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Passos N.99, Novembro 2008

DESTAQUE - O PAPA NA FRANÇA

No coração da cultura

por Silvio Guerra

Dia 12 de setembro, Laurent Lafforgue estava lá, entre os setecentos intelectuais que foram ouvir o Papa no Collège des Bernardins. Um pouco antes conversou com Passos sobre o que esperava dessa visita. Agora nos explica porque o encontro “foi uma graça”

“Foi uma graça!”. Assim Laurent Lafforgue, um dos maiores matemáticos do mundo (em 2003 ganhou a cobiçada Medaglia Fields, uma espécie de Nobel do setor), define o discurso de Bento XVI no Collège des Bernardins, ao qual esteve presente. Lafforgue, que com apenas 41 anos de idade conseguiu uma cadeira na Academia de Ciências de Paris, na véspera da visita do Papa à França saiu a campo para defender o direito de o Papa se dirigir ao mundo científico. Hoje relata por que ficou tão impressionado com as palavras de Bento XVI.

O que mais apreciou no discurso no Collège des Bernardins?
A inteligência e a simplicidade de um pensamento sensato, que vai direto ao coração das questões essenciais. Isso é uma bênção. Essa lição faz bem a qualquer pessoa que a receba.

Por que a relação entre fé e razão ainda é o coração da questão?
O encontro e o diálogo entre fé e razão permanecerão atuais enquanto houver homens sobre a Terra. Em nossa época, tal diálogo foi e continua sendo decisivamente conflituoso: por isso nossas sociedades (como, no fundo, cada um de nós) vivem tão dilaceradas. Como todas as questões verdadeiramente importantes, essa do diálogo entre fé e razão jamais será superada, precisa ser aprofundada infinitamente.

Todo o discurso no Collège dos Bernardini está centrado no fundamento último de cada cultura...
Para Bento XVI, esse fundamento é “a busca de Deus e a disponibilidade para ouvi-Lo”. Na Esplanada dos Inválidos ele também disse: “Jamais Deus pede ao homem o sacrifício da própria razão! Jamais a razão entra em contradição real com a fé!”. Justamente por isso é possível uma verdadeira cultura. No aeroporto de Tarbes-Lourdes-Pyrénées, o Papa afirmou: “Considero que a cultura e seus intérpretes são o canal privilegiado do diálogo entre a fé e a razão, entre Deus e o homem”. Estou tentado a ler aí nada menos que uma definição da cultura, pela sua mais profunda razão de ser: o fundamento último da cultura reside no fato de ela ser o lugar de diálogo entre a fé e a razão. Em 1980, na Unesco, João Paulo II disse que “a nação existe mediante a cultura e pela cultura”. Podemos compreender assim essa afirmação, citada por Bento XVI no discurso aos bispos da França: toda nação histórica encarna uma forma particular de diálogo entre fé e razão, entre Deus e o homem.

Como esse tema pode ajudar a enfrentar o desafio da educação hoje?
Para educar é preciso, antes de tudo, ter uma ideia de qual é o fim do homem. Como lembrou o Papa na Esplanada dos Inválidos, é “a felicidade de viver eternamente com Deus”. No Collège dos Bernardini, ilustrou como essa busca de Deus justifica, constrói e orienta a cultura. E o fez de um modo muito concreto, falando de gramática, ciências profanas, escolas, bibliotecas, canto, música, hermenêutica... A cultura, por definição, é transmitida no momento mesmo em que se desenvolve. E essa transmissão da cultura é o objeto da educação. O discurso do Santo Padre recupera, pois, o fundamento último da educação.

O Papa disse que as “raízes da cultura europeia estão na busca de Deus”. Numa cultura laica, sobretudo como a francesa, essa não é uma afirmação discriminatória em relação aos que buscam, mas que não necessariamente sabem que estão à procura de Deus?
Há várias décadas temos sido testemunhas da autodestruição da cultura e da escola no Ocidente. Esse processo foi tão rápido e radical porque a maior parte dos representantes da cultura deixaram, no próprio íntimo, de crer nela. Isso porque a cultura e o saber (como muitos outros aspectos da vida) perderam o seu fundamento último. Creio nunca ter ouvido um discurso tão adaptado à recuperação do fundamento último da cultura, nem palavras tão fortes em favor da gramática e das letras. Palavras que o Papa encontrou em Jean Leclercq: “No monaquismo ocidental, escatologia e gramática estão intimamente ligadas uma à outra... O desejo de Deus inclui o amor à palavra”.

Os laicos objetarão que a gramática e as letras podem prescindir de qualquer referência Deus.
Sim, Mas, então, por que, nas últimas décadas, o ensino da gramática e das letras se deteriorou tanto? Se querem provar que a cultura e a sua transmissão podem prescindir de Deus, precisam fazer apenas uma coisa: recriar uma cultura e uma escola laicas, dignas desse nome! Um programa amplo... O Papa ilustra a verdade daquilo que diz com a qualidade maravilhosa do seu pensamento e do seu ensinamento. Cabe a nós, católicos, mostrar-nos dignos do exemplo que ele nos dá.

O Papa disse que a Palavra “introduz na comunhão com todos os que caminham na fé”. Discursando no Meeting de Rímini de 2007, o senhor falou do “caráter comunitário do trabalho dos matemáticos”, unidos na busca da verdade. Encontrou um desenvolvimento dessas suas ideias naquilo que o Papa afirma?
Os matemáticos estão voltados para a busca de verdades que não dependem de nenhum deles, para poder compartilhá-las uns com os outros: cria-se, assim, uma ligação comunitária. Mas Bento XVI fala de algo muito mais forte: “A Palavra que abre o caminho para a busca de Deus é uma Palavra que diz respeito à comunidade” e “nos torna atentos uns aos outros”. Em resumo, é a Palavra mesma que cria a comunhão. Dessa comunhão a comunidade dos matemáticos nada mais é que uma figura, uma imagem necessariamente parcial e imperfeita.

O que mais o impressionou na visita de Bento XVI e que valor ela teve para a sua experiência de cristão?
Para mim, significou muito. Pessoalmente, o momento mais importante foi a Missa na Esplanada dos Inválidos, no dia de São João Crisóstomo (chamado de “doutor eucarístico”): na homilia, o Papa recordou de forma admirável aos nossos corações que a Eucaristia é o centro da vida cristã. Estou convencido de que essa visita se revelará importante para a Igreja toda e para a sociedade francesa em particular, dando frutos duradouros.

E como matemático, o que achou?
Ser um matemático cristão é, geralmente, algo incômodo. No meu ambiente, são raros os cristãos, efeito da dramática cisão histórica entre fé e razão. Para todos os demais – ou quase – a imagem da Igreja é aquela imposta pela mídia: estão convencidos de que o catolicismo não tem riquezas intelectuais (na realidade, não as conhecem), e por isso o desprezam. As comunidades cristãs que conheço foram, muitas vezes, induzidas a se desinteressar por essas riquezas que existem na tradição da Igreja, tanto que o antiintelectualismo fincou pé muito firme nesse meio (outro efeito da cisão entre fé e razão). Como matemático cristão, pois, me sinto um estrangeiro tanto entre os cristãos quanto entre os matemáticos. Depois do discurso no Collège des Bernardins, porém, até meus colegas matemáticos – apesar dos preconceitos – tiveram que reconhecer que ali estava um grande espírito, que pelo menos merece ser levado em consideração. Enquanto as comunidades cristãs viram nele um exemplo extraordinário de inteligência colocada a serviço de Cristo com simplicidade e humildade. Não consigo expressar o quanto isso me deixa feliz!

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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