Vai para os conteúdos

Passos N.170, Junho 2015

DESTAQUE

De onde pode vir a mudança?

por Francisco Borba Ribeiro Neto

Como a experiência cristã propõe desenvolvimento na crise? Alguns exemplos de como é possível construir em qualquer situação

As manifestações que vêm acontecendo no Brasil desde 2013, protagonizadas em momentos diferentes por participantes de diversos matizes ideológicos, mostram um descontentamento generalizado e a dificuldade do governo em responder à população. O escândalo da Petrobras e o ajuste fiscal têm dominado os noticiários, mas os embates entre políticos parecem motivados mais por conflitos entre interesses particulares do que por discordâncias quanto ao que é melhor para a Nação.
Se olharmos a história desde o começo das manifestações, nos deparamos com um quadro mais amplo e complexo. Há analistas se perguntavam qual era a origem do descontentamento popular. Vínhamos de um período de grande crescimento econômico, redução das desigualdades e melhorias significativas na renda dos mais pobres. As respostas do governo, nesta fase, apontavam para a expansão das políticas sociais, prometendo mais inclusão, mais desenvolvimento e melhor uso da máquina pública.
Depois vieram os escândalos de corrupção na Petrobras e a necessidade do ajuste fiscal, que muitos entenderam como uma traição das promessas de campanha da presidente Dilma. A questão ética canalizou o descontentamento popular. A necessidade do ajuste fiscal evidenciou as dificuldades econômicas do País, ficou claro que haverá impactos negativos inevitáveis em toda a sociedade, que afetarão duramente os mais pobres.
Estamos diante do esgotamento de um modelo de políticas sociais assistencialistas, de inegável valor inclusivo, que se sustentaram graças ao crescimento econômico, deixando de atender a uma perspectiva integral de desenvolvimento social e econômico.
Apesar do aumento do poder aquisitivo da população de baixa renda, continuou faltando no Brasil educação e saúde de qualidade, segurança, apoio ao empreendedorismo, percepção de que os recursos públicos estão postos a serviço do bem comum. A campanha eleitoral de 2014 mostrou que a população desejava a manutenção das políticas sociais, mas também que havia o desejo de um desenvolvimento mais integral, que não contemplasse apenas ganhos financeiros, mas também uma melhora generalizada nos serviços públicos e na qualidade de vida das pessoas.
Políticas assistencialistas e práticas populistas não atendem integralmente às exigências fundamentais da pessoa, pois não contemplam seu desejo de ser protagonista da própria vida, de ver seu esforço dar frutos e ser recompensado. Os escândalos de corrupção e a malversação dos recursos públicos foram como que a gota de água que fez transbordar o copo da insatisfação popular.

O fator humano. “As forças que movem a história são as mesmas que movem o coração da pessoa”, lembrava Dom Giussani (O eu, o poder, as obras, Editora Cidade Nova, 2001). Não há verdadeiro desenvolvimento integral se a pessoas humana, com suas exigências fundamentais de verdade, beleza, bondade, justiça, realização, não é protagonista e razão de ser da vida em sociedade.
A questão não está, por exemplo, em ter ou não um programa como o bolsa-família. Se existe uma situação de carência que exige um programa deste tipo, é bom que ele exista. A questão é se ele vem acompanhado de outros programas que permitem o desenvolvimento humano integral dos seus beneficiados: educação de qualidade, investimentos em infraestrutura que alavanquem a economia, gerando postos de trabalho com remuneração adequada, etc.
A questão não está em um ajuste fiscal que irá inevitavelmente penalizar a população. Toda família tem dias melhores e dias piores, momentos com maior “folga” nas finanças e momentos em que precisa economizar. As pessoas podem até entender a necessidade do arrocho. A questão está em saber que o sacrifício de hoje realmente está servindo para a construção de uma situação melhor amanhã, que a carga está sendo distribuída de maneira justa entre todos, sem penalizar os mais pobres poupando os mais ricos, que as decisões estão sendo discutidas e compartilhadas e não centralizadas nas mãos dos poucos cuja eficiência está sendo questionada.
Não basta aumentar o acesso da população à educação. Isso é bom, mas se a educação é de baixa qualidade, se não permite que a pessoa se desenvolva e seja mais protagonista de sua história, a insatisfação permanece – é só o tempo necessário para que os estudantes e seus familiares perceberem que o esforço realizado não traz a compensação esperada. Não adianta anunciar que estão sendo feitos investimentos em saúde ou segurança, se a população não percebe melhoras significativas nestes setores, se as comunidades não são envolvidas nos projetos governamentais e continuam se sentido mal atendidas em postos de saúde e hospitais, tendo desconfiança e até medo da polícia.
“As necessidades do homem, assim como o seu desejo, são sempre infinitas [...], portanto, também as respostas materiais que os projetos podem oferecer, são limitados. Quando, porém, as ações, as estruturas, os projetos nascem de um “eu” consciente e educado a reconhecer em cada realidade humana, até mesmo na mais degradada, um nexo com o infinito, aí então essas ações ou projetos se tornam ‘obras’, se tornam gestos, se tornam oportunidades de encontro com pessoas com as quais se inicia um caminho comum de compartilhamento, não só dos problemas ou dificuldades, mas também do sentido último da vida” (Piatti A. [in] O desenvolvimento tem um rosto, Fundação AVSI, 2008).
Esta percepção de cada pessoa humana como abertura para o infinito gera gratuidade, solidariedade, criatividade, capacidade de trabalho. Não se trata de um subjetivismo sentimental, mas do verdadeiro motor do desenvolvimento humano. Sem isso, as políticas públicas se perdem no burocratismo e no tecnicismo, os projetos governamentais se perdem nas ideologias e nas pretensões do poder.
A sociedade brasileira está cheia de obras, realizadas tanto por organizações sociais como por entes governamentais, que evidenciam a força desta percepção do valor da pessoa humana e seu potencial para o desenvolvimento pessoal e social. Infelizmente, também está cheia de projetos, muitos até bem-intencionados, mas onde a falta desta percepção da pessoa levou à inoperância, à esterilidade e à má utilização dos recursos públicos.
As raízes mais profundas da crise atual se encontram no descompasso entre um modelo de desenvolvimento que não conseguiu olhar a integralidade da pessoa, mesmo que estivesse preocupado com sua promoção, e as exigências profundas do coração humano. Por isso, o melhor caminho para sua superação passa pela recuperação desta postura aberta ao infinito e ao coração da pessoa.
A experiência religiosa, quando vivida de modo verdadeiro, sem ser reduzida a moralismo ou a intimismo, educa para esta abertura ao infinito e para este abraço solidário à pessoa do outro. Mas essa é uma postura radicada no coração humano, que pode ser compartilhada também por aqueles que não têm fé religiosa ou não têm a mesma fé religiosa, mas que vivem uma real abertura à vida na totalidade de seus fatores.

Ter para onde olhar. A ideia de que crises são oportunidades é um lugar comum entre consultores e estrategistas. Empresas e organizações frequentemente conseguem bons resultados, se distinguindo das demais, justamente por sua atuação nestes momentos.
Mas, para a maioria das pessoas, contudo, a crise é apenas um momento de desespero e desorientação. Acontece que, como dizia Dom Giussani, a solução dos problemas “não advém diretamente enfrentando os problemas, mas aprofundando a natureza do sujeito que os enfrenta” (citado em Savorana, A. Vita di don Giussani, Rizzoli, 2013).
É da consciência da própria identidade, do próprio potencial e das limitações existentes, que brotam a criatividade e o empenho para superar as adversidades. Por isso, as análises são importantes para se compreender o que se vive, mas insuficientes para resolver os problemas. Assim como um bom diagnóstico é necessário para curar um doente, mas será inútil se o médico não conhecer terapias possíveis para a doença.
Numa sociedade complexa e plural como a nossa, é difícil até mesmo identificar este sujeito, quanto mais aprofundar sua natureza. Por isso, o primeiro desafio é ter para onde olhar, reconhecer as experiências capazes de nos ajudar a viver a crise como oportunidade.
Não se trata de procurar, em primeiro lugar, as melhores ideias, mas sim as experiências humanas onde vemos respondidas as nossas exigências mais fundamentais, que podem fornecer critérios e dar sentido para o caminho pessoal de cada um de nós e político de toda a sociedade para viver e superar a crise. Justamente aquelas experiências em que o “fator humano”, a abertura para o infinito, não se reduz a discurso teórico ou demagógico, mas define o modo de enfrentar os problemas.

A mudança nasce de um povo. A solidariedade que nasce das experiências nas quais sobressai o “fator humano”, contudo, precisam estar inseridas num povo, para revelar todo o seu potencial de construção do bem comum. Um povo é o conjunto daqueles que compartilham, com mais ou menos clareza, um caminho de resposta às suas exigências fundamentais, à sua sede de infinito. Neste caminho criam famílias, obras sociais, trabalhos artísticos, festas e celebrações que testemunham sua humanidade, que atestam uma unidade e um reconhecimento mútuo.
É neste sentido que o Papa Francisco pode dizer: “O sentir comum de um povo, as bases do seu pensamento e da sua criatividade, os princípios fundamentais da sua vida, os critérios de juízo sobre as prioridades, sobre as normas de ação, assentam, fundem-se e crescem numa visão integral da pessoa humana. Esta visão do homem e da vida, tal como a fez própria o povo brasileiro, recebeu também a seiva do Evangelho, a fé em Jesus Cristo, no amor de Deus e a fraternidade com o próximo. A riqueza desta seiva pode fecundar um processo cultural fiel à identidade brasileira e, ao mesmo tempo, um processo construtor de um futuro melhor para todos. Um processo que faz crescer a humanização integral e a cultura do encontro e do relacionamento; este é o modo cristão de promover o bem comum, a alegria de viver. E aqui convergem a fé e a razão, a dimensão religiosa com os diversos aspectos da cultura humana: arte, ciência, trabalho, literatura... O cristianismo une transcendência e encarnação; tem a capacidade de revitalizar sempre o pensamento e a vida, frente à ameaça da frustração e do desencanto que podem invadir os corações e saltam para a rua.” (Encontro com a Classe Dirigente do Brasil, 27/06/2013).
“Às vezes interrogo-me sobre quais são as pessoas que, no mundo atual, realmente se preocupam mais em dar vida a processos que construam um povo do que com obter resultados imediatos que produzam ganhos políticos fáceis, rápidos e efêmeros, mas que não constroem a plenitude humana. […] Como crentes, sentimo-nos próximo também de todos aqueles que, não se reconhecendo parte de qualquer tradição religiosa, buscam sinceramente a verdade, a bondade e a beleza, que, para nós, têm a sua máxima expressão e a sua fonte em Deus. Sentimo-los como preciosos aliados no compromisso pela defesa da dignidade humana, na construção de uma convivência pacífica entre os povos e na guarda da criação” (Evangelii Gaudium, 224-257).
Esta é a base da qual pode nascer uma nova política. As ideologias atuais, de modo quase indistinto, imaginam que é a liderança de um partido que poderá canalizar as energias da população num processo de mudança. Não se pode negar o poder catalisador de partidos e líderes políticos, mas a história está cheia de exemplos em que eles criaram grandes tragédias – e não o bem comum. É essa base formada por exigências, desejos e experiências compartilhadas que cria um povo e um princípio confiável de construção do bem comum. Seguindo o ensinamento do Papa Francisco, podemos dizer que onde a identidade popular é desvirtuada pelo consumismo, instrumentalizada pelo poder ou sufocada por uma cultura hegemônica, se perde a principal riqueza capaz de realmente construir o bem comum.


O rosto do desenvolvimento integral

Novos Alagados, em Salvador (BA), é o resultado da bem sucedida transformação de uma favela em bairro popular reconhecida e premiada internacionalmente. O reconhecimento do patrimônio social da comunidade, o apoio às associações já existentes, a valorização das pessoas, a ação de organização não governamentais e a colaboração do Estado permitiram, com o trabalho coordenado pela AVSI, um desenvolvimento social que antes parecia impossível no local. Mas, para quem compartilha há anos as lutas da comunidade, ainda há muito que fazer.
Era 1998 quando cheguei em Salvador para trabalhar em Novos Alagados e o primeiro impacto foi bastante forte. Para quem nunca visitou uma palafita, andar sobre pontes completamente instáveis – responsáveis por um número nada pequeno de tragédias – e se deparar com famílias que fazem toda uma vida caber em 20 metros quadrados, pode ser uma experiência inesquecivelmente chocante. Cerca de 1.700 famílias viviam em palafitas e outros milhares dividiam uma área em terra firme que não contava com um mínimo de infraestrutura básica: não havia ruas pavimentadas, água, sistema de esgoto ou energia.
Essa realidade, porém, já mudou muito: as palafitas foram removidas e o que se encontra são casas em um bairro urbanizado. Isso não significa que aquelas mesmas perseverantes famílias, que dividiram comigo suas histórias, não encontrem ainda obstáculos para levar a vida digna que merecem. Só que hoje, a luta é outra: violência, qualidade dos serviços públicos como saúde e educação, manutenção do espaço urbano.
Lembro com alegria que a nossa organização foi capaz de gerar, junto a tantos outros envolvidos – atores privados, públicos, nacionais e internacionais –, cantinhos de esperança para aquela comunidade. Refiro-me às estruturas construídas e atualmente apoiadas por nós como o Centro Educativo João Paulo II (inaugurado em 2000), o Centro Desportivo e Profissionalizante de Boiadeiro – CEDEP (reformado e reativado após um caso de homicídio ocorrido 1999), o Centro de Orientação da Família (inaugurado em 2003), além da reforma de diversos centros comunitários, alguns dos quais hoje são modelos de referência para essa comunidade, beneficiando, em mais de uma década, milhares de jovens.
Compartilhamos uma visão de desenvolvimento integral da pessoa que acredita que, no caminho em busca da sua própria felicidade, o homem precisa ter acesso a condições físicas, materiais, humanas e espirituais para conseguir reconhecer e decifrar todas as suas necessidades, tornando-se capaz de realizar seus desejos mais profundos. Guiados por essa visão, apoiamos a construção da Igreja Jesus Cristo Ressuscitado em Novos Alagados. Financiada graças à caridade de uma família italiana fortemente comprometida com a comunidade, a Igreja integra um centro socioeducativo e esportivo. Foi nesse espaço socioeducativo que agora foi inaugurado mais um projeto. A iniciativa, uma parceria entre a suíça Fundação STM, a AVSI e a Paróquia Jesus Cristo Ressuscitado, permitiu a instalação de um centro de informática que irá beneficiar de forma gratuita 600 moradores por ano (a partir de 12 anos de idade), através da oferta de cursos em informática básica.
O evento de lançamento do projeto fez parte da organização da festa da paróquia. Assistindo à missa, ouvindo os cantos e o tocar dos sinos, observando a atenção das pessoas ao que acontecia ao redor, sentindo o silêncio durante a liturgia, notando os rostos iluminados durante a confraternização da comunidade, percebi o surgimento de algo novo: uma humanidade incomum que me enche de esperança em um futuro mais promissor para Novos Alagados.

Fabrizio Pellicelli, Diretor geral da AVSI Brasil

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

Volta ao início da página