Trechos do discurso do Santo Padre por ocasião da entrega do Prêmio Carlos Magno. Cidade do Vaticano, 6 de maio de 2016
Ilustres Senhoras e Senhores! (...) Desejo reiterar a minha intenção de dedicar à Europa este prestigioso Prêmio com que sou honrado, e aproveitar o ensejo para, juntos, almejarmos um novo e corajoso impulso a este amado Continente. A criatividade, o engenho, a capacidade de se levantar e sair dos seus limites pertencem à alma da Europa. No século passado, ela deu testemunho à humanidade de que era possível um novo começo: depois de anos de trágicos confrontos, culminados na guerra mais terrível de que se tem memória, surgiu – com a graça de Deus – uma novidade sem precedentes na história. As cinzas dos escombros não puderam extinguir a esperança e a busca do outro que ardiam no coração dos Pais fundadores do projeto europeu. Estes lançaram os alicerces de um baluarte de paz, de um edifício construído por Estados que se uniram, não por imposição, mas por livre escolha do bem comum, renunciando para sempre a guerrear-se. Finalmente, depois de tantas divisões, a Europa reencontrou-se a si mesma e começou a edificar a sua casa.
Esta “família de povos”, que louvavelmente foi se ampliando, nos últimos tempos parece sentir como menos suas as paredes da casa comum distanciando-se por vezes, na sua consolidação, do luminoso projeto arquitetado pelos Pais. Aquela atmosfera de novidade e aquele desejo ardente de construir a unidade aparecem sempre mais amortecidos; nós, filhos daquele sonho, somos tentados a ceder aos nossos egoísmos, tendo em vista apenas os próprios interesses e pensando em construir recintos particulares. Estou convencido, porém, de que a resignação e o cansaço não pertencem à alma da Europa e que as próprias dificuldades podem revelar-se, fortemente, promotoras de unidade.
No Parlamento Europeu, tomei a liberdade de falar de Europa avó. Dizia que crescia, de diferentes partes, a impressão geral de uma Europa cansada e envelhecida, não fértil e sem vitalidade, onde os grandes ideais que a inspiraram parecem ter perdido o seu fascínio (...). Que te aconteceu, Europa humanista, paladina dos direitos humanos, da democracia e da liberdade? Que te aconteceu, Europa terra de poetas, filósofos, artistas, músicos, escritores? Que te aconteceu, Europa mãe de povos e nações, mãe de grandes homens e mulheres que souberam defender e dar a vida pela dignidade dos seus irmãos?
O escritor Elie Wiesel, sobrevivente dos campos nazistas de extermínio, dizia que hoje é de importância capital realizar uma “transfusão de memória”. É preciso “fazer memória”, distanciar-se um pouco do presente para ouvir a voz dos nossos antepassados. A memória irá nos permitir não só de evitar cometer os mesmos erros do passado, mas nos dará acesso também às conquistas que ajudaram os nossos povos a ultrapassar com êxito as encruzilhadas históricas que iam encontrando. (...) Precisamente agora, neste nosso mundo dilacerado e ferido, é preciso voltar àquela solidariedade de fato, à mesma generosidade concreta que se seguiu à II Guerra Mundial, porque “a paz mundial – disse Robert Schuman – não poderá ser salvaguardada sem esforços criativos à altura dos perigos que a ameaçam”. Os projetos dos Pais fundadores, arautos da paz e profetas do futuro, não estão superados: inspiram-nos hoje, mais do que nunca, a construir pontes e a derrubar muros. (...)
Esta transfusão de memória permite inspirar-nos no passado para enfrentar corajosamente o complexo quadro multipolar dos nossos dias, aceitando com determinação o desafio de “atualizar” a ideia de Europa; uma Europa capaz de dar à luz um novo humanismo baseado sobre três capacidades: a capacidade de integrar, a capacidade de dialogar e a capacidade de gerar.
