No mundo contemporâneo, a Igreja não é apenas incompreendida; ela interpela e incomoda, pois insiste em pôr as perguntas que todos desejariam evitar. A poesia de Eliot revela a luta dos cristãos
Convidado a auxiliar em campanha de arrecadação de fundos para a edificação de uma paróquia nas proximidades de Londres, Eliot produziu os Coros de “A Rocha” em 1934. A obra – que, como o próprio título sugere, foi concebida para ser recitada em coro – aproveita o tema do convite, mas amplia seu sentido: o autor reflete sobre o significado de construir não apenas uma capela, e sim a própria Igreja no mundo contemporâneo. O poema começa por grave constatação: hoje, ninguém mais deseja a Igreja.
Viajei para Londres, a cidade no tempo enclausurada (...) Lá me disseram: temos aqui muitíssimas igrejas, E raras casas de pasto. Lá me disseram: Deixem partir os párocos. Os homens não carecem de Deus Onde trabalham, mas onde passam seus domingos (I, 19-24).
Qual o sentido, portanto, de construir outra paróquia numa cidade como esta, “no tempo enclausurada” (presa em seu próprio tempo, obcecada por seus afazeres cotidianos, obtusa diante do apelo do eterno)? É a própria Igreja a responder. Ela entra em cena conduzida pela mão de um menino, a lembrar que sem simplicidade de coração não se compreende sua linguagem, e é apresentada como a Rocha (o único fundamento para a edificação da sociedade humana), a Sentinela (a que “não dorme nem cochila” num mundo em que tudo é distração) e a Forasteira (a estrangeira, que não é aceita e compreendida). E ela principia por chamar a atenção para o deserto em que os homens vivem; com efeito, diz a Rocha, o deserto da falta de sentido, fruto da distração e do esquecimento, “não está decerto tão remoto / (...) O deserto se comprime a vosso lado no metrô, / O deserto medra no coração de vosso irmão” (I, 70-73).
É a este mundo-deserto que a Forasteira se dirige, pois os cristãos não podem escapar ao desafio imposto pelo momento histórico em que vivem: se eles não forem capazes de oferecer uma resposta válida aos irmãos que vivem neste mundo, tal como ele é e com toda a confusão que carrega, terão razão os que dizem ser o cristianismo uma doutrina que, embora possua certos aspectos admiráveis, está superada. Assim, apesar das gravíssimas acusações dirigidas à cultura contemporânea (sobretudo nos cantos I e III), Eliot afirma que o verdadeiro problema não são os “outros”, mas sim os próprios filhos da Igreja, que já não compreendem o sentido da fé herdada de seus pais, hoje reduzida a moralismo e ideologia ( “as justas relações entre os homens” ) ou a mero espiritualismo (a “cidadania do Céu” ). Em tom áspero, o autor nota a inutilidade da fé vivida dessa forma: com efeito, ninguém quer mais ouvir o que os cristãos têm a dizer, e estes, conformados com sua crescente irrelevância, parecem apenas aguardar o momento de serem definitivamente descartados (lançados num “monturo mais inútil que o do estrume” ). Por isso, a Rocha os interpela com firmeza: chegou-se a este ponto, diz ela, porque todos – a começar por seus próprios filhos – esqueceram do Cristo, a “pedra angular” .
“Aguardamos nas esquinas, e nada nos resta senão as canções que podemos cantar e que já ninguém deseja ouvir cantadas,
À espera de que no fim nos rojem sobre um monturo mais inútil que o do estrume”. Será que tão bem edificastes para que a pedra angular volvesse ao pó do vosso olvido?
Falais das justas relações entre os homens, mas não das que mantêm os homens com DEUS”.
“Nossa cidadania está no Céu”; sim, mas a que modelo e tipo pertence vossa cidadania sobre a Terra?” (II, 132-136)
Daí a importância da advertência feita pela Igreja logo no início de seu discurso: o que se espera dos cristãos não é que sejam bem-sucedidos em convencer os demais acerca das verdades da fé, ou mesmo que sejam irrepreensíveis e coerentes. O essencial é não perder de vista a semente, isto é, não esquecer que a fecundidade na história provém do Cristo mesmo, e não da força ou capacidade dos fiéis: “Eu vos digo: Aperfeiçoai vossa vontade. / Eu digo: Não penseis na colheita, / Mas apenas na semente que plantais” (I, 57-59).
Em suma, segundo Eliot, “A Igreja deve estar sempre em construção, pois que está sempre a desabar por dentro e desde sempre ameaçada por fora” (II, 159). E tal trabalho se reveste hoje, como no passado, do aspecto de uma luta – tema desenvolvido em intenso diálogo com o Antigo Testamento nos cantos IV e V, mas também abordado no canto VI, que discorre de modo dramático sobre o tempo presente. Assim, aos inimigos externos da Igreja (os cães “plenos de iniciativa” : V, 279), somam-se as ameaças internas, resultado da incúria dos cristãos, que jazem sob o sol, satisfeitos como répteis (V, 278). Conclui o autor: “nos rodeiam cães e répteis: por isso alguns devem trabalhar, enquanto os outros empunham sua lança” (V, 284).
No atual contexto, marcado por confusão da qual sequer os filhos da Igreja são poupados, urge pôr as ideias em seu lugar. Esse é o motivo de o canto VII, talvez o ponto culminante do poema, propor uma síntese da história humana, procurando explicitar, por um lado, qual é a natureza do cristianismo e, por outro, qual é o sentido da crise de nosso tempo.
