Ele é o autor da célebre entrevista com Bento XVI, citada por Julián Carrón nos Exercícios da Fraternidade, que impressionou a todos pelas referências à Igreja e à misericórdia. Agora padre JACQUES SERVAIS explica por que o Papa emérito fala de “evolução do dogma”. E por que Francisco...
Jacquer Servais, 67 anos, jesuíta, aluno de Hans Urs von Balthasar e estudioso da sua obra, diretor em Roma da “Casa Balthasar”, é o teólogo que realizou a hoje famosa entrevista com Bento XVI publicada, em italiano, no livro Per mezzo della fede (org. por Daniele Libaroni, Ed. San Paolo) e citada com frequência ultimamente. Inclusive nos últimos Exercícios espirituais da Fraternidade de CL. Entre os vários temas, nessas páginas o Papa emérito refere-se à “profunda evolução do dogma”, segundo o qual se pensava que os não batizados estariam todos condenados. O Concílio superou essa visão na consciência de que Deus não pode deixar que se percam todos os não batizados, e que até uma felicidade puramente natural para eles não representa uma real resposta à questão da existência humana.
É sobre o tema da “evolução do dogma” que queremos conversar com o padre Servais. O momento em que vivemos, de fato, é crucial para a vida da Igreja. Ela é parte de uma sociedade que tem dificuldade de aceitar qualquer verdade. E, por isso, compreender o que ela é chamada a transmitir e, sobretudo, como – inclusive em relação àqueles princípios que, em seus dois milênios de história, compreendeu e dos quais se apropriou – é um assunto decisivo. Sobre a questão dos “infiéis” e da sua “perdição”, Joseph Ratzinger expressou-se com a franqueza que lhe é habitual: “Não há dúvida de que, nesse ponto, estamos diante de uma profunda evolução do dogma”.
Como devemos entender a afirmação do Papa emérito? Trata-se de colocar em discussão o que a Igreja ensinou até agora, em nível dogmático, sobre esse tema?
Na realidade, o Papa emérito não colocava a sua resposta num plano propriamente dogmático, mas pastoral. Sua observação tinha caráter sobretudo histórico: “Se é verdade”, constatava ele, “que os grandes missionários do século XVI estavam convictos de que o não batizado estava condenado para sempre – e isso explica o empenho missionário deles –, na Igreja católica pós-Concílio Vaticano II tal convicção foi definitivamente abandonada”. Diferentemente do passado, em que se representava a massa damnata, pouquíssimos contemporâneos conseguem imaginar um Deus que condena à perdição eterna os não batizados. Mas ter colocado em causa esta representação também provocou, ele acrescentava, “uma dupla e profunda crise”. Uma crise do empenho missionário, mas também da identidade do próprio cristão: “Se há quem pode se salvar mesmo de outras maneiras, não é mais evidente, no fim das contas, por que razão o próprio cristão está ligado às exigências da fé cristã e à sua moral”.
A que Bento XVI está se referindo quando fala, justamente, sobre essa “profunda evolução do dogma”? Certamente há noções cristãs que precisam ser avaliadas a partir do estofo histórico da sua elaboração. Mas aqui não estamos diante de uma questão absolutamente importante do ponto de vista da doutrina e do dogma, e que não pode ser diluída no nível pastoral?
O teólogo Louis Bouyer observa que, depois do Renascimento, “a descoberta de muitíssimas populações ainda não alcançadas pela evangelização e, em época mais recente, de uma maciça descristianização de populações que anteriormente eram (ou pareciam ser) cristãs, levou muitos pensadores cristãos a colocar em termos novos o problema da salvação dos infiéis”. É preciso também levar em conta certo processo de clarificação. Se existe uma mudança de acento entre o ensinamento formalizado no Catecismo do Concílio de Trento a respeito da “sentença dos bons e a dos maus” e a fórmula, muito mais contida, do Catecismo da Igreja Católica (vejam-se os números 633 e 1037), é sem dúvida porque se tomou mais consciência dos gargalos de uma teologia “agostiniana”, reformada e jansenista, da eleição, com a imagem vétero-testamentária que ela veicula, de um Senhor que predestina ou rejeita. Mas o Papa emérito pensa, antes de tudo, nas provocações da modernidade, segundo a qual “não é mais o homem que acredita precisar da justificação perante Deus, mas sim é Deus quem [deveria] justificar-se por causa de todas as coisas horríveis presentes no mundo”.
Não estaríamos diante de uma total reviravolta no modo tradicional de pensar? E não estaria ocorrendo uma acentuação demasiada do tema da misericórdia?
Mesmo sem seguir essa linha de pensamento, que inverte totalmente as perspectivas, hoje o crente se sente como que obrigado a se confrontar com o problema da miséria humana e da responsabilidade de Deus em relação ao homem. Enquanto se refletia a partir de dentro de uma “civilização católica”, podia-se ter a ilusão de que todo o gênero humano se tornaria cristão. Mas, a partir do momento em que se compreendeu que o Povo dos que creem em Jesus Cristo constitui e poderá se constituir sempre uma minoria sobre a Terra, a questão sobre a salvação dos não cristãos se impôs; e, com ela, o tema da misericórdia de Deus em relação à humanidade sofredora. A ideia da bondade divina se torna, assim, o eixo em torno do qual roda a nossa fé, ou melhor, a nossa esperança: “É a misericórdia que nos move para Deus, ao passo que a justiça nos atemoriza frente a Ele”, sustenta Ratzinger reportando-se a João Paulo II e às visões de irmã Faustina que tanto o marcaram.
