Os tiros perto de casa. A ajuda às famílias. A contemplação e a prece numa terra martirizada, onde a busca de um pouco de beleza parece loucura... A vida no mosteiro trapista de Azeir, na Síria, construído por cristãos, xiitas e sunitas. Qual é o diálogo que nutre, quando se está no centro do conflito?
As cinco monjas ouviram os tiros de metralhadoras bem pertinho, a poucos metros dos muros da casa. Na zona onde está o mosteiro trapista, próximo ao vilarejo de Azeir, exatamente na metade do caminho entre Homs e Tartous, nestes quatro anos houve diversos conflitos entre os rebeldes e os militares de Assad. Uma posição estratégica: no centro da Síria, com uma visão de 360 graus que alcança o mar e as montanhas do Líbano. Por isso, as Irmãs, durante os combates, temiam que fossem obrigadas a ir embora, a deixar o mosteiro, em nome da segurança delas: mas não foi necessário. Só por três noites tiveram que descer ao vilarejo para dormir num apartamento colocado à disposição delas pelo pároco. O resto do tempo ficaram ali. A um passo da guerra.
Aquele período de “combates na porta de casa” revive nas palavras da Irmã Marta, superiora de Azeir. Ela esteve na Itália por um mês e fui encontrá-la, junto com alguns amigos de Florença, com os quais nasceu uma relação nestes meses, em Valserena, no mosteiro onde começou essa história. Ela conta: “Depois das cinco horas, sabíamos que precisávamos prestar atenção, não sair de casa. Mas nestes anos todos nunca houve nada diretamente contra nós ou contra o vilarejo. Claro, no início não sabíamos disso e portanto um pouco de medo sempre existiu. O Senhor não nos pede mais do que podemos suportar. Nos levou para um lugar onde foi possível permanecer, e lá nos tornamos uma presença para todos. Somos as Irmãs deles”. Não só para os cristãos.
Agora a situação parece mais tranquila. Mas qual o significado de uma presença cristã de oração e contemplação nessa terra afligida pela guerra, numa região onde quase todos, em volta, são muçulmanos (alauítas, em sua maioria, ou seja, xiitas, e os demais, sunitas)? Desde que lá chegaram, há cinco anos, a preparação do terreno e o início da construção do mosteiro garantiram trabalho para diversos moradores dos vilarejos ao redor. Sunitas, xiitas e cristãos, lado a lado, cavaram os alicerces, prepararam o cimento, recolheram as pedras para a capela e para os edifícios que, aos poucos, foram surgindo. E se acaba o material..., então inventam outras possibilidades de trabalho, para não ter que mandá-los para casa: muretas, vielas, drenagem do terreno...
O mosteiro, na medida do possível, é autossuficiente, com o poço para o abastecimento de água, a horta, o gerador de energia. Com frequência falta combustível (diesel). Então, é preciso paciência, um pouco de equilibrismo para fazer tudo nas horas em que tem luz. Além do Mediterrâneo, em Valserena, nunca faltou apoio. Os gêneros de primeira necessidade, naquela região, vêm geralmente do Líbano. O maior problema, inclusive por causa das sanções internacionais, é o câmbio: tudo se tornou caríssimo, sobretudo para os moradores dos vilarejos.
Por isso, as Irmãs procuram ajudar as famílias. Por exemplo, pagam as matrículas universitárias de alguns jovens, ou os meios de transporte para chegar à escola. Mas não é isso que faz delas “as nossas Irmãs”. É a presença delas, o testemunho de uma possibilidade de vida que não renuncia à esperança. “Simplesmente, nós estamos ali”, diz Irmã Marta. E estando, impressionam. Sobretudo por três aspectos: “A vida comunitária, isto é, o fato de sermos uma comunidade; a liturgia, que estamos aprendendo cada vez mais a celebrar em árabe, mas que impressiona para além da língua; a serenidade com que enfrentamos a vida quotidiana. Plantar flores, buscar um pouco de beleza dentro de um contexto de guerra, pode parecer uma loucura, na realidade é um reflexo do fato de que a alegria nos é dada por algo diferente. Esse é o nosso testemunho: quando a vida encontra o seu significado pleno na relação com Cristo, então mesmo em meio à destruição é possível permanecer ali e construir”.
Essa é a situação hoje. Mas para compreender o que levou essas Irmãs italianas à Síria e o que a presença delas está gerando é preciso voltar um pouco atrás. Depois da chacina dos sete monges de Tibhirine, na Argélia, em 1996, na ordem cisterciense nasceu o desejo de acolher a herança deles: o testemunho de uma vida dedicada a Deus num contexto não cristão. Na comunidade trapista de Valserena, esse desejo torna-se a decisão de abrir uma fundação. Onde? A Providência indica os passos a dar.
Por que aqui? As Irmãs, em contato com o padre Frans van der Lugt (o jesuíta que, depois, será morto em Homs, dia 7 de abril de 2014), são convidadas para uma visita exploratória à Síria, em Homs e Aleppo. Irmã Marta e madre Mônica, abadessa de Valserena, partem para essa terra desconhecida. Na realidade síria, em meio aos muçulmanos encontram cristãos de diversos ritos. Lembra Irmã Marta: “Tanto o padre Frans como alguns Bispos nos acolheram afetuosamente e encorajaram a nossa presença de oração. Havia uma estima e também um apelo explícito em relação à nossa forma de vida”. Em 2005, quatro Irmãos italianas se estabelecem numa casinha num bairro popular de Aleppo, habitado sobretudo por armênios e muçulmanos. Com a ajuda das Irmãs doroteias, entram em contato com essa nova realidade e começam a estudar o árabe. “Fizemos experiência de um verdadeiro ecumenismo. Por exemplo, só depois de um ano descobrimos que alguns amigos que encontrávamos diariamente, em nossa igreja latina, eram ortodoxos. Os cristãos dos vários ritos participavam indistintamente dos momentos de oração das várias confissões. Quantas vezes nós mesmas participamos da adoração na igreja greco-católica, ou na igreja armênia ou siríaca”.
