Estamos sob tiroteio; nós e toda a comunidade cristã de Aleppo, assediada por todos os lados pelas forças fundamentalistas do al Nusra e do Estado Islâmico. Mas a última novidade se refere a nós, armênios: enquanto o Papa denuncia corajosamente o genocídio de 1915, as milícias islâmicas do al Nusra, apoiadas pela Turquia, nos colocam na mira. Há alguns dias os mísseis – que desde a Páscoa alvejam o bairro cristão de Sulaimaniyah – agora apontam diretamente para a nossa igreja, para a rua armênia, para as casas: um complexo residencial foi bombardeado matando 26 pessoas”.
O pastor de 51 anos, que pede para ser identificado apenas como Seraphim, vive em Aleppo, Síria, na extrema fronteira da ofensiva contra os cristãos, que irrompeu sem controle depois da entrada em cena do Estado Islâmico, no início do ano passado.
O recrudescimento da violência, registrado pelo último relatório da Open Doors International sobre as perseguições aos cristãos no mundo, indica 2014 como o ano mais negro desde sempre, com pelo menos 4.344 pessoas assassinadas por serem cristãs e mais de mil locais de culto destruídos pela mesma razão (o dobro do ano anterior).
Há muita relação com a prepotente entrada em cena de atores novos ou seminovos: a Síria, antes um pacífico condomínio interreligioso, ao preço de uma ditadura comparável a Pyongyang; o Iraque, onde o avanço do vizinho Califado incentivou os fanáticos e acelerou o esvaziamento das igrejas iniciado em 2003; os grupos neo-jihadistas que, da Líbia à Somália dos Shabaab, passando pelo Sinai egípcio, viram na filiação ideológica com os cortadores de garganta do al Baghdadi a liberação de uma marginalidade geográfica e geopolítica, selada pelo contínuo relançamento da violência; a Nigéria, onde há alguns meses os já assustadores killers de Boko Haram decidiram dar um salto de qualidade, apostando no sequestro de garotas a serem vendidas como escravas, atentados camicase confiados a inexperientes crianças, bombas no coração dos mercados mais populares.
“Voltaremos”. Os que em 2010 advertiam para o crescimento do ódio sectário que já então, segundo o Centro Pew, se concentrava sobre os cristãos (70% dos perseguidos por razões religiosas), dificilmente poderiam imaginar a aceleração que aconteceu depois. As Primaveras árabes, em 2011, acenderam a esperança de uma nova aliança entre povos divididos pela fé, mas unidos pelo desejo de democracia. E as bandeiras cruzadas da Praça Tahrir, no Cairo, com a cruz copta ao lado da meia-lua islâmica, se tornaram a esperança de uma inversão de rota em relação à gradual pulverização das igrejas no Oriente Médio, onde o cristianismo nasceu.
“Logo fomos despertados: no ano em que governavam o presidente Morsi e os Irmãos Muçulmanos, as coisas se precipitaram, até os nossos amigos muçulmanos brincavam nos sugerindo que fizéssemos as malas porque, uma hora ou outra, seríamos confiscados”, conta o católico Francis Sheada, minoria da minoria cristã do Egito, que hoje está perfilada unida em torno do presidente Al Sisi. O pastor Seraphim, que há mais de dezessete anos é o guia da Igreja evangélica armênia de Aleppo, não adota nenhuma posição política (exceto contra a Turquia), mas fotografa uma comunidade que se equilibra à beira do abismo, cujas necessidades primárias procura em vão acudir (com a ajuda de associações como Porte Aperte):
“A casa da família, na minha cidade natal, foi queimada e sobre as paredes escreveram: Voltaremos. Apesar de ter sofrido três atentados, a igreja armênia ficou aberta todos os domingos dos últimos quatro anos. E embora sob o ataque dos mísseis, rezamos a missa com cerca de 250 fiéis, incluindo católicos e ortodoxos que acabaram ficando sem igreja. Não lhes pedimos que venham, mas eles vêm. Depois da escalada espantosa durante a Páscoa ortodoxa, uma senhora de 82 anos me disse que estava ali porque é melhor morrer sob o altar do que na cozinha” .