Com Francisco nos acostumamos a esse tipo de ênfase sobre o tema da misericórdia, mas, talvez, alguns de nós não esperavam algo análogo da parte do Papa emérito...
Questionamo-nos, especialmente, sobre o que é o dogma e por que podemos falar – no plural – de dogmas. O dogma ao qual os fiéis aderem é o centro para o qual tudo se dirige e a partir do qual tudo se ilumina: Jesus Cristo, o Deus feito homem, isto é, a Cruz e a Ressurreição como ponto culminante e realização da vinda de Deus ao mundo. Isso – reforça de novo Hans Urs von Balthasar, com a Tradição mais genuína da Igreja, da qual Ratzinger é um abalizado intérprete – é a Palavra definitiva de Deus que se oferece de um modo excedente à pesquisa secular do homem. É nela que Deus manifesta por excelência a Si próprio como um Ser-para-nós. Esse evento com o qual, depois de uma longa preparação, se dirigiu uma vez por todas à humanidade, é o livre – não devido – dom do seu amor, que esgota mas também supera absolutamente, sempre de novo, tudo o que os nossos desejos e as nossas expectativas pudessem conter.
Na questão dos infiéis e da sua perdição ou salvação não se trata justamente de colocar em questão esta centralidade da fé na “Palavra de Deus que se oferece de modo excedente à busca do homem”?
Falando da condenação e salvação Bento XVI nos faz entender que a resposta da Igreja se dobra sobre as condições particulares da história na qual está inserida, que suas expressões podem, portanto, variar e, porque não, se aprimorar. Na época de Lutero, eram colocadas questões que se tornaram, aos olhos dos nossos contemporâneos, pouco relevantes ou até mesmo incompreensíveis. Face aos desafios levantados por um mundo multicultural e multimídia, marcado pelo legado do Iluminismo, dilacerado por múltiplas injustiças sociais e devastado especialmente por um laicismo anti-religioso e um fundamentalismo pseudo-religioso, o cristão não pode deixar de se perguntar sobre a maneira de anunciar Jesus “o mesmo ontem, hoje e sempre” (Hb 13,8). Ele tem o dever de procurar novas expressões da resposta que é sempre incluída no fundamental “sim” de Maria, da Igreja. Pode ser que eles sejam mais abrangentes, mais capazes de integrar o dogma fundamental da redenção. Este é um pensamento que Ratzinger teve sempre presente. Já na sua Tese de Livre Docência apontou para a renovação marcado pelo pensamento de Anselmo, falando de uma "mudança decisiva na consciência real da história". Escrevendo que "(seu) significado ao conceito de tradição e revelação, escatologia e história da salvação, ainda está esperando para ser totalmente apreciado pela historiografia sobre os dogmas" (Joseph Ratzinger, São Boaventura. A teologia da história, Florença 1991), abriu uma estrada hermenêutica que não deixou de praticar.
Se tudo o que o senhor diz é verdade, a tão enfatizada descontinuidade entre Bento XVI e Francisco – à parte a diferença de temperamento ou de estilo entre o Papa alemão e o argentino – parece ser uma invenção da mídia...
Na verdade, percebemos facilmente o quanto, nesse ponto central, os dois últimos Papas estão perfeitamente de acordo. A entrevista ilumina o forte laço que – para além do estilo tão diferente – os une. O Papa jesuíta não se cansa de proclamar à Igreja e ao mundo o Cristo crucificado e ressuscitado, cuja “carne” somos chamados a contemplar nos pobres e nos marginalizados. Na escola de Santo Inácio, concebe a Encarnação como um processo que continua a marcar essa história, como a inserção do único Espírito vivo, absoluto, de Deus na fragilidade e multiplicidade das condições contingentes do homem. Vê na Cruz e Ressurreição o centro de uma história que se desenrola entre a liberdade de Deus e a liberdade do homem, e como o encontro de duas dimensões e realidades opostas: no evento finito a plenitude infinita, no tempo a eternidade, a misericórdia de Deus que brilha através da miséria e da culpa humana e a abraça.
Acentos e estilo podem ser bastante diferentes entre Bento XVI e o Papa Francisco, mas para ambos é claro que a misericórdia não pressupõe um desempenho (mérito) antecipado do homem, e que esta vive do profundo mistério do Sábado Santo, daquele mistério em que Deus desce no abismo daquilo que é contrário ao homem para erguer o próprio homem dos seus medos e seus pecados.
Os acentos colocados podem ser muito diferentes, mas a substância do ensinamento é a mesma. “O agir de Deus”, escreveu Bento XVI em sua primeira encíclica Deus Caritas Est, “adquire [no Novo Testamento] a sua forma dramática quando, em Jesus Cristo, o próprio Deus vai atrás da ‘ovelha perdida’, a humanidade sofredora e perdida”. Até as “aberturas” de Francisco em relação à família estão em continuidade com o grande pontificado que o precedeu. A primeira justificação, enfatizam ambos os Pontífices, é o perdão que Deus opera na Cruz de seu Filho. Ele está pronto a perdoar, antes mesmo que os homens se arrependam. Assim Cristo – com os seus verdadeiros discípulos atrás dele – não faz com que a misericórdia dependa do arrependimento dos culpados.
Credits /
© Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón