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Passos N.181, Junho 2016

DESTAQUE - BRASIL

A renovação da política começa da descoberta do eu

por Marco Montrasi

O Senado fará julgamento final do impeachment da Presidente Dilma Rousseff. O país está acuado entre a corrupção e a economia que entrou em crise. Mas na política “está em jogo algo maior”. A contribuição de MARCO MONTRASI*, responsável nacional de CL

Partindo da releitura do livro O eu, o poder, as obras (L. Giussani, São Paulo, Ed. Cidade Nova, 2001), e da minha experiência pessoal, vejo-me muito provocado, como todos, pelo momento que estamos vivendo no Brasil. Vivi na Itália um momento parecido com este, quando houve a operação “Mãos limpas”.
Em primeiro lugar, podemos ver que esse problema da crise econômica e política ligada a fenômenos de corrupção se manifesta como uma bolha que explode em alguns momentos, em várias situações diferentes, em diferentes lugares do mundo, porém trata-se do mesmo fenômeno. O fenômeno da corrupção, podemos verificar que ocorre em todos os lugares e em todos os ambientes onde pessoas lidam com o poder, seja de qual tipo for. Mas se aprofundamos um pouco mais o nosso olhar, podemos dizer que aquilo que está em jogo é mais que uma crise local econômica ou política, aquilo que mais podemos enxergar em todos os âmbitos da nossa sociedade é uma crise da humanidade.
O que está em jogo é o humano. Nós estamos vendo que esse fenômeno da corrupção é como se fosse a ponta ou um aspecto de um fenômeno que tem a ver com o humano, com o homem. Mas a humanidade não é uma realidade abstrata. A humanidade sou eu. O primeiro que está envolvido, estando ligado de alguma forma aos outros homens (que podem ser políticos ou não), sou eu. Eu, sendo homem dessa humanidade em crise faço parte, entro na definição desse fenômeno.
A palavra corrupção indica algo que se corrompeu, que antes era unido, era bom, era justo. Por que acontece isso? Por que acontece que uma coisa que é unida, uma coisa que é boa, um ímpeto que é humano, que é bom, se corrompe? Se observarmos bem, perceberemos uma tendência a que aquilo que temos de mais unido se corrompa, e isso está dentro de tudo. É como se a morte, que no fundo espera por todos, colocasse sementes já dentro da vida. Nisto podemos experimentar esse “corromper-se”. Por exemplo, quando nasce um amor e dois jovens decidem se casar, nada parece perturbar aquele ímpeto positivo de estar unidos para sempre, mas, com o passar do tempo, aquele ímpeto decai, fica sujeito a uma força que tenta corromper, tenta separar, tenta tirar aquilo que é bom, que é bonito, aquela beleza do início, do começo. Qualquer coisa – a vida, a natureza -, com o tempo mostra que tem como uma tendência à corrupção.
Qual é a coisa mais íntima que temos? Qual é a coisa mais profunda e mais minha que eu tenho, e que também está sujeita a esse fenômeno? É a primeira palavra que aparece no livro: o “eu”. O “eu” é a coisa mais importante que temos, e sem a consciência do que é o meu “eu” só estamos passando o tempo. Para começar a gostar do tempo, a viver o tempo, é preciso que aconteça alguma coisa que me faça dar-me conta de quem eu sou, do que é esse meu “eu”. Eu não sou só esse meu corpo, conjunto de células, que respira, dorme, caminha. Acontecem alguns momentos na vida nos quais eu começo a me dar conta do que eu sou, da grandeza que tenho dentro, do que eu carrego. O nascer do “eu” acontece quando por algum fato eu me dou conta de que eu existo, de que vibra em mim alguma coisa, algo de infinito. Por exemplo, de novo, quando nasce uma paixão: aquela primeira experiência de se apaixonar faz vibrar em você alguma coisa da qual antes você nem se dava conta. Você vive, acontece alguma coisa que faz você voltar para casa contente, feliz. Cumprimenta sua mãe como nunca você tinha feito e ela fica espantada: “o que te aconteceu hoje?”. É essa experiência que gera depois o desejo de reencontrar aquele rosto, de refazer aquela experiência, de reencontrar aquelas realidades que começaram a fazer você vibrar. Qualquer experiência de fascínio é procurada novamente porque fez você descobrir essa coisa única que é o “eu”.
Então, o “eu” é a coisa primordial, a coisa mais bonita que temos, é o que mais nos dá o gosto da vida. Mas o que o determina, ou seja, o que dá forma a esse “eu”? Qual é a consistência do “eu”? “É aquele elemento dinâmico que por meio de perguntas, de exigências fundamentais, começa a se expressar. Em poucas palavras, eu chamo senso religioso esse elemento dinâmico que por meio das perguntas fundamentais guia a expressão pessoal e social do homem. A forma da unidade do homem é o senso religioso. E esse fator, esse ‘eu’, começa a se expressar em perguntas últimas” (L. Giussani, O eu, o poder, as obras, p. 161). Que sentido tem a minha vida? Para onde estamos indo? Que sentido tem discutirmos essas coisas se daqui a 50, 60 anos quem sabe o que será de nós? O que será dos meus filhos? O que será dos meus projetos? Essas perguntas últimas, que geralmente afastamos de nós, na raiz nascem dessa necessidade, da necessidade de um infinito que vibra em nós. Essa é a constituição última do meu “eu”. É o que faz vibrar, é o que torna unido o que antes a gente percebia como separado, ou quase nem percebia.
É unicamente por causa dessa experiência que nasce um "valor". O senso religioso, essas perguntas, essas exigências últimas que me definem, que definem todo homem, é como se se juntassem dando origem aos valores. É dessa consciência da consistência última de mim que nasce o dar valor a alguma coisa. Quando eu me dou conta do meu “eu”, dessa coisa profunda, íntima, que vibra em mim, que me faz viver e me mover, e me faz vibrar, é como se começasse também a nascer o valor das coisas, e eu começo também a dar valor (o valor da pessoa, do amor, da minha vida, do outro). É quando um valor se torna abstrato que eu começo a tratar tudo como uma coisa qualquer. Isso acontece quando perco a consciência do meu eu, pois sem me dar conta dessas perguntas últimas que me constituem tudo se torna relativo. A corrupção que a gente vê por toda parte começa com uma corrupção do meu “eu”, dessa perda da consciência do que nós somos. Quando perdemos isso, perdemos a consciência do valor das coisas, e aí as coisas que estão unidas se separam, se afastam, e fica fácil tratar tudo como se fosse nada. Falamos, justamente escandalizados, do político corrupto que rouba milhões, mas isso é só um pequeno reflexo de algo que tem origem nessa corrupção do “eu”. Portanto, esse não é só um problema dos outros, todos nós quando perdemos esse sentido do “eu”, essa possibilidade da descoberta contínua do “eu” perdemos o valor das coisas.
A primeira responsabilidade que temos é a de uma educação: descobrir o que é esse “eu”, redescobrir essas perguntas últimas e nos ajudarmos a recuperar isso. Pois dar início sempre a esse processo, que não é óbvio, é como juntar os cacos de um homem despedaçado que assim pode começar a dar valor às coisas: a uma garrafa, a um livro, até chegar à forma de tratar o dinheiro e a coisa pública. Essa é a crise profunda da qual estamos vendo as consequências. De onde vem essa fraqueza que nos atinge? Nós, desde o instante em que acordamos de manhã, é como se fôssemos sujeitos a radiações invisíveis que tentam nos tirar a potência da consciência do nosso “eu”. Desde quando acordo de manhã e coloco o pé no chão e começo a sair de casa, tudo é como um tsunami invisível, como um “Chernobyl”, são radiações que tentam me corromper sem que eu perceba. Esta é a força da mentalidade comum, a força do poder. O poder é essa força invisível que tenta e continua com uma energia absurda a enfraquecer esse “eu”. E nós achamos que está tudo certo e não nos preparamos para viver e combater essa força, que é pior do que ter a ameaça de um fuzil à nossa frente. Pois se me é tirada a consciência do “eu”, tudo perde sentido, eu perco tudo.
Porém, Dom Giussani fala uma coisa grandiosa. Se nós estamos dentro dessa situação na qual existe esse meu “eu” que é essa força e essa beleza, essa coisa que cada um tem, e se estamos dentro desse fluxo negativo do poder, então, a quê estamos destinados? Ele diz: “O homem não está definitivamente derrotado: ‘Não falamos do poder porque tenhamos medo, falamos do poder porque temos de despertar do sono’” (Giussani apud J. Carrón, A beleza desarmada, Rizzoli, Milão 2015, em fase de tradução no Brasil). A força do poder não está no poder, a força que o poder tem é a nossa impotência, é o nosso dormir, é que com o tempo não percebemos mais, e não nos ajudamos mais, e a sociedade não se ajuda mais, e cada um se torna surdo e deixa que essa força o arraste, sem se dar conta. A força do poder é a nossa impotência. Como quer que seja, nós não temos medo do poder, temos medo é de pessoas que dormem, é disso que temos que ter medo, do nosso sono. Prossegue Dom Giussani: “Digo que o poder adormece a todos, o mais possível. Seu grande sistema, seu grande método é fazer adormecer, anestesiar ou, melhor ainda, atrofiar. Atrofiar o quê? Atrofiar o coração do homem, as exigências do homem, os desejos, impor uma imagem de desejo ou de exigência diferente daquele ímpeto sem fim que tem o coração. E assim crescem pessoas limitadas, definidas, prisioneiras, já meio cadáveres, isto é, impotentes” (idem). Então, o “poder” só tem poder se tem a nossa impotência.
