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Passos N.177, Fevereiro 2016

VIDA DE CL | Quênia

Uma outra medida

por Paolo Perego

Depois de Uganda, parada em Nairóbi, no Quênia, país no qual o Papa esteve no final de novembro passado. E aonde o Movimento chegou trinta anos atrás. Neste povo a religiosidade normalmente acaba em superstição. Mas tudo
muda se o problema da vida é “viver de verdade”


Há lama por toda parte nas favelas de Nairóbi. Grudenta, misturada com lixo. Vejo o Papa na TV e penso que ele caminha na mesma lama que pisei, pois estive na África pouco antes de Francisco ir ao Quênia durante a visita que incluiu a Uganda e a África Central. Em Kangemi, favela no nordeste da capital, o Papa fala da injustiça, da pobreza, da falta de trabalho. Denuncia um novo colonialismo que concebe a África somente como “parte de uma engrenagem gigantesca” a ser desfrutada. No entanto, diz aos moradores das favelas, “existe uma obstinada resistência do que é autêntico. E vocês são capazes de estabelecer laços que transformam a massificação de uma experiência comunitária onde se quebram as paredes do eu”.
Apenas algumas citações, mas só essas palavras já me reportam àquilo que também vi. “O que é autêntico, resiste”. Mas o que é autêntico? O que resiste? É a pergunta que nasce na lama de Kibera, a maior favela do mundo, onde se aglomeram um milhão de pessoas, no coração de Nairóbi. Ali caminhamos juntos, atentos para que ninguém se afaste do grupo, pois é perigoso. Entre barracas e quiosques se vende comida, chinelos, carvão... Os sapatos grudam na lama. A rua se abre, as lajes de metal das casas têm vista para trilhas cheias de gente e de lixo. Dali nascem, entre paredes de terra, vielas com meio metro de largura. O cheiro de borracha queimada e de pobreza entra queimando o nariz. Nenhuma igreja. No entanto, na cidade, elas estão por todo lado. “Muitos se refugiam ali por desespero. Evangélicos, batistas, seitas que pedem dinheiro e prometem a cura da Aids... Mas não incidem na vida”, diz Antonino, o amigo que me acompanha nesta visita. Um rosto aparece em uma portinha. Uma Irmã de Madre Teresa, em uma pequena Escola de Ensino Fundamental no meio da favela que acolhe uma centena de crianças. Levam-nas ali para que possam ter um futuro diferente, para protegê- -las da violência, ou simplesmente porque ali podem comer.

A escolha. Ali também estão André e Romana, e sorriem enquanto falam com as crianças. Vejo a beleza diante dos meus olhos. É a vida de Antonino, italiano, um dos rostos da Fundação AVSI em Nairóbi. E a de André, que chegou há pouco tempo para dirigir a ONG no Quênia. E de Romana, de Eldoret, região Oeste, que trabalha com eles, vestida elegantemente no meio dos barracos.
É a mesma beleza que encheu os olhos em Kahawa Sukari, periferia de Nairóbi, com os colaboradores da Escola Cardeal Otunga na vigília da festa pelos dez anos do Instituto que nasceu da vida do Movimento Comunhão e Libertação no Quênia. O próprio edifício, o novo refeitório, as cozinhas, mas também aquele vai e vem de jovens que preparam as coisas para o dia seguinte: a missa, um show e um almoço com as famílias. E, ainda, a beleza dos universitários durante a Escola de Comunidade em uma sala da Jomo Kenyatta University, ou de um jantar com famílias da Fraternidade, ou da casa de Antonino, Nino e André, Memores Domini que há anos ou há poucos dias compartilham a vida.
O Quênia é assim: lama e beleza, maravilhas e problemas. Falamos sobre isso nos últimos meses, e não apenas após os atentados da Páscoa 2015 em Garissa, pequena cidade no Leste, onde os terroristas islâmicos massacraram 150 universitários cristãos. Entre Shopping Centers, celulares e cada vez mais automóveis, o Quênia está entre os países africanos mais desenvolvidos, mas politicamente ainda é instável. Presa de tribalismo (“uma pedra na mão escondida atrás das costas”, como diz Francisco), corrupção e terrorismo. Diante de tudo isso, “vocês têm uma arma: a escolha. As dificuldades são desafios, oportunidades. (...) [Mas] é necessária uma educação, não apenas técnicas e políticas. (...) [É preciso] homens e mulheres que irradiem a verdade, a beleza e a potência do Evangelho que transforma a vida”, lembra Papa Francisco aos jovens quenianos.

