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Passos N.174, Outubro 2015

LEITURA

O espelho de Cristo

por Rafael Marcoccia

"São Francisco de Assis", de G.K. Chesterton, é uma biografia diferente da que estamos acostumados. Neste primeiro livro escrito por ele após sua conversão ao catolicismo, o autor busca inspiração em suas memórias e não foca em datas ou descreve eventos em sua ordem cronológica

A escolha de Chesterton por São Francisco de Assis está integrado a suas memórias familiares mais remotas e “que liga minha infância com minha conversão a muitas outras coisas, porque o romance de sua religião penetrou até mesmo o racionalismo daquela vaga época”. Há fatos relatados, claro, mas que Chesterton utiliza para ilustrar e revelar quem é a pessoa de Francisco, “um poeta cuja vida foi um poema”. O autor declara desse modo sua afeição a Francisco.
O objetivo desta biografia, bastante desafiador diga-se de passagem, mas cumprido com maestria, é levar o leitor “moderno” a compreender um pouco melhor a coerência de um personagem completo. “Abordando-o desse modo, podemos ao menos tentar compreender por que o poeta que louvou o seu senhor, o sol, costumava se esconder em uma caverna escura, por que o santo que tratava com tanta gentileza seu Irmão, o Lobo, era tão severo com seu Irmão, o Burro (como apelidava o seu próprio corpo). O que levou o trovador que disse que o amor incendiava o seu coração a se afastar das mulheres, o que fez com que o cantor que se rejubilava na força e na vivacidade do fogo rolasse na neve? O que levou a concluir a canção que exclama, com toda a paixão de um pagão: ‘Louvado seja Deus por nossa Irmã, a Mãe Terra, que produz variados frutos, a grama, e luminosa flores’ com as palavras: ‘Louvado seja Deus por nossa Irmã, a morte do corpo’”?
Antes de apresentar São Francisco de Assis, Chesterton diz que para descrever um homem é necessário muitas vezes descrever um mundo. O autor, assim, passa a retratar a Idade Média, desde o século IX até as Cruzadas. O estudo da Idade Média não entra como um pano de fundo, apenas um contexto histórico quase aleatório, mas como o único ambiente em que se podia refletir a alma de São Francisco de Assis. A transição dos séculos XII e XIII (período em São Francisco viveu) marca o despertar de uma nova mentalidade. Depois de um longo período de exaltação à natureza - da ideia de que se o homem caminhasse sempre pela estrada da razão e da natureza o progresso estaria garantido –, o cristianismo se revigora. Os homens se dão conta do seu pecado original, de suas limitações e o cristianismo vem como resposta, como a purificação dessa obsessão. Na prosa poética de Chesterton lemos: “Aos poucos, contra esse pano de fundo acinzentado, vai surgindo a beleza, como algo realmente novo e delicado, e acima de tudo surpreendente. O amor que volta não é mais o que um dia se chamou de amor platônico, mas o que ainda é chamado de amor cavalheiresco. As flores e as estrelas haviam recuperado sua inocência inicial. Considerava-se que a água e o fogo eram dignos de ser o irmão e a irmã de um santo. A purificação do paganismo finalmente se completara. Porque a própria água havia sido lavada. O próprio fogo havia sido purificado pelo fogo. A água deixara de ser aquela em que se atiravam os escravos para alimentar os peixes. O fogo não era mais aquele que servia para sacrificar crianças ao deus fenício Moloc. As flores já não tinham o cheiro das guirlandas colhidas no jardim do deus erótico Príapo; as estrelas deixaram de ser sinais da frieza distante dos deuses, frios como os fogos frios. Eram, todos eles, como coisas que acabaram de ser feitas e aguardavam novos nomes daquele que viria nomeá-las (...). O homem expulsara de si o último vestígio do culto à natureza, e podia assim voltar a ela”.
Então é chegada a hora em que Chesterton apresenta a vida e o homem Francisco de Assis. Para o autor, Francisco é santo não por praticar somente atos bons e fazer todas as coisas de maneira correta. Francisco é santo porque é capaz de olhar a fundo a sua humanidade, reconhecer seu pecado original, suas limitações e desproporção de Cristo; mas ao mesmo tempo, e por isso mesmo, ter o desejo de imitá-Lo e segui-Lo de maneira incondicional. Enfim: Francisco é capaz de dedicar toda a sua vida aos mais necessitados porque se reconhece como um deles ou talvez como o mais necessitado de todos. E porque leva com radicalidade o ensinamento da Igreja: “O homem veio ao mundo para servir; quem não serve, não vive”.
Para Chesterton, São Francisco de Assis pode ser relacionado a duas palavras que o descrevem na essência. A primeira é dependência. São Francisco percebe a si e todas as criaturas como dependentes totais do Criador, em que nada acontece sem Seu consentimento. São Francisco observa o mundo – e Assis, particularmente –, como se estivessem de cabeça para baixo. “(...) enquanto para o olho normal a imensa alvenaria de suas muralhas ou as maciças fundações de suas torres de vigia e de sua elevada cidadela a fariam perceber mais segura e mais permanente, no momento em que ela foi virada de cabeça para baixo, esse mesmo peso a faria parecer mais vulnerável e em perigo (...). Em vez de simplesmente sentir orgulho de sua forte cidade porque ela não podia ser tirada do lugar, ele se sentiria grato a Deus todo-poderoso por ela não ter caído; seria grato a Deus por não fazer cair todo o cosmos como um vasto cristal a ser despedaçado em estrelas cadentes. [Pois] quem viu o mundo inteiro pendendo de um fio de cabelo à disposição de Deus viu a verdade. Quem viu sua cidade de cabeça para baixo viu-a como ela realmente é”. A consciência dessa dependência total traz a São Francisco uma imensa gratidão, pois tudo é dado. E dessa gratidão, nasce o louvor por todas as coisas, em especial pela natureza ao seu redor.
E Chesterton assim introduz a segunda palavra que descreve São Francisco: amor. São Francisco amava profundamente Cristo. Para segui-Lo e imitá-Lo ofereceu toda a sua vida aos pobres. Abandonou tudo – trabalho, dinheiro, roupas, o sonho de ser cavaleiro, a família – para estar junto dos mais necessitados. Amando a Cristo, Francisco desejou ver tudo com o coração, ou seja, amar tudo aquilo em que os olhos pousavam. São Francisco ouviu a voz de Cristo dirigindo-se a ele a partir de um crucifixo dependurado na parede da Igreja de São Damião, pedindo-lhe que reconstruísse a igreja, e imediatamente reuniu pedras e começou a reparar o edifício. Vestiu trapos, com uma corda no lugar do cinto. Abraçou a pobreza como outros homens abraçam a riqueza; ansiou pelo jejum como outros anseiam por comida. Abraçou não apenas todos os homens e mulheres como seus irmãos e irmãs, mas todas as criaturas, grandes e pequenas. Viveu o amor de maneira radical porque tinha consciência de que tudo vem de Deus, e é bom.
Com seu testemunho de vida, seu coração vibrante e sua fé, São Francisco atraía outras pessoas que queriam ficar perto dele e viver como ele. Com o grupo de pessoas cada vez maior, foi com onze de seus companheiros, todos em trajes rústicos, solicitar ao Papa Inocêncio III a criação de uma nova ordem religiosa. O espírito franciscano, a partir de então, trouxe certo frescor ao mundo inteiro. E também um frescor à própria Igreja. A ordem franciscana fez a Itália viver uma febre de conversão e, nas palavras de Chesterton, “foi da natureza de um tremor de terra ou de uma irrupção vulcânica: explosão que lançou fora com uma energia dinâmica as forças acumuladas desde dez séculos, na fortaleza ou no arsenal do mosteiro, e dispersou todas as suas riquezas em todos os pontos da terra”.
Por fim, Chesterton apresenta São Francisco como espelho de Cristo, a refletir Sua luz como a lua reflete o sol. A humildade de São Francisco, no entanto, o impediu de jamais perceber isso. Ele “estava cheio do sentimento de que não havia padecido o suficiente para ser digno sequer de ser um discípulo distante de seu Deus padecente”. Não se considerava “digno nem mesmo da sombra da coroa de espinhos”. Porém São Francisco, o espelho de Cristo, teve literalmente o corpo trespassado pelas chagas de Cristo, tão grande era sua identificação com Ele.
São Francisco de Assis é muito rico e muitas das ideias apresentadas por Chesterton ficaram de fora desse texto por falta de espaço. Para descobri-las, cada um deve se empenhar na leitura, e certamente ganhará muito. Afinal, encontrar ou reencontrar com o testemunho de vida de São Francisco de Assis, um dos homens mais influentes da nossa história, conhecer e aprender com ele é sempre um presente. Um presente que a gente nunca se cansa de ganhar e de se maravilhar (ou se surpreender).


 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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