O Papa Francisco falou em sua homilia de 1º de janeiro de 2016, na Solenidade de Maria Santíssima Mãe de Deus, citando São Paulo: “Quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou o seu filho, nascido de uma mulher”. E o Papa se perguntava como pode ser que no Império Romano, com toda aquela bagunça que estava acontecendo, com o povo judeu que era praticamente escravo, com leis que eram leis pagãs, como São Paulo pôde dizer “a plenitude do tempo”? Mas que plenitude era essa? Ou está louco quem falou isso, ou aqui, diz o Papa, ele quer dizer outra coisa. A plenitude do tempo foi o momento no qual Cristo chegou. Quem deu plenitude ao tempo foi a presença de Cristo. Então, não havia nenhuma condição que fosse contra o homem, porque quem dava a plenitude não eram as circunstâncias. Também naquela época que era pior que a nossa. E nós também temos que tomar cuidado porque podemos nos arrastar num grande pessimismo, em achar que nada mais é possível, numa falta de esperança, enquanto existem homens (essa é a força da Igreja) que nos mostram que esta também é uma plenitude de tempo. Agora, neste momento confuso, também estamos nessa plenitude do tempo. E o Papa fala: “Um rio de miséria, alimentado pelo pecado, parece contradizer a plenitude do tempo realizada por Cristo”. Como é possível, então? “Este rio alagador nada pode contra o oceano de misericórdia que inunda o nosso mundo”. E eu me pergunto: mas esse homem está vendo aquilo que nós estamos vendo? Ou ele está certo ou está louco. E, cada um de nós pode verificar isso, pode verificar se ele está louco ou se está certo, por como ele vive e por aquilo que nos mostra todos os dias. Por exemplo, vendo o Papa Francisco, aquilo que ele está fazendo, que um dia vai encontrar com os mendigos em Roma, e outro dia vai encontrar Raúl Castro, em Cuba. Por quê? Porque ele tem a consciência de mergulhar dentro de um oceano de misericórdia que dá consistência ao eu, que o faz nascer de novo, continuamente, e que vence a força do poder. Essa é a nossa esperança, essa é a possibilidade de o poder não vencer. O poder não me vence pois quando acontece uma experiência assim, de encontrar homens que vivem assim, é como se o meu eu voltasse a ter aquela unidade. E os valores voltam, a possibilidade de viver de uma forma mais justa volta. É possível fazer essa experiência, mesmo dentro da confusão e da bagunça, e do momento que parece terrível.
Então, a potência da misericórdia, a possibilidade de um povo novo vem de um “eu” que renasce, e vence entre nós através de testemunhos de homens. Acontece de eu redescobrir de novo esse meu “eu” que vibra, que vive, que deseja, e que começa a dar valor às coisas, e começa a desejar viver de uma forma diferente. É nesse contágio que podemos mudar a sociedade, até a política. Porque a política é uma forma de servir, não de ocupar espaços de poder. A política é um serviço. Como é possível falar disso agora? Parece tão absurdo! A política como serviço nasce se eu tenho consciência do que é o homem, se tenho compaixão pelo homem. E como tenho compaixão pelo homem? Se o meu eu vibra, se tenho comoção pelo meu eu, só isso dá um valor novo à vida. Como o meu eu reacontece? Encontrando um outro, dentro de um encontro humano, que me dá esperança, mostra uma possibilidade nova. Que esse tempo seja a plenitude dos tempos! Porque é possível essa misericórdia, um oceano de misericórdia. Só assim, dentro de um encontro assim, é que o “eu” volta a ter a consciência dessa aspiração infinita, das perguntas infinitas.
Assim, entendo que este momento tão difícil pode ser um momento de redescoberta, de refundação, a partir de um eu, de “eus” novos, de “eus” que se redescobrem vivos, desejosos, e que não têm medo de entrar até o fundo num relacionamento, num trabalho, num processo novo. Isso não é fácil, e não será simples, mas dentro daquilo que vimos, também na política pode ocorrer um contágio de desejar dizer “eu” desse modo. O contágio acontece se o vírus começa em alguém; pode ser em um, começa por um, mas se reacontece em mim essa consciência, esta é a esperança para o mundo todo.

*O autor é responsável nacional do Movimento Comunhão e Libertação. Aqui, trechos de sua colocação durante a mesa-redonda “Política, cultura, pessoa” em 26/04/2016, no Espaço Cultural e Extensão USP, em Ribeirão Preto/SP, publicados no site de notícias Zenit.org.

 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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