“É para mim”. Durante a comemoração pelos dez anos da Escola de Ensino Médio, o pastor protestante quase grita quando fala ao microfone sobre seu filho formado na Otunga: “Olhem meus filhos. O mais velho está indo estudar nos Estados Unidos”. Ao ouvi-lo, Joakim Koech, diretor do Instituto e responsável pela comunidade de CL, diz rindo: “Está entusiasmado”. Casado com Romana, possuem seis filhos. Nicodemus, 17 anos, afirma: “Esta beleza é para mim”. Belas construções, sim... “Mas também os professores são mestres de verdade: em muitas outras escolas não é assim”, concorda Collins, um colega. “É uma das melhores escolas, ganhou muitos Prêmios”, diz Maureen. E Sammy completa: “Ninguém diz o que você deve fazer. Aqui, aprendemos a ser livres. Correndo o risco de errar”.
Este é Cristo, comenta Joakim: “O que sempre me fascinou no método de Dom Giussani é a aposta sobre a liberdade. É preciso ajudá-la a aflorar”. A realidade toda se torna provocação, e é algo que não fica só na escola: “Assim, com alguns, também começamos o grupo dos colegiais de CL. E muitos pais, tocados pelos filhos, começam a procurar um relacionamento. “Há uma grande necessidade. A questão é: do quê? E o que responde a ela?”.
Joakim e Romana, assim que encontraram o Movimento, tiveram contato com a meditação que Dom Giussani fez nos Exercícios dos universitários em 1994, Reconhecer Cristo. Foi revolucionário: “Vê-lo em vídeo nos Exercícios deste ano foi reviver ainda mais aquilo que aconteceu naquela época”. Foi uma medida nova da vida: “O empenho do Movimento com a educação, até a criação da Otunga, nasceu dali”. Primeiro, veio a Escola Profissionalizante São Kizito, com a presença dos padres missionários da Fraternidade San Carlo Borromeu, em 1986, até a Escola de Ensino Fundamental Little Prince, criada pela Fundação AVSI em Kibera, em 1999, e agora mantida pelo “apoio à distância”. Quando os sacerdotes italianos assumiram a paróquia de São José, em Kahawa Sukari, em 1997, também vieram, no tempo, a Escola de Ensino Fundamental Urafiki Carovana e a Creche Emanuela Mazzola.
“Eu não tenho filhos, mas essa escola, a Otunga, é minha. Descreve quem eu sou”, diz Camila a um grupo de Fraternidade “especial” que reúne os “velhos” dos primeiros tempos e os “jovens”. Ela e o marido Matteo, engenheiro, se mudaram de Milão para cá, e hoje recebem os amigos no jardim. O assunto acaba sendo a vida dos últimos tempos. Em volta, uma paisagem feita pelo pôr do sol africano e os filhos brincando.
Henry fala sobre a morte da mãe, ocorrida poucos dias antes. Ele é o diretor da Carovana, foi um dos primeiros a encontrar CL, junto com a mulher, Jane: “Muitos me telefonaram. Alguns arrecadaram dinheiro para o funeral. Eu não esperava”. Joakim replica: “Fui ao funeral, na véspera da festa da escola. Tinha mil coisas para fazer. Mas o que era importante? A amizade com Henry é o rosto de Cristo para mim. E preciso revê- -Lo”. Romana, poucos dias antes, tinha chamado a sua atenção: “A festa não é por algo que você tenha feito!”. Joakim não tem dúvidas: “Não era uma celebração: era algo que estava acontecendo. E só é possível reconhecer isso se continuar a pedir aquilo que tomou você”. Intervém Victoria, suíça que conheceu o marido, James, há cinco anos durante um estágio em Nairóbi: “O ponto é esse. Para economizar, alguns meses atrás precisamos nos mudar para uma casa menor, longe dos amigos. James começou um negócio próprio e a empresa ainda precisa decolar. A dificuldade foi grande. Obrigou- -me a entender que era chamada a viver ali aquilo que eu desejava. Começaram a acontecer fatos inesperados. Como a amizade com uma italiana, mãe de uma das crianças da creche de meu filho. Ela não ia à igreja há anos e, numa manhã, encontrei-a na missa. Eu não fiz nada. Só pedia a Jesus por mim. Agora, vê-Lo, tornou-se ela, as pessoas que encontro, as coisas que faço”. É uma outra medida: “Que faz você viver”, diz Romana, ainda lembrando da partida de Leo Capobianco, responsável pela AVSI durante anos e que voltou para a Itália há pouco tempo: “É difícil. Mas tudo é dom. Até um amigo novo, como André, que veio substituí-lo”. E foi dom a visita de Rose Busingye com as “suas” mulheres doentes de Aids do Meeting Point de Kampala, Uganda, em setembro: “Isso desafiou a um novo olhar sobre tudo. Foi como um novo início”, diz Antonino.

Ciprian e os ugali. Ver pessoas assim elimina o vazio. Como para John, poucos dentes e dois olhos penetrantes. Para encontrar-me com ele e com os amigos do seu grupo de Fraternidade, foi preciso percorrer 400 km em direção ao Norte, atravessar o monte Quênia e chegar em Mutuati. Uma rua feita de barracas e comércio, uma Missão e as casas das pessoas espalhadas nas proximidades. John perambulava, como sempre e como muitos, para preencher o dia. Via muitas pessoas, mas algumas eram mais felizes que outras. “Cinco anos atrás, fui com eles. Mudou minha vida. E pela primeira vez alguém me levou para conhecer Nairóbi...”, ri. E Josafat, 38 anos: “Interessaram-se por mim mais do que eu mesmo”. É a mesma coisa para Stanley, para Tabita... Cerca de quinze pessoas, em uma sala que fica numa rua de terra batida. A conversa é sobre o Movimento local. Sobre como Ciprian, hoje diretor de uma Escola Estatal, encontrou-o em Nairóbi, no início dos Anos Noventa. Quando voltou para casa, continuou a viver aquele encontro, envolvendo Silas, seu amigo de infância. Casaram- se com duas irmãs e hoje os dois têm mais de vinte filhos. Com a comunidade, cresceram também as obras. “Comecei a dar aulas. E nesse meio tempo começamos um Banco de Alimentos e uma Cooperativa. Nasceu também uma escola, a San Riccardo Pampuri”. No almoço, o cardápio é carne grelhada com ugali, polenta branca. “Para quem faço tudo isso?”, retoma Ciprian: “Essa é a questão. A realidade é o caminho onde nós crescemos na fé. E você se insere nela por você. Por isso vai à aula. É o que você procura que desafia os meninos”. As mesmas palavras de Antony, diretor da Little Prince de Kibera, uma “pérola” na favela.
Que o problema da vida seja “rever aquele vazio” também acaba sendo o tema da conversa durante um jantar na casa dos Memores. Paolo, professor que voltou para a Itália no ano passado, também está em Nairobi para o aniversário da escola. Também estão presentes Bebé, portuguesa que trabalha em Dadaab (ver Passos on-line) e Chrispine, queniana que em breve irá para Uganda. “O centro é Cristo, não o que nós fazemos. E isso desafia todos os dias a nossa vocação e o nosso trabalho”, é a síntese da discussão. Quem encontrou o Movimento nestes anos ficou fascinado com uma vida. Assim, penso em quando Dom Giussani dizia que as casas do Grupo Adulto são como mosteiros. “Viver aquilo nos tomou, não fazer uma associação”, diz Antonino. É a mesma coisa para os quatro padres da San Carlo. No domingo, na missa, é possível ver toda a vida que floresceu em volta deles. O perigo de atentados é real, mas os detectores de metal na entrada quase desaparecem entre os cantos e os abraços na saída, entre pessoas de todas as classes sociais.

Estar prontos. Padre Gabriel, junto com Simon, jovem trabalhador, acompanha o grupo dos universitários (CLU). Na noite da Escola de Comunidade, carrega em sua Toyota alguns jovens e os leva à universidade. Não é fácil deslocar-se, normalmente é perigoso. Há muitos postos de fiscalização. “Podem acontecer muitas coisas, inclusive morrer em um ataque num supermercado ou na universidade. Mas, por isso, vivo mais intensamente: queremos estar prontos”, disse Eunice, estudante de engenheira, depois do ataque em Garissa. Em uma sala, depois do canto, Daisy pede a todos que façam suas colocações “partindo daquilo que nos acontece”. Alguém fala do encontro com Alfredo, amigo italiano que veio falar sobre o trabalho: “Não veio nos dizer como fazer, mas compartilhar a sua experiência. Essa é a nossa companhia”. Patrick, por outro lado, fala de sua visita aos Universitários de Eldoret: “Vivemos a mesma coisa. Para eles, éramos a presença de Jesus, e eles para nós. Foi belíssimo”. E quem sabe o que dirão daqui a alguns dias sobre a visita do Papa.
Uma semana de beleza. Ao sair de Kibera, a calça fica cheia de lama. Mas o céu da África é espetacular. E percebo que aquele velho na esquina, entre o carvão e a carne pendurada, sorri. E o visual daquela menina é realmente perfeito. Lama e beleza. Há uma medida nova que permite apreciar tudo.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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