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Passos N.99, Novembro 2008

MÚSICA - DORIVAL CAYMMI

O Mar e o Trabalho

por José Eduardo Ferreira Santos e Raquel Viana

Compositor baiano deixa saudades. Sua voz forte e suas canções sobre o mar e o trabalho cotidiano do homem simples nos ajudam a olhar a postura verdadeira em cada gesto

No último dia 16 de agosto de 2008 faleceu no Rio de Janeiro, aos 94 anos, o cantor, compositor, violonista e pintor Dorival Caymmi, um dos maiores músicos da história da música brasileira.
Dorival Caymmi nasceu na Bahia, na cidade de Salvador, no dia 30 de abril de 1914, na Rua do Bângala, hoje Luiz Gama, no bairro de Nazaré. Nos anos 1930 foi para o Rio de Janeiro e teve seu primeiro grande sucesso, O que é que a baiana tem? (1939), gravado por Carmem Miranda, no filme Banana da Terra.
A partir daí se estabilizou na cidade e consolidou uma das mais belas carreiras da música brasileira.

Composições
Sua obra prima pela qualidade musical, além da expressividade ao descrever e revelar aspectos cotidianos do povo brasileiro, em especial da Bahia, que permanecem até hoje no imaginário popular.
Suas canções podem ser divididas em grandes linhas temáticas, como aquelas que falam do mar e dos pescadores, as canções praieiras, as canções sobre motivos do folclore, os sambas e as modinhas, serenatas e cantigas, conforme o próprio autor as classificou no livro Cancioneiro da Bahia (1947). É interessante perceber que cada composição de Caymmi foi lapidada pelo tempo, cuja síntese são versos que parecem se perpetuar na memória nacional.
Stella Caymmi, sua neta e biógrafa, listou um total de cento e vinte composições de Dorival Caymmi, entre inéditas e conhecidas, o que pode ser considerado um número reduzido em relação a outros compositores, mas nada que comprometa a qualidade e originalidade de suas composições (cf. Dorival Caymmi: o mar e o tempo. Stella Caymmi. São Paulo: Ed. 34, 2001).

A Bahia
Em muitas de suas canções Dorival Caymmi traçou um retrato inigualável dos modos e costumes da vida baiana, com suas festas, mistérios, paisagens, folclore, tipos humanos, religiosidade e a cultura local. Aliás, podemos dizer que foi por causa de suas canções que a Bahia se tornou conhecida e eternizada. Canções como São Salvador, Acontece que eu sou baiano, Saudade da Bahia, Vatapá, 365 igrejas, Eu vou pra Maracangalha, A lenda do Abaeté, Festa de rua, Saudade de Itapoã, dentre outras, são fotografias de uma cidade que ainda mantém a beleza cantada nos versos do compositor.
Em Caymmi as nossas tradições se reencontram, os velhos costumes e a magia da Bahia se refazem e se reapresentam aos nossos olhos, com simplicidade e requinte. O fascínio das ruas e dos tipos que só existem na Bahia, tudo está nas suas músicas: os vendedores, pescadores, as festas, as mulheres, as procissões, as ruas, as canções de ninar, as quadrinhas infantis, as canções de trabalho, as cantigas de roda, as tradições afro-brasileiras etc. Lendas, pregões, parlendas, cirandas e ditos populares também fazem parte de suas composições como Acaçá, Roda Pião, Fiz uma viagem, A preta do acarajé, Acalanto, Severo do pão, Dona Chica (Francisca Santos das Flores).

Os sambas
Os sambas de Dorival Caymmi são muito próximos dos sambas de roda do recôncavo baiano e são definidores, como O Samba da minha terra (1940):

O samba da minha terra
Deixa a gente mole
Quando se canta
Todo mundo bole

Eu nasci com o samba
No samba me criei
Do danado do samba
Nunca me separei
Quem não gosta de samba
Bom sujeito não é
É ruim da cabeça
Ou doente do pé


A voz e o violão
Certa vez alguém disse que o melhor intérprete das canções de Caymmi era ele próprio, e tinha razão. Com sua voz grave e seu modo único de tocar o violão Caymmi trouxe novidade e originalidade à história da música brasileira.
Escutar a voz e o violão de Caymmi é uma experiência intensa de beleza, porque ele é daqueles intérpretes que tomam conta do espaço, preenchendo o ambiente com as cores do mar e as histórias de pescadores. É uma presença que se impõe, sobretudo pela sua simplicidade e discrição.
No livro Caymmi e a Bossa Nova: o portador inesperado (Rio de Janeiro: Íbis Libris, 2008; nde), sua neta Stella descreve que como intérprete e violonista influenciou toda uma geração da MPB, inclusive os intérpretes e compositores da Bossa Nova, com os quais tinha forte ligação. Entre eles estão João Gilberto, Vinícius de Moraes e Tom Jobim.

Caymmi e o mar
Durante a sua carreira Dorival Caymmi dedicou muitas canções ao mar e especialmente dois discos com essa temática, o Canções praieiras (1954) e Caymmi e o mar (1957).
O mar é um tema recorrente em sua obra, e tem como característica particular o fato de sempre existir uma relação humana com esse mar e seus mistérios, ou seja, cada canção procura mostrar os dramas, as histórias, o trabalho, a vida e o amor das pessoas que lidam cotidianamente com o mar.
Essa relação do homem com o mar é revelada em canções como Pescaria (Canoeiro) , A jangada voltou só, O bem do mar, Quem vem pra beira do mar, Milagre e É doce morrer no mar. Em disco dedicado a este tema – Caymmi e o mar – interpreta músicas inigualáveis sobre o trabalho diário dos pescadores e as experiências vividas por estes homens, como o afeto, a oração, a gratidão, o relacionamento com Deus enquanto trabalham.

Minha jangada vai sair pro mar
Vou trabalhar, meu bem querer
Se Deus quiser, quando eu voltar do mar
Um peixe bom eu vou trazer
Meus companheiros também vão voltar
E a Deus do céu vamos agradecer


O mar e o trabalho
Poucos compositores dedicaram-se a abordar o tema do trabalho como atividade cotidiana com a consciência de uma dependência e de entrega diante da própria tarefa, como Dorival Caymmi.
Sendo o mar, particularmente o mar da Bahia, sua principal fonte de inspiração, algumas de suas canções sobre o tema são fotografias eternizadas da cultura dos pescadores, de homens que ganham o seu sustento no dramático, incerto e misterioso relacionamento com a grandeza infinita das águas do mar.
Interpretada em um dos mais belos discos feitos na história da música brasileira, Caymmi e seu violão (1959), a canção Pescaria (Canoeiro) ilustra, como um filme, todo o processo que envolve o trabalho dos pescadores. A primeira parte é uma contínua mostra do seu trabalho braçal, cuja cadência parece repetir os seus movimentos. Na segunda parte aparece o sentido do trabalho, que se identifica com o seu fruto, com aquilo que ele vai gerar (“presente pra Chiquinha, presente pra Iaiá”), realização de si e daqueles que fazem parte de sua vida.

Ô canoeiro
Bota a rede
Bota a rede no mar
Ô canoeiro, bota a rede no mar
Cerca o peixe
Bate o remo
Puxa a corda
Colhe a rede
Ô canoeiro, puxa a rede do mar
Vai ter presente pra Chiquinha
E ter presente pra Iaiá
Ô canoeiro, puxa a rede do mar
- Louvado seja Deus, ó meu pai


Mas o trabalho que não é vivido sem essa relação com o infinito não é expressão da pessoa, por isso na canção há um momento crucial, que é aquele onde o pescador agradece a Deus pelo fruto do seu trabalho, com uma louvação, dizendo: “Louvado seja Deus, ó meu pai”.
Assim, todo trabalho tem como finalidade última nos ligar ao mistério criador da realidade. Para o homem simples essa é uma relação cotidiana, onde não há separações e contradições, mas algo que continuamente é buscado em cada ato, cada gesto, cada tarefa a ser realizada. Isto dá à obra de Caymmi um caráter extremamente religioso.

O mar
Presente nos discos Caymmi e o mar (1957) e Caymmi e seu violão (1959), O mar é uma canção que se assemelha a uma sinfonia. Sua estrutura carrega momentos de tensão, drama, mistério, calmarias, refletindo a relação com uma realidade diferente de nós, diante da qual é necessário respeito pela sua grandeza infinita que se impõe e que gera estupefação.
A canção conta a dramática história do pescador Pedro, que sai para o trabalho e não retorna, tendo morrido no mar, deixando triste e desconsolada a Rosinha de Chica, que enlouquece.
Caymmi, para descrever esse acontecimento, parte, primeiro, dessa estupefação diante da beleza e mistério que o mar evoca, em versos que apresentam essa beleza, mostrando que a pessoa não se contenta somente em admirar essa beleza, mas quer entrar em contato com ela, se relacionar. Por isso, apesar dos riscos, os pescadores se lançam ao mar na sua labuta diária;

O mar
Quando quebra na praia
É bonito... é bonito
O mar
Pescador quando sai
Nunca sabe se volta
Nem sabe se fica...
Quanta gente perdeu
Seus maridos... seus filhos
Nas ondas do mar
O mar
Quando quebra na praia
É bonito... é bonito
Pedro vivia da pesca
Saía no barco
Seis horas da tarde
Só vinha na hora do sol raiá
Todos gostavam de Pedro
E mais do que todas
Rosinha de Chica
A mais bonitinha
E mais bem feitinha
De todas as mocinha lá do arraiá


Como nas outras canções, o trabalho tem um sentido muito concreto, carrega sempre uma responsabilidade última, afetuosa diante da própria vida, das próprias necessidades e daqueles que lhe são dados. Desse modo, o trabalhador é aquele que respondendo ao seu ofício cotidiano constrói a vida de outras pessoas.
O fato central dessa história está no momento em que a certeza de que Pedro retornaria da pescaria cede lugar à fatalidade, o que faz com que a vida de Rosinha de Chica se encaminhe para outro destino, por causa de sua dor, levando-a à loucura.

Pedro saiu no seu barco
Seis horas da tarde
Passou toda a noite
Não veio na hora do sol raiá
Deram com o corpo de Pedro
Jogado na praia
Roído de peixe
Sem barco, sem nada
Num canto bem longe lá do arraiá
Pobre Rosinha de Chica
Que era bonita
Agora parece que endoideceu
Vive na beira da praia
Olhando pras ondas
Andando... rondando
Dizendo baixinho:
- morreu... morreu...
- morreu, oh...


Mas não termina assim. Depois de todo o drama mostrado, volta, como um conforto, a primeira frase da canção, que reintroduz a beleza do mar. O que prevalece não é a morte, a dor ou a loucura, mas a vida, a beleza como expressão da verdade que se deseja, de onde tudo nasce e para onde todas as coisas, quaisquer que sejam, devem retornar.
É esta percepção do Mistério que domina toda a obra de Dorival Caymmi e que o torna um dos maiores compositores brasileiros dos últimos tempos. Uma obra onde a leveza, a simplicidade e até o bom humor, ao abordar temas complexos como o trabalho, a dor, o amor, a morte, sem ser superficial e sem banalizar, refletem uma religiosidade continuamente presente. A comoção e a familiaridade que experimentamos diante de temas tão particulares – o mar, a Bahia, os pescadores - revelam o caráter universal do seu trabalho, pois toca o nosso coração naquilo que ele tem de mais caro - as exigências de beleza, de amor, de justiça, de verdade - e a necessidade do relacionamento com Alguém presente, real, maior do que nós, que as realiza.

O homem e a obra

Na década de 1990, a obra de Dorival Caymmi ganhou dois importantes registros: um songbook em dois volumes, com 98 canções cifradas e com as respectivas partituras revisadas pelo próprio compositor e uma série de quatro CD, reunindo 82 canções interpretadas por mais de 100 músicos, ambos produzidos por Almir Chediak e editados pela Lumiar Editora. Os songbooks contam ainda com textos introdutórios de críticos sobre a obra do autor, além de entrevista e muitas fotos.
A trajetória de Dorival Caymmi ganhou no ano de 2001 um precioso documento: a sua biografia, escrita por Stella Caymmi, sua neta. Com riqueza de informações e muitas fotos, o livro é uma obra indispensável para quem quiser conhecer melhor o compositor.
Em 2000 é lançada a caixa de CDs Caymmi: amor e mar (EMI), contendo muitos discos de Dorival Caymmi e ainda um CD-bônus, onde há interpretações de outros importantes músicos brasileiros da sua obra, organizada por Carlos Alberto Sion e se constitui um belo trabalho para quem quiser se aprofundar no universo musical do compositor baiano. A caixa conta com um belo trabalho nos encartes que trazem as capas originais, as letras e ainda um pequeno libreto com alguns textos escritos por críticos musicais que analisam aspectos da obra caymmiana.
Muitos foram os artistas que interpretaram as canções de Caymmi, dentre eles Gal Costa, Jussara Silveira, Caetano Veloso, Maria Bethânia, Chico Buarque, João Gilberto, Ary Barroso, Clementina de Jesus, Elza Soares, Adriana Calcanhotto, dentre outros.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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