Em Aleppo, cerca de 70% dos cristãos foram embora de uma cidade sem eletricidade, para os campos de refugiados disseminados entre a Turquia e a Jordânia; metade das tendas é ocupada por homens e mulheres batizados. Quem ficou prisioneiro da História lamenta em seu coração o regime de Assad.
A filha do Reverendo. O ataque aos cristãos tem uma dimensão global. Entre os cinco países em pior situação, em 2014, o primeiro lugar cabe à Coreia do Norte, muito distante do centro do neo-jihadismo mas, segundo os refugiados abrigados em Seul, lá existem campos de concentração onde, entre os demais “opositores”, haveria dezessete mil cristãos. A seguir estão a Síria, Nigéria, República Centro-Africana, Quênia e, depois, Iraque, Paquistão, e a Líbia desfigurada pelos mensageiros do Califa: Estados onde, independentemente de qual seja a relação de forças (por exemplo, os cristãos são maioria no Quênia), parece que a guerra de religião é a marca da pós-modernidade.
“As minhas filhas estão entre as garotas desaparecidas. Sinto uma dor profunda, que me acompanha todos os dias”, murmura com um fio de voz o reverendo Enock, pai de duas das 232 estudantes de Chibok (das quais pelo menos 165 são cristãs) sequestradas há um ano pelos esquadrões de Boko Haram. A partir desse momento, com a filiação dos talibãs da África ao Estado Islâmico, a Nigéria passou do confronto, embora duríssimo, entre as tribos – camponesas e muçulmanas do Norte e as do Sul cristão e mercantil – para a trincheira do ódio. Segundo a Anistia Internacional, no início de 2014 Boko Haram sequestrou, na Nigéria, pelo menos duas mil mulheres e meninas para fazer delas escravas ou baby-kamikaze; matou mais de 5.500 civis; destruiu inteiros povoados, entre os quais Bama, onde recentemente o oficial da Unhcr denunciou o encontro de uma fossa comum com pelo menos 550 corpos de mulheres que poderiam ser também das garotas de Chibok.
Olho por olho. Os observadores do World Watch Monitor estimam que no último ano a pressão sobre as igrejas diminuiu em onze países (um dos quais é Orissa, teatro dos massacres anticristãos de 2007, onde padre Joseph admite que “embora estando sob tiroteio por causa das conversões dos hinduístas ao cristianismo, a tensão diminuiu bastante”), mas permaneceu estável em sete deles e aumentou em 29. Entre aqueles onde houve retrocesso está o Paquistão, onde, por trás do caso de Asia Bibi, presa em 2009 sob a acusação de ter violado a lei antiblasfêmia e condenada ao enforcamento, estende-se uma zona de sombra cada vez mais escura. “A situação era pesada, mas agora é pesadíssima, porque alguns cristãos começam a reagir e isso fornece ao ódio dos muçulmanos um álibi facilmente utilizável em nível social”, diz o padre Nadim. Ele mora em Lahore, local onde Nauman Masih, um adolescente de 14 anos, foi queimado e morto por um grupo de coetâneos muçulmanos, talvez para vingar o linchamento de dois deles após o atentado de 15 de março de duas igrejas de Youhanabad. Olho por olho e o mundo ficou cego, recitam os provérbios populares. No entanto, também na planície de Nínive, no Iraque, onde logo após a segunda guerra do Golfo os cristãos eram apenas 3% da população, uma sombra do que eram no início do século XX, as comunidades cristãs organizaram uma brigada disposta a lutar, ao lado dos curdos, contra o avanço do Califado. O mesmo aconteceu na República Centro-Africana, onde em 2014 as milícias cristãs antibalak e os animistas mataram milhares de muçulmanos num acerto de contas que a ONU classificou como genocídio.
“Eu nunca havia pensado que poderia ser morta por aquilo que sou, numa África onde se pode morrer facilmente pelo que a gente faz. Mas se eu posso decidir não usar uma roupa ou usar um crucifixo no pescoço, não posso decidir não ser cristão”, raciocina ao telefone, de Nairóbi, uma jovem de 25 anos que hoje sente, mais do que nunca, que poderia ser um dos estudantes do câmpus de Garissa mortos a tiro pelos Shabaab somalis, depois de uma macabra seleção religiosa. No fundo ouve-se o eco sinistro dos tambores de guerra.
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