O Brasil enfrenta novamente o tema da redução da maioridade penal para os adolecentes. Uma discussão que divide a sociedade. Aqui, uma abordagem que busca olhar o problema de um modo novo
Cada vez gosto mais de contar casos e menos de fazer análises teóricas. A questão da redução da idade de imputabilidade é campo de batalha entre dois blocos de analistas: de um lado, aqueles que reconhecem a falência do sistema prisional, a precariedade do ensino destinado às camadas desfavorecidas da população e a falta de combate eficaz à criminalidade organizada para justificar que os adolescentes continuem inimputáveis até os dezoito anos.
Do outro, aqueles que, fartos de crimes praticados por adolescentes, bradam contra a impunidade, vendo que também o sistema correcional destinado aos menores não é eficaz e que o retorno destes ao convívio social ocorre antes de qualquer ressocialização. A segregação do convívio social por tempo maior, para estes, será a grande vantagem da redução da idade penal para dezesseis anos, ou até, para os mais radicais, para doze anos. Assim, os “cidadãos de bem” estarão livres da ameaça representada pelos agressores por um tempo maior e haverá proporção mais justa entre o erro e o castigo, evitando-se a impunidade dos menores de 18 anos e sua consequente audácia transgressora.
Decido, desde logo, não me deter avaliando as meias-verdades e, portanto, as meias-mentiras, de cada bloco de analistas. Ao invés, prefiro fazer o que mais gosto: contar histórias que me marcaram e definiram para mim um modo novo de me colocar diante do problema.
Primeiro, quero contar a história de um funileiro, que deu oportunidade de trabalho para um conhecido marginal do bairro, e permitiu que ele morasse na funilaria. Não me lembro bem, mas parece que havia feito um voto à mãe dele, no leito de morte, que faria o que pudesse para ajudar o menino, que andava de mal a pior.
Ensinou o ofício ao rapaz, e este se tornou seu melhor “martelinho de ouro”, embora continuasse passando as noites pela rua. Mas contava com toda confiança do patrão e protetor, dormindo no estabelecimento, e, portanto, com livre acesso ao cofre.
Até que furtou enorme quantia do patrão e sumiu do bairro. O patrão não sossegou enquanto não o localizou, e, quando o rapaz deu-se por achado, e já prometia, constrangido, pagar o prejuízo que dera, o patrão esbravejou: “Eu não vim recuperar o meu dinheiro, pois já ganhei mais depois que você saiu. Eu vim porque quero o seu bem e ainda não contratei ninguém para a sua vaga.”
O moço voltou e continuou trabalhando e dormindo lá, até se casar. Encontrou um pai e o patrão já sabia, antes mesmo de ser furtado, ter encontrado um filho, um filho querido, como nunca tivera antes.
Por último, vai aqui uma história familiar: a história do meu irmão mais novo. Dos meus irmãos, é o que eu mais amei. Porque a gente se apega mais a quem mais exige nossos cuidados. E ele exigia tantos cuidados, que nem minha mãe, que tão bem cuidou de nós outros três, nem meu pai, que trabalhava desde as 7h até as 21h para que nada nos faltasse, davam conta de norteá-lo. Então, lá ia eu, para ajudar.
Mas ele continuava testando nosso amor, desrespeitando regras familiares e sociais e frequentando os piores ambientes e companhias. Como quem nos dizia: meu lugar é este, não quero seus cuidados porque não me acostumei a ser protegido (veio para nossa família com seis anos), e busco o perigo a que sempre me expuseram na minha tenra infância, quando mais precisava e sobrevivi à falta de cuidados e proteção. Agora, não quero mais, nem preciso tanto. E queria uma felicidade que não tinha regras, nem limites, nem medidas.
Na última noite, antes de sair de casa, pediu para minha mãe seu escapulário. A promessa de Nossa Senhora do Carmo, quando apareceu a São Simão Stock, foi de que daria a graça do arrependimento final, e, portanto, da salvação, àqueles que trouxessem devotamente e com intenção de fazer a vontade de Deus, seu escapulário vestido, e que lhes daria o céu no primeiro sábado depois de sua morte.
Foi morto naquela noite, e a primeira coisa que verifiquei, quando, no IML, fui reconhecer o corpo, era que o escapulário estava preso entre os ferimentos que trazia, entre a nuca e o pescoço.
E sei que encontrou a felicidade sem regras, nem limites, nem medidas.
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