A Síria, naqueles anos, era um país onde se podia conviver pacificamente. Irmã Marta e as coirmãs procuraram um terreno onde pudessem construir o seu mosteiro. Apresentam-se várias possibilidades. Depois, a indicação daquela colina, no centro da Síria. É um lugar muito bonito, simples e não turístico. Nas vizinhanças há dois vilarejos maronitas, mas o componente muçulmano, xiita e sunita, é muito forte. As monjas mudam-se para lá em 2010. Três meses depois, eclode a guerra. “Se tivéssemos ficado em Aleppo, provavelmente nossos superiores teriam pedido que voltássemos”.
Num vídeo amador, rodado na primavera por alguns amigos de Florença, vê-se a colina, o mar distante, as flores, os operários. Veem-se as monjas (cinco, uma outra veio depois) colhendo as olivas e também a liturgia em árabe. Mas a certa altura se ouve, no fundo, o barulho dos tiroteios. A guerra está ali. Falta tudo, há necessidades muito concretas... “E nós não nos esquecemos disso: por isso ajudamos também algumas famílias de Aleppo”, diz Irmã Marta. “Mas a ajuda material não basta. Sobretudo entre os jovens há o desejo de algo mais profundo. Essa situação dramática deixa a descoberto a questão sobre o sentido de ficar ali, sobre as motivações profundas do viver”.
Um dia vai ao encontro delas um rapaz que conheceram em Aleppo. Irmã Marta lhe diz: “Está difícil para vocês, não?”. E ele, sorrindo: “Na realidade, é agora que começamos a entender verdadeiramente o que significa viver como cristãos”. Ela levou essa frase para as outras Irmãs, na capela. Que diante do altar se tornou uma prece: “Senhor, essa situação dolorosa e absurda é uma ocasião para buscar a verdade na relação contigo. Para todos, cristãos e muçulmanos”. A partir daí, pode-se começar a construir.
Uma resposta mais profunda. Outro jovem de Aleppo, junto com um amigo, perguntou às freiras se podia vir com um grupo de escoteiros para ser ajudados na formação espiritual. “Eles vivem numa cidade devastada. Quando saem de casa não sabem se voltam. Mas têm esse desejo de crescer espiritualmente. Por isso dizemos que não basta levar comida e água (mesmo sendo coisas importantíssimas, prioritárias): é a profundidade de uma vida, a sua dignidade que precisa ser alimentada”.
Um jovem de Damasco, que teve o pai morto por um atirador, dentro da crise intui a necessidade de uma resposta mais profunda para a sua vida. Daí a exigência de uma direção espiritual. “Temos ainda algum problema com a língua, mas geralmente nos ajudamos com o inglês. E sobretudo com o coração. Assim a gente se comunica sempre”.
Falando da misericórdia, do amor de Deus, com um grupinho de jovens, a certa altura uma moça desabafa: “Mas nunca me falaram assim de Deus... Sim, me diziam: isso se pode fazer, isto não se pode fazer. Mas você está dizendo coisas diferentes”.
Nos fotogramas do vídeo aparecem construções ainda não terminadas. São umas dez casinhas onde quem quiser pode parar para compartilhar a vida de oração. Aos poucos se compreende, nos contatos do dia a dia, que o testemunho acontece através da vida delas. Irmã Marta continua: “Nesse momento especial, a nossa vocação se torna missionária em si mesma. Acompanhar a caminhada espiritual dos Irmãos e das Irmãs faz parte do que a Igreja do Concílio pede ao mundo monástico. Basta recordar, por exemplo, as belíssimas cartas do Papa Paulo VI aos monges. Ser monge é viver, na medida do possível, a relação com o Senhor que se torna o sentido da nossa jornada. Isso a gente compartilha. No silêncio. Na escuta e dialogando”.
Diálogo: outra palavra-chave da experiência dessas monjas, experiência quotidiana de encontro e confronto com uma fé diversa. No diálogo não há nem ingenuidade (“devo ser lúcido com o interlocutor, preciso conhecê-lo bem”) nem arrogância (“eu certamente tenho razão, e esperamos que Deus ilumine também você”).
Sublinha a superiora de Azeir: “O centro é sempre a pessoa, que é um mistério no qual o Espírito Santo age. No diálogo, no confronto com o outro, na realidade eu aprofundo também a minha identidade religiosa. Mas sei também que você tem o seu caminho, a sua relação com Deus. Não é o nosso esforço, o fato de sermos reciprocamente misericordiosos, acolhedores, bons, abertos, que cria o diálogo, mas o diálogo está em Deus. É Ele o centro; Ele é que faz unidade entre nós, porque é olhando honestamente e retamente para Ele – cada um segundo o caminho que Ele traçou – que podemos nos encontrar. Isso nos torna livres, nos liberta até do medo recíproco, da atitude de defesa. É um longo caminho, mas é possível, e é a missão que nos foi dada. Mesmo frente a esta guerra, construída nos gabinetes, alimentando os medos recíprocos”.
E é possível. Acontece, já hoje, em muitos encontros cotidianos. Inclusive nesta Síria tão desfigurada pela violência.
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