teve pra ti?
Quando me disseram que ganhei o Jabuti achei que fosse um trote. Mandei longe a pessoa que me avisou, achando que estava brincando. A grande coisa do Jabuti é que me senti brasileiro. Tenho escritas poesias em italiano e espanhol. Uma premiada, Milongas e outros ritmos, é bilíngue. A outra que publiquei é Humboldt. Outra mais tem como título A/R, que é um jogo enigmático. Tenho poesias escritas em português, mas não quero publicá-las ainda. Sinto que não estão prontas para serem reveladas.
Como faz quem quiser conhecer mais sobre a tua obra?
Tem que vir a Brasília me encontrar, tomar um café. É mais bonito do que buscar informações num site.
Credits /
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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón