Escritor muçulmano, YOUNIS TAWFIK explica por que este êxodo é um “golpe fatal” para a identidade de todo o Oriente Médio
“Nasci à sombra de um campanário. Estranho para um muçulmano, não é verdade? Mas não foi por opção minha, nem dos meus pais, também nascidos naquele velho bairro no coração de Mosul, a antiga Nínive”. Younis Tawfik, intelectual de origem iraquiana, chegou à Itália em 1979 fugindo do regime de Saddam Hussein, depois de passar a sua juventude na “capital” do Norte do país. O campanário de que fala é o da igreja latina construída em 1873 pelos dominicanos; o bairro era o mais multiconfessional da cidade, centro da atividade comercial. No café da praça encontravam-se jovens e velhos, estudantes, intelectuais e artistas, gente que em grande parte tinha nomes de profetas citados na Bíblia ou no Corão.
“Vivia-se lado a lado, estudava-se lado a lado, todos filhos de uma única nação, todos iraquianos. E, hoje, vendo a calamidade que se vive lá, choro pensando que estão eliminando a alma do meu país. Em nome de uma concepção nociva do Islã, os jihadistas destruíram igrejas, conventos, mesquitas, museus. Causa-me arrepios pensar que a igreja dos dominicanos, depois de sofrer atentados e devastações, se converteu na sede do tribunal islâmico instituído pelo ISIS, onde, em nome da sharia, cortam as mãos dos ladrões. Está morrendo a civilização no vale de Nínive, o vale da civilização”.
Bandeiras negras. Tawfik é escritor e poeta, que se dedica sobretudo à divulgação da literatura árabe. Publicou muitos livros, foi membro da Consulta para o Islã na Itália, instituída em 2005 pelo então ministro Beppe Pisanu, vive em Turim, onde fundou o centro cultural italo-árabe “Dar al-Hikma”. A sua vocação literária começou a tomar forma enquanto estava no ensino médio e frequentava a escola al-Sharqiyya, construída em 1905, quando o Iraque ainda estava sob o domínio otomano. Desde então escrevia poesias e breves contos, publicando em jornais e revistas nacionais. Nos anos escolares nasce o amor por Dante graças a um professor cristão, Adib, nativo do seu mesmo bairro, que lhe transmitiu a paixão pela Divina comédia. E o apresentou a padre Joseph Habbi, um franciscano que tinha estudado em Roma, e que se tornou membro da Academia científica iraquiana, grande estudioso do poeta italiano. A paixão por Dante e o clima sufocante que se criou no país comandado pela mão de ferro de Saddam Hussein o levaram a imigrar: joga-se no estudo do italiano e pode finalmente gozar os versos da Divina comédia na língua original.
Tawfik nunca cortou o cordão umbilical com a sua terra. E no verão passado, quando as bandeiras negras do ISIS entraram em Mosul e cinco mil famílias tiveram que abandonar as suas casas, o coração dele estava cheio de amargura. “Obrigaram-nos a escolher entre a conversão ao Islã, o pagamento da jizia e o abandono de todos os seus bens. Foi um êxodo em massa, agora estão espalhados pelo Curdistão, junto de muitos outros iraquianos vítimas daquela barbárie. Mas os cristãos de Mosul têm mais direito do que nós, muçulmanos, a ficar naqueles territórios que ocupavam antes da conquista islâmica, e nós temos o dever de os fazer regressar. É como se tivessem expulsado os donos da casa da sua habitação. Mas o que é um Oriente Médio sem cristãos? É uma contradição dos termos, a perda da alteridade seria um golpe fatal à nossa identidade iraquiana, que cresceu à sombra da grande árvore da convivência”.
Fé e Razão. Será possível evitar que esta árvore seja cortada? Tawfik está convencido de que a razão acabará dominada pelo fanatismo, e recorda um encontro que marcou a sua vida. Em 12 de setembro de 2006, no seu discurso na Universidade de Ratisbona, Bento XVI atribuiu à distorção da relação entre fé e razão a causa de tantas dificuldades com que o mundo islâmico continua a debater: “Não agir segundo a razão é agir contra a natureza de Deus”. Poucos dias depois, Tawfik é recebido pelo Papa em Castelgandolfo com os membros da Consulta para o Islã na Itália. “No final do encontro corri para cumprimentá-lo e lhe disse: ‘Obrigado por nos ter recordado Averròe e pela sua corajosa luta para reconciliar fé e razão’. Ele me olhou nos olhos e, com um sorriso, disse-me: ‘Então diga isso aos seus!’. Precisamos de gente que nos recorde isso, se quisermos que o Iraque e o Oriente Médio não traiam a sua vocação. E eu peço a Deus que Nínive torne a ser o vale da convivência”.
São homens que vivem o olhar de Deus
por Javier Prades
Padre Christian de Chergé, prior do mosteiro de Notre-Dame de Atlas, em Tibhirine, na Argélia, quando decidiu permanecer nesse lugar, embora consciente do risco de ser morto, coisa que tragicamente aconteceu logo depois, escreveu estas palavras: “Se me acontecer um dia – e poderia ser hoje – de ser vítima do terrorismo que parece querer envolver agora todos os estrangeiros que vivem na Argélia, gostaria que minha comunidade, a minha Igreja, a minha família, se lembrassem de que a minha vida foi doada a Deus e a este país. (...) A minha morte, evidentemente, parecerá dar razão aos que apressadamente me trataram como ingênuo, ou como idealista (...). Mas essas pessoas precisam saber que será saciada a minha curiosidade mais lancinante: então poderei, se Deus quiser, imergir o meu olhar no do Pai, para contemplar com Ele os Seus filhos do Islã como Ele os vê, todos iluminados pela glória do Cristo, frutos da Sua Paixão, investidos do dom do Espírito, cuja glória secreta será sempre de estabelecer a comunhão, brincando com as diferenças”.
O propósito do prior era tão formidável que sentia a necessidade de explicar, antecipadamente, o sentido do seu agir. Não porque fosse um gesto que poderia ser confundido com uma iniciativa humanitária ou de simples altruísmo. Ao contrário, suas palavras eram necessárias porque seu gesto assemelhava-se de maneira clara com o agir de Jesus. Diante das possíveis considerações de outros, que poderiam parecer até mais razoáveis ou piedosas, mas que continuavam a ser penúltimas, Chergé assumia uma posição “última”. Optava por se colocar totalmente na posição de Deus Pai. Não se conformava com nada que não fosse participação no Seu olhar amoroso sobre os homens, bons ou maus, cristãos ou não cristãos, inclusive os seus futuros assassinos.
O impacto que o filme Homens de Deus produziu levou a imagem e a fama desses monges a todo o Ocidente. Ficará, então, mais fácil também para nós, compreender por que o martírio é a forma suprema de testemunho cristão. Ajuda-nos este belíssimo trecho de João Paulo II: “O mártir, de fato, é a mais genuína testemunha da verdade sobre a existência. Ele sabe que se deparou, no encontro com Jesus Cristo, com a verdade sobre a sua vida e nada e ninguém poderá jamais arrancar-lhe essa certeza. Nem o sofrimento nem a morte violenta poderão fazê-lo retroceder da adesão à verdade que descobriu no encontro com Cristo. Eis por que até hoje o testemunho dos mártires fascina, gera consenso, é acolhido e seguido. Essa é a razão pela qual confiamos nas palavras deles: descobre-se neles a evidência de um amor que não precisa de longas argumentações para ser convincente, dado que fala a cada um do que ele, no fundo, já percebe como verdade procurada há tempo. Enfim, o mártir provoca em nós uma profunda confiança, porque diz o que nós já sentimos e torna evidente o que também nós gostaríamos de ter a força de expressar” (Fides et Ratio, 32).
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