Capacidade de integrar
Na sua estupenda obra A ideia de Europa, Erich Przywara desafia-nos a pensar a cidade como um lugar de convivência entre vários órgãos e níveis. Estava ciente da tendência reducionista que está presente em cada tentativa de pensar e sonhar o tecido social. A beleza, encontrada em muitas das nossas cidades, deve-se ao fato de serem capazes de conservar ao longo do tempo as diferenças de épocas, nações, estilos, perspectivas. Basta olhar o inestimável patrimônio cultural de Roma, para se confirmar uma vez mais que a riqueza e o valor de um povo se radicam precisamente no fato de saber articular todos estes níveis numa sadia convivência. Os reducionismos e todas as tentativas uniformizadoras, longe de gerar valor, condenam os nossos povos a uma pobreza cruel: a da exclusão. E a exclusão, longe de trazer grandeza, riqueza e beleza, provoca vilania, penúria e brutalidade. (...) A identidade europeia é, e sempre foi, uma identidade dinâmica e multicultural.
A atividade política sabe que tem entre mãos este trabalho fundamental e inadiável. Sabemos que “o todo é mais do que a parte, sendo também mais do que a simples soma delas”, pelo que será preciso esforçar-se por “alargar sempre o olhar para reconhecer um bem maior que trará benefícios a todos nós” (Exort. ap. Evangelii gaudium, 235). Somos convidados a promover uma integração que encontra na solidariedade a forma de fazer as coisas, a forma de construir a história; uma solidariedade que nunca se pode confundir com a esmola, mas há de ser entendida como geração de oportunidades para que todos os habitantes das nossas cidades – e de muitas outras cidades – possam desenvolver a sua vida com dignidade. O tempo tem-nos ensinado que não é suficiente a mera inserção geográfica das pessoas; o desafio é uma vigorosa integração cultural. (...)
Capacidade de diálogo
Se há uma palavra que devemos repetir, sem nunca nos cansarmos, é esta: diálogo. Somos convidados a promover uma cultura do diálogo, procurando por todos os meios abrir instâncias para torná-lo possível e permitir-nos reconstruir o tecido social. A cultura do diálogo implica uma autêntica aprendizagem, uma ascese que nos ajude a reconhecer o outro como um interlocutor válido, que nos permita ver o forasteiro, o migrante, a pessoa que pertence a outra cultura como sujeito a ser ouvido, considerado e apreciado. Hoje é urgente envolvermos todos os atores sociais na promoção de uma “cultura que privilegie o diálogo como forma de encontro”, fomentando “a busca de consenso e de acordos mas sem a separar da preocupação por uma sociedade justa, capaz de memória e sem exclusões” (Exort. ap. Evangelii gaudium, 239). A paz será duradoura na medida em que armarmos os nossos filhos com as armas do diálogo, lhes ensinarmos a boa batalha do encontro e da negociação. Desta forma, poderemos deixar-lhes em herança uma cultura que saiba delinear estratégias não de morte mas de vida, não de exclusão mas de integração.
Esta cultura do diálogo, que deveria constar em todos os currículos escolares como eixo transversal das disciplinas, ajudará a incutir nas gerações jovens uma forma de resolver os conflitos diferente daquela a que os temos habituado. Hoje é urgente poder realizar alianças já não apenas militares ou econômicas, mas culturais, educacionais, filosóficas, religiosas; alianças que ponham em evidência que frequentemente, por trás de muitos conflitos, está em jogo o poder de grupos econômicos; alianças, capazes de defender o povo de ser manipulado para fins impróprios. Armemos o nosso povo com a cultura do diálogo e do encontro.
Capacidade de gerar
O diálogo, com tudo o que implica, lembra-nos que ninguém se pode limitar a ser espectador, nem mero observador. Todos, desde o menor ao maior, são parte ativa na construção de uma sociedade integrada e reconciliada. Esta cultura é possível, se todos participarmos na sua elaboração e construção. A situação atual não admite meros observadores de lutas alheias; pelo contrário, é um forte apelo à responsabilidade pessoal e social.
Neste sentido, têm um papel preponderante os nossos jovens. Estes não são apenas o futuro dos nossos povos, mas o presente; são aqueles que já hoje estão a forjar, com os seus sonhos, com a sua vida, o espírito europeu. Não podemos pensar no amanhã, sem lhes proporcionar uma participação real como operadores de mudança e transformação. Não podemos imaginar a Europa sem os tornar participantes e protagonistas deste sonho. (...)
Isto requer a busca de novos modelos econômicos, mais inclusivos e equitativos, orientados não para o serviço de poucos, mas para benefício do povo e da sociedade. (...) Passar de uma economia que tenha em vista o rendimento e o lucro com base na especulação e empréstimo com juros, para uma economia social que invista nas pessoas criando postos de trabalho e qualificação.
Devemos passar de uma economia líquida, que tende a favorecer a corrupção como meio para obter lucro, a uma economia social que garanta o acesso à terra, à casa, por meio do trabalho como âmbito onde as pessoas e as comunidades possam fazer valer as suas muitas dimensões da vida: a criatividade, a projetação do futuro, o desenvolvimento das capacidades, a exercitação dos valores, a comunicação com os outros, uma atitude de adoração. Por isso, a realidade social do mundo atual exige que, acima dos limitados interesses das empresas e de uma discutível racionalidade econômica, “se continue a perseguir como prioritário o objetivo do acesso ao trabalho para todos” (Laudato si’, 127).
Se quisermos apontar para um futuro que seja digno, se quisermos um futuro de paz para as nossas sociedades, só poderemos alcançá-lo apostando na verdadeira inclusão: “a inclusão que dá o trabalho digno, livre, criativo, participativo e solidário”. Esta passagem (de uma economia líquida a uma economia social) não só criará novas perspectivas e concretas oportunidades de integração e inclusão, mas nos dará novamente a capacidade de sonhar aquele humanismo, cujo berço e fonte é a Europa.
Para o renascimento de uma Europa cansada mas ainda rica de energias e potencialidades, pode e deve contribuir a Igreja. A sua tarefa coincide com a sua missão: o anúncio do Evangelho, que hoje, mais do que nunca, se traduz sobretudo em sair ao encontro das feridas do homem, levando a presença forte e simples de Jesus, a sua misericórdia que consola e encoraja. Deus quer habitar entre os homens, mas só o pode fazer através de homens e mulheres que, como os grandes evangelizadores do Continente, sejam tocados por Ele e vivam o Evangelho sem outras ambições. Só uma Igreja rica de testemunhas poderá de novo dar a água pura do Evangelho às raízes da Europa. A propósito, o caminho dos cristãos rumo à plena unidade é um grande sinal dos tempos, ditado pela exigência de responder urgentemente ao apelo do Senhor “para que todos sejam um só” (Jo 17, 21).
Com a mente e o coração, com esperança e sem vãs nostalgias, como um filho que reencontra na mãe Europa as suas raízes de vida e de fé, sonho um novo humanismo europeu, “um caminho constante de humanização”, ao qual servem “memória, coragem e utopia sadia e humana”. Sonho uma Europa jovem, capaz de ainda ser mãe: uma mãe que tenha vida, porque respeita a vida e dá esperanças de vida. Sonho uma Europa que cuida da criança, que socorre como um irmão ao pobre e quem chega à procura de acolhimento porque já não tem nada e pede abrigo. Sonho uma Europa que escuta e valoriza as pessoas doentes e idosas, para que não sejam reduzidas a objetos de descarte porque improdutivas. Sonho uma Europa, onde ser migrante não seja delito, mas apelo a um maior compromisso com a dignidade de todos os seres humanos. Sonho uma Europa onde os jovens respirem o ar puro da honestidade, amem a beleza da cultura e de uma vida simples, não poluída pelas solicitações sem fim do consumismo; onde casar e ter filhos sejam uma responsabilidade e uma alegria grande, não um problema criado pela falta de trabalho suficientemente estável. Sonho uma Europa das famílias, com políticas realmente eficazes, centradas mais nos rostos do que nos números, mais no nascimento dos filhos do que no aumento dos bens. Sonho uma Europa que promova e tutele os direitos de cada um, sem esquecer os deveres para com todos. Sonho uma Europa da qual não se possa dizer que o seu compromisso em prol dos direitos humanos constituiu a sua última utopia. Obrigado.
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