Recorrendo a imagens do Gênesis e do Evangelho de João, diz o texto: “No princípio DEUS criou o mundo. Ermo e vazio. Ermo e vazio. E havia trevas sobre a face do abismo” (VII, 319). Os homens procuraram em vão por Deus, primeiramente na natureza, depois nas diversas religiões. Até que algo inimaginável ocorreu: “num instante predeterminado, [num] momento no tempo e do tempo” (VII, 336) a própria resposta tão longamente ansiada entrou na história. Este acontecimento, que seccionou e deu sentido ao tempo, gerou uma nova humanidade. Originado por um fato histórico, o povo cristão não se caracteriza por sua suposta superioridade moral, mas por não ser mais escravo do próprio mal: “Bestiais como sempre, carnais, egoístas, interesseiros e obtusos como desde sempre o foram, / E ainda outrora em luta, sempre reafirmando e restringindo os passos a um périplo de luz iluminado” (VII, 341-342).
Por outro lado, embora o cristianismo tenha sempre enfrentado resistências e perseguições, ao
discorrer sobre os desafios com que a Igreja se depara hoje, Eliot não esconde o fato de estarmos vivendo uma circunstância única na história: “Mas parece que algo aconteceu que antes jamais acontecera, embora não saibamos com certeza quando, ou por quê, ou como, ou onde. / Os homens não renunciaram a DEUS por outros deuses, dizem eles, mas por deus nenhum; e isto jamais acontecera antes” (VII, 344-345). Trata-se de um diagnóstico semelhante ao formulado por Péguy pouco antes: pela primeira vez desde o início do cristianismo, estamos assistindo à criação de uma sociedade consciente e voluntariamente não cristã – um mundo antirreligioso e, por isso mesmo, profundamente desumano. E é precisamente este traço inédito do atual momento histórico que representa uma provocação radical para a Igreja, a exigir que ela seja mais uma vez reconstruída desde seu fundamento, a pedra angular.
A densa reflexão deste canto desemboca na grave interrogação final: como foi possível chegar a este ponto? Quem é responsável por tal estado de coisas? Ou, nas palavras do poeta, “A Igreja deserdou a humanidade ou foi por ela deserdada?” (VII, 359). Da leitura feita até aqui, possível dizer que a questão propõe uma falsa alternativa. Em realidade, passou-se que ambas se distanciaram uma da outra: a humanidade, confiante nas próprias forças, acreditou ser senhora de seu destino e passou a professar “antes de tudo a Razão” (VII, 346); a Igreja, por sua vez, reduziu o fato histórico de Cristo a mera doutrina, como vimos. A insistência sobre o caráter duplo do desafio da Igreja (interno e externo), longe de insistir sobre o falso “nós contra eles”, aponta para a exigência de contínua conversão de todos – a começar pelos próprios cristãos.
Que tal situação não nos faça desanimar, porém. Os três cantos finais do poema propõem, cada um a seu modo, os motivos da esperança. O canto VIII estabelece uma curiosa analogia entre o presente e um dos momentos mais controversos e comoventes da história cristã: as Cruzadas. Sem entrar em polêmicas estéreis, o que Eliot pretende é demonstrar que aquela irresistível corrente humana foi gerada pela fé, e não pela “santidade” redutivamente entendida como coerência moral. O que salva o homem não é o moralismo, mas a fé, ainda que seja muitas vezes vivida de forma limitada e imperfeita: “Somente a fé conquistaria o que de bom fora alcançado. / A fé coesa de uns poucos, / Um pouco da fé de todos” (VIII, 394-396). A fé é o tijolo necessário para reedificar a Igreja, tema do canto IX. O cristão, ainda que envolvido em dor, é chamado a colaborar com a obra criadora de Deus, colocando os dons recebidos a serviço da edificação da beleza sensível no mundo. Neste hino de louvor à arte como participação na obra do Criador, o homem é exortado a colaborar com a construção do Templo, também em seu aspecto material: “Porque o Homem é corpo e espírito entrelaçados, / E deve pois servir como se ambos fossem um único operário” (IX, 442-446).
Por fim, no canto X, após a edificação da igreja, o autor adverte que a obra nunca está concluída ( “E que diremos no futuro? Que uma igreja foi tudo o que logramos construir?” : X, 459) e termina o poema com louvor a toda luz, por menor que seja, como sinal da Luz Invisível. Na arquitetura da obra, a ação de graças é a expressão de uma verdadeira comunidade, solidamente fundada na comunhão nascida da fé. Assim, prossegue a Igreja seu curso na história, “sempre em construção, e sempre em agonia, e sempre em restauração” (II, 150).
“Os Coros de ‘A Rocha’ podem ser lidos segundo uma sequência composta de três momentos. A sequência começa com o Coro no qual a posição da Igreja se contrapõe à posição de um mundo que não mais a deseja (I Coro). Os cristãos (II Coro) devem procurar resistir e viver, caminhar, lutar nesse mundo que não mais os deseja, mas com toda a consciência das suas falhas, dos seus defeitos, dos fardos a serem carregados, que são fardos seus e fardos herdados. Porém (III Coro) a questão mais grave é que eles mesmos, a própria Igreja, os próprios cristãos são investidos pelo ceticismo, pelo ceticismo e pelo materialismo do mundo inteiro, de toda a sociedade”
(Luigi Giussani, Le mie letture)
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