A novidade de um sistema carcerário que dignifica o homem. Pouco conhecida, mas atuando há mais de 40 anos no Brasil, o método APAC é um exemplo de como um olhar para a verdade da pessoa é capaz de provocar uma mudança real no homem
Mais de 600.000 presos estão nas cadeias do Brasil, sendo esta a quarta população carcerária do mundo. Este dado foi divulgado recentemente pela Secretaria Nacional da Juventude brasileira, ocasião em que foi constatado que durante os anos de 2005 a 2012, período de 7 anos, esta teve aumento de 74%.
A dramaticidade do sistema carcerário ainda tem sido bastante noticiada diante dos procedimentos tomados na Operação Lava Jato, o que permite a reflexão sobre qual é o papel do juiz e a função da pena imposta àquele que está sendo condenado.
Assim como em diversos desafios cotidianos da vida, é mais fácil encontrarmos soluções rápidas, que agradam a maioria da população, do que ir ao fundo das questões e nos aventurarmos traçando um caminho mais longo, porém mais sólido e verdadeiro.
Diante deste panorama, é interessante questionarmos: tendo em vista a falência do sistema penitenciário atual, em que 70% daqueles que cumprem a pena voltam a reincidir – cometer novos delitos – qual é o objetivo último quando do cumprimento da pena? Em outras palavras, ao restringir a liberdade de uma pessoa, qual a finalidade que se deseja alcançar? Será que existe um olhar humano para com aqueles que cometeram atrocidades no passado e agora cumprem uma sanção em razão disso?
Com essas perguntas em mente, recentemente tivemos a oportunidade de conhecer uma nova proposta, mais humana, de prisão. A APAC (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados), entidade civil, sem fins lucrativos, visa a recuperar e reintegrar socialmente presos que cumprem pena privativa de liberdade. Em outras palavras, é um método de humanização das prisões, sem deixar de lado a finalidade punitiva da pena.
A construção da APAC nasceu de uma experiência de conversão do fundador, Mário Ottoboni, e do desejo de um relacionamento humano entre ele e os detentos.
Um bem para si. Ao entrarmos pela primeira vez numa APAC, em Minas Gerais, fomos surpreendidos pelo fato de ser uma prisão sem guardas, sem armas, onde os presos ficam com as chaves do presídio. Este fato nos ajudou a entender a excepcionalidade da experiência que iríamos encontrar.
Era possível perceber o cuidado minucioso que existia naquele lugar para que todos – desde os que cumpriam pena, como também os voluntários, empregados e os visitantes – se lembrassem da razão pela qual cada um estava ali. Logo na entrada estava escrito: “Aqui entra o homem, o delito fica lá fora”.
Em seguida fomos almoçar junto com os recuperandos (nome usado para os detentos) do regime fechado. Inicialmente um grande silêncio entre eles e de repente todos se levantam e rezam juntos.
Começamos a comer e conversar com dois deles. Aos poucos nos contam as regras do local e as diferenças entre o que viviam no sistema carcerário comum e a experiência vivida na APAC. Um deles nos disse: “Com o que vivo aqui pude recuperar novamente minha autoestima”, e então foi nos contando a história de sua conversão, de como perdoou sua ex-mulher e de como o relacionamento com o filho mudou a ponto do mesmo passar a ter orgulho do pai que estava preso.
Nessa conversa fomos surpreendidos pelo fato de que os recuperandos concebem a APAC como um bem para eles, e que aquela é a realidade que eles foram chamados a viver. Entendemos que isso só é possível porque alguém olha para eles como ninguém jamais olhou, que alguém deseja o bem deles como ninguém jamais desejou e isso nos faz entender o relacionamento de Cristo conosco. Ele olha o nosso humano e deixa os nossos delitos para trás.
Durante a visita pudemos constatar também que a APAC tem como premissa a certeza de que qualquer ser humano é recuperável. Mas para tanto, existem alguns pilares que fundamentam o método APAC, dentre eles a própria espiritualidade dos recuperandos. Não se trata de impor alguma religião específica, mas de enfatizar que sem uma espiritualidade o êxito na recuperação do condenado é prejudicada. O fundador desta obra, Mário Ottoboni, estava tão convencido de que este era o caminho, que registrou a seguinte frase no presídio: “O sucesso de qualquer trabalho cristão depende sempre da espiritualidade de seus membros”.
Em seguida, um dos recuperandos nos levou para a área externa onde o único empecilho que nos separava da rua era uma pequena grade facilmente transponível e perguntamos por que ninguém fugia. E ele nos respondeu: “Aqui estamos presos pela consciência e algemados pelo coração”.
Posteriormente, no regime fechado, vimos as celas, a organização deles, onde e como trabalhavam. No final do corredor o recuperando responsável por nos guiar mostrou uma porta fechada e disse que ali era a solitária. Disse-nos que havia uma pessoa condenada dentro e que queria nos apresentar. Ao abrir a porta, nos deparamos com uma pequena capela com a imagem de Cristo na cruz. Ele nos explicou que aquele condenado, assim como eles, era quem lhes dava força e era o ponto de retomada nos momentos de fadiga e desesperança.
Olhados pela verdade de si. No fim da visita, ao entrar no auditório, todos os recuperandos do regime fechado estavam nos esperando. Eles agradeceram a nossa presença e cantaram duas músicas para abençoar nossa volta para casa. Pediram para que contássemos a experiência que vimos a todos que encontrássemos.
Neste momento entendemos o quanto um olhar é capaz de mudar e salvar a vida de uma pessoa. Porque quando eles chegam na APAC, eles tiram as algemas, ganham roupas normais, são chamados pelo nome e podem olhar nos olhos uns dos outros. Esse primeiro impacto já é suficiente para, no mínimo, deixá-los curiosos com aquele lugar.
Descobrimos naquele instante que o desafio apresentado a cada um dos recuperandos também serve para nós. Isto porque, o meio pelo qual concebemos a pena e a finalidade da prisão tem relação direta entre a justiça e a misericórdia, entre a nossa pessoa – com desejos infinitos e sede insaciável – e o nosso pecado.
A proposta da APAC nos recorda que não há pecado terrível capaz de nos afastar da misericórdia de Deus. Naquele lugar fica evidente a necessidade urgente de nos tornarmos cada vez mais homens, maduros na fé, marcados pelo nosso coração e não pelos nossos erros.
A experiência que encontramos naquele lugar nos faz entender o que é a ressurreição de Cristo hoje. É possível dentro de uma realidade “morta”, de onde não se espera que nasça algo de novo, existir uma vida nova naquelas pessoas que encontramos lá. Uma vida nova que só é possível diante de alguém que os olha tendo Cristo como medida última das coisas, disposto a amar e cuidar da realidade até a última instância, sem medo de seus erros e incapacidades, mas certos que apoiado em Cristo, a ressurreição e a conversão acontece e corresponde. A experiência vivida na APAC é a concretude da atual proposta feita pelo Papa Francisco no Ano da Misericórdia: “Deus é apresentado sempre cheio de alegria, sobretudo quando perdoa (...), porque a misericórdia é apresentada como a força que tudo vence, enche o coração do amor e consola com o perdão”.
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