Em São Paulo, alguns estudantes universitários desejam aprender “as pilastras” do Movimento. Assim, aceitam a provocação de fazer uma atividade caritativa e começam a cozinhar para moradores de rua
Há pouco menos de 1 ano começou entre os universitários de São Paulo uma nova caritativa. Procuravam uma atividade que os ajudasse a aprender a gratuidade e por isso ficaram atentos aos sinais. Um dia, Madalena, a partir de uma conversa com um amigo seu, membro do Movimento dos Focolares, conheceu um trabalho com moradores de rua feito aos finais de semana, há mais de 20 anos, por voluntários na Paróquia Senhor Bom Jesus dos Passos, uma pequena e discreta igreja localizada entre as grandes avenidas Rebouças e Brasil. Seu entusiasmo diante do que tinha visto a fez contar a experiência aos amigos que, prontamente, organizaram-se para ir conhecer e decidiram que este seria seu gesto de caritativa, ou seja, um gesto guiado conforme Dom Giussani pensou, que poderia ajudá-los a se educar à consciência da verdadeira necessidade que têm.
Em pouco tempo se tornaram cerca de 20 jovens que começaram a participar regularmente, revezando-se entre os dois últimos sábados de cada mês. A proposta inicial? Ajudar a preparar e servir 200 refeições para moradores de rua. Algo muito concreto: descascar quilos de batata e cenoura, ajudar no cozimento, preparar as mesas, servir e limpar. A experiência que estão descobrindo vamos descrever um pouco a seguir.
Descobrir-se necessitados. Conta Cecilia, após sua primeira ida: “Eu fiquei surpresa pela atenção que as mulheres tinham na preparação da comida. Era uma comida completa que eu gostaria de comer. Fiquei maravilhada também com a ordem que era pedida aos moradores da rua no momento da entrada no salão. Para mim, inicialmente foi difícil olhar para eles, porque sempre me pediram cuidado com essas pessoas, por isso eu tinha um pouco de medo. Assim, ficar lá e servi-los não foi algo imediato para mim. Nasceu assim uma pergunta desde que fui lá: ‘Como é possível olhar estas pessoas como homens sem pensar logo nos limites deles, ou sem pensar muitas vezes que são um poucos loucos?’. Então, eu vou na caritativa porque eu quero aprender a amá-los como eu sou amada, também na loucura. E ver, por exemplo, o fato que pediam a todo mundo para entrar em ordem, foi para mim um sinal de que alguém já olhava esses homens não parando nos limites deles, mas querendo uma beleza também para eles, a mesma beleza que eu quero para mim”.
Karen, outra universitária, tenta me explicar o que tem vivido: “Existe uma música que diz: Keep my eyes to serve, keep my hands to learn (Mantenha meus olhos para servir, mantenha minhas mãos para aprender). Isso representa o que é o gesto pra mim! Eu consegui reconhecer uma amizade lá. Amizade com as pessoas que trabalham lá e estão lá sempre, pois nós só vamos uma vez por mês. Reconheço porque ela de alguma forma é essencial na minha formação como pessoa. Aquele também é um lugar que gera ainda mais o interesse pelo outro, não sei explicar ao certo o porquê. Acredito que seja o interesse pela necessidade do outro. Necessidade na ajuda que eles precisam para se preparar o jantar, organizar roupas, ajudar a servir o jantar. Lá tem cuidado, cuidado ao se preparar, cuidado ao servir, cuidado ao se falar com as pessoas, cuidado até mesmo entre nós que participamos da caritativa”. Com a mesma gratidão, outra amiga me responde: “A caritativa pra mim, é uma coisa nova. Já fiz trabalho voluntário na escola, mas não é a mesma coisa... Eu vou lá para ajudar a fazer um panelão de janta e eu acabo sendo ajudada, não porque é uma coisa bonitinha que eu saio de lá mais feliz simplesmente. Mas lá, cortando salsinha, me sinto útil e percebo que tenho essa necessidade de ser útil todo o tempo. Indo na caritativa essa necessidade se escancara e assim posso prestar atenção nos gestos do meu dia a dia”.
Muito curiosa e provocada pelo pedido de escrever sobre esta experiência, pedi para ir um dia com meus amigos conhecer o trabalho. Após ter chegado, rapidamente coloquei-me à disposição para ajudar no que fosse preciso, imaginando que ao trabalhar com eles eu poderia entender o que me contavam com tanta vida. É verdade que, para mim também foi difícil, quase impossível, olhá-los e não desejar estar junto de cada um realizando as tarefas necessárias.
Uma familiaridade impossível. Logo que cheguei, não consegui olhar para o espaço da cozinha e imaginar tudo que tinham me contado acontecer ali dentro: “É muito pequeno! É aqui que vocês cozinham para mais de 100 moradores de rua?”. Este foi o primeiro espanto! Era como já estar diante de um Milagre, algo divino, porque era evidentemente inconcebível imaginar fazer algo assim por um esforço próprio. Devido aos fogões, havia um calor muito grande, o que, em poucos minutos, começava a fazer suar qualquer um que se aproximava da cozinha. Coloquei o avental, peguei a faca e comecei a picar as verduras ao lado de Jenifer, uma garota de 19 anos. Quando pergunto quem é e por que está ali, ela me responde: “Meus pais me trazem desde criança e agora eu venho porque quero, já faz 9 anos que venho aqui”. O que faz uma menina como ela ser tão fiel a esse trabalho como voluntária? Antes que ela pudesse me responder, aproximou-se de mim um senhor da minha altura, cabelos brancos, olhos profundos e azuis como o céu, cheios de uma ternura infinita: é padre Vitor, o pároco da igreja e o primeiro a apoiar (pois não se considera idealizador) aquele gesto. Quando lhe perguntei como o trabalho havia começado, não hesitou: “De um olhar para a realidade”. Fiquei impressionada com a sua simplicidade e com a sua vivacidade ao me contar: “Uma paroquiana estava grávida e tinha insônia, então ficava durante a noite na janela observando a rua. Foi quando começou a ver muitas crianças que guardavam carros e decidiu fazer algo por elas”.
Após um tempo de conversa, contando das paroquianas muito ricas que cozinhavam “nessa cozinha” e serviam a refeição também no espaço “dessa cozinha” para quase 150 moradores de rua, dizia-me com um brilho nos olhos: “Loucura! Pura loucura!”. E ríamos como quem entendia se tratar de algo maior que nós. Eu reconhecia naquele instante, olhando para padre Vitor, uma familiaridade impossível para quem se conhecia há 15 minutos. Depois de me mostrar muito alegre todos os espaços construídos ao longo do tempo, contando-me de sua vida cheia de aventuras fascinantes por amor a Cristo, faz um silêncio súbito e me pede: “Agora me conte de você! Quero saber de você!”. Uma humanidade que parecia me fazer entender mais o que queria dizer Giussani: “O fato de nos interessarmos pelos outros, de nos comunicarmos aos outros, leva-nos a cumprir o supremo, aliás, o único, dever da vida, que é o de realizar a nós mesmos”. Era visível, experimentável, que eu estava ali naquela tarde rodeada de rostos e olhares realizados.
O valor da pessoa. Este encontro com padre Vitor havia me comovido de tal maneira que comecei a ir atrás de todos os voluntários que são parte daquele gesto há anos. O que acontecia ali que fazia meus amigos desejarem ir aos sábados partilhar o tempo, o coração, o olhar, o sentido da vida, com aqueles “desconhecidos”? Por que ali se podia “aprender a viver como Cristo” segundo sugeria Dom Giussani convidando-nos a participar da caritativa? Padre Vitor me apresentou Ana Maria, que me tomou pelas mãos com uma doçura cheia de disponibilidade, um sorriso leve nos olhos, e todo aquele “único bem ‘concreto’ que existe: a pessoa e o amor à pessoa”, uma afeição gratuita por mim, pelas amigas com quem trabalha, pelos moradores de rua dos quais ia recordando o nome sem maiores dificuldades. Mostrou-me o bazar e as roupas, explicando-me que um voluntário escolhia roupas, calçados ou cobertores, entregando a quem pedia. “Nunca deixamos de receber doações!”, diz. Ana Maria, Ítala, Maria... Cada uma contava à sua maneira o quanto lhes havia mudado a vida trabalhar ali! A elas se somavam agora mais 20 meninos universitários, agradecidos e desejosos, que eu olhava admirada enquanto trabalhavam aquele dia. Em pouco tempo eu já me sentia tão apaixonada quanto eles quando me contavam da caritativa.
Pedi para ir à Missa e chegando à igreja vejo aquele “hospital de campanha após a batalha”, que nos disse Papa Francisco: havia lugar para todos, desde os que dormiam e, mesmo assim, se podia ver a ferida da alma escancarada; os alcoolizados; os drogados; os travestis; o “louco”; aquele que olhava para o altar fixamente como quem sabe estar morrendo de sede; os apenas famintos; os distraídos; todos os leprosos de nossa época. Padre Vitor à frente era um sinal frágil e humano, concreto, de um Abraço totalizante.
Ao voltar para o salão, deparo-me com o que me haviam contado: mesas arrumadas com uma beleza singela e evidente. Os pratos servidos, os copos de suco, os talheres, como um banquete de festa. A cena para mim podia ser resumida nas palavras de Dostoiévski que vi Dom Giussani citando uma vez: “E nos aproximaremos, sem nos envergonharmos, e nos deteremos. E Ele dirá: ‘Meus filhos! Imagem bestial é a vossa e tendes a sua marca; mas aproximai-vos também’. E intervêm os sábios, e intervêm os inteligentes: ‘Senhor! Mas vais admitir estes também?’ E Ele dirá: ‘Pois eu os admito, ó sábios! Aqui os acolho, ó inteligentes! Porque nem um só deles se julgou nunca digno de tal mercê...’. E estender-nos-á as suas mãos, e nós outros nos entregaremos nelas e romperemos em pranto e compreenderemos tudo... Então, havemos de compreender tudo! E todos hão de compreender...”.
Atenção aos detalhes. Outro universitário, Thiago, diz: “No começo, ajudando com a comida e a roupa, eu deixava de me perguntar do que eles precisavam, tanto os moradores de rua, quanto os outros voluntários. Nós chegamos lá e fazemos o que nos é pedido pelos voluntários. Mas, nas últimas duas vezes, eu fui mais atento tentando entender: ‘Qual é a necessidade do outro?’. Com a pergunta de se basta o que nós fazemos. Porque eu fui percebendo, por exemplo, certa atenção em fazer a comida, que não é só pela alimentação, mas para que seja saboroso para eles também... certa maneira de organizar as roupas, para que tenha ordem e beleza... Um morador de rua uma vez me perguntou: ‘Onde você mora? Você mora na rua? Você tem medo de dormir na rua?’. E imagina! Imagina o desejo que ele tem de também ser compreendido por nós...”.
Comovo-me e volto a ler a provocação do texto O sentido da caritativa: “Qual é a necessidade do outro?”, porque essa necessidade corre o risco de parecer óbvia: comida, água, roupa, cobertor... E com a ajuda desses amigos, entendo mais as palavras que havia lido: “Trata-se da descoberta do fato de que, justamente porque nós os amamos, não é a nossa ação que os torna felizes; de fato, nem mesmo a mais perfeita sociedade, ou a organização mais forte e sábia, nem a maior riqueza do mundo ou a saúde mais perfeita, nem mesmo a beleza mais pura ou a civilização mais aprimorada poderá torna-los felizes. Somente um Outro poderá torna-los felizes”.
Guardo comigo, como uma espécie de síntese diante de tudo que vi, os olhos de padre Vitor enquanto me perguntava quais eram as palavras para ele mais importantes da Bíblia: “Para que todos creiam! E Giovanna, você sabe como? O que faz com que todos creiam?” – E eu, envergonhada, resisto a responder. Ele completa – “Que sejamos um. Que todos sejam um”. E continuou a olhar-me em silêncio como quem havia dito tudo.
O que é a caritativa senão esse se sentir “pobres, mas apegados a Ele”? Desejosos de sermos úteis! De vê-Lo! Como me fazia pensar Raquel: “Eu faço caritativa porque eu procuro usar o meu tempo de uma forma útil, ajudando os outros, e tentando fazer a diferença em algo. Ajudando as outras pessoas na realidade que nos é dada eu me questiono cada vez mais sobre a presença d’Ele nos momentos em que estou vivendo, o que me faz reconhecê-lo a todo instante.”
Um só com Quem nos faz um só com aquele homem da rua, com as ricas paroquianas, com as pessoas com quem trabalhamos, com o mundo inteiro.
Outra amiga me escreve: “Eu quero viver com a mesma felicidade e liberdade que vivo na caritativa, o meu trabalho na escola com as crianças. É isso que tenho pedido!”. De fato, foi como se depois de estar diante desses amigos, não fosse possível pedir nada menos que isso. Obrigada! Muito obrigada!
(publicado em Passos 180, maio/2016)
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