Trecho da segunda meditação do Santo Padre durante o Retiro Espiritual que ele guiou por ocasião do Jubileu dos Sacerdotes. Basílica de Santa Maria Maior, quinta-feira, 2 de junho de 2016
Depois de termos rezado sobre aquela “dignidade envergonhada“ e “vergonha dignificada”, que é o fruto da misericórdia, prosseguimos com esta meditação sobre o “receptor da Misericórdia”. É simples. Poderia dizer uma frase e ir-me embora, porque é um só: o receptor da Misericórdia é o nosso pecado. É tão simples. Mas muitas vezes acontece que o nosso pecado é como um coador, como um cântaro furado por onde se perde a graça em pouco tempo: “Porque o meu povo cometeu um duplo crime: abandonou-me a Mim, nascente de águas vivas, e construiu cisternas para si, cisternas rotas, que não podem reter as águas” (Jr 2, 13).
Daí a necessidade que o Senhor lembra explicitamente a Pedro de “perdoar setenta vezes sete”. Deus não Se cansa de perdoar, somos nós que nos cansamos de pedir perdão. Deus não se cansa de perdoar, mesmo quando vê que a sua graça parece não conseguir criar raízes fortes no terreno do nosso coração, que é caminho duro, agreste e pedregoso. Por uma razão muito simples: Deus não é pelagiano e, por isso, não se cansa de perdoar. Volta a semear a sua misericórdia e o seu perdão: volta uma vez, outra e outra… setenta vezes sete.
Podemos, porém, dar mais um passo nesta misericórdia de Deus, que é sempre “maior que a nossa consciência” de pecado, e reconhecer não apenas que o Senhor não se cansa de perdoar, mas também que renova o odre em que recebemos o seu perdão. Usa um odre novo para o vinho novo da sua misericórdia, para que não seja como um vestido remendado ou um odre velho. E aquele odre é a sua própria misericórdia: a sua misericórdia experimentada em nós mesmos e posta em prática por nós ajudando os outros. O coração “misericordiado” não é um coração remendado, mas um coração novo, recriado; aquele coração de que fala Davi: “Cria em mim, ó Deus, um coração puro; renova e dá firmeza ao meu espírito” (Sal 50, 12). Este coração novo, recriado, é um bom recipiente.
A liturgia expressa a alma da Igreja, quando nos faz dizer esta oração encantadora: “Senhor nosso Deus, que de modo admirável criastes o homem e de modo mais admirável o redimistes” (Oração na Vigília Pascal, depois da Primeira Leitura). Por conseguinte, esta segunda criação é ainda mais admirável do que a primeira. É um coração que se reconhece recriado graças à fusão da sua miséria com o perdão de Deus e, por isso, é um coração “misericordiado” e misericordioso. Ou seja, experimenta os benefícios que a graça opera sobre a sua ferida e o seu pecado, sente que a misericórdia pacifica a sua culpa, inunda de amor a sua aridez, reacende a sua esperança. Por isso quando, ao mesmo tempo e com a mesma graça, perdoa a quem tem qualquer dívida para com ele e se compadece dos que também são pecadores, esta misericórdia lança raízes numa terra boa, onde a água não se perde mas dá vida.
No exercício desta misericórdia que repara o mal alheio, não há ninguém melhor para ajudar a curá-lo do que a pessoa que possui viva a sensação de ter sido “misericordiada” do mesmo mal. Olha para ti mesmo, repassa a tua história; conta a ti mesmo a tua história; e nela encontrarás tanta misericórdia. Vemos como, entre aqueles que trabalham com viciados, as pessoas que melhor compreendem, ajudam e sabem exigir dos outros são habitualmente aquelas que foram resgatadas. E o melhor confessor costuma ser o que melhor se confessa. E podemos questionar-nos: como me confesso? Quase todos os grandes Santos foram grandes pecadores ou, como Santa Teresinha, estavam cientes de que se devia a pura graça preveniente o fato de não o serem.
Assim, o verdadeiro recipiente da misericórdia é a própria misericórdia que cada um recebeu e lhe recriou o coração, que é o “odre novo” de que fala Jesus (cf. Lc 5, 37), o “poço sanado”.
Encontramo-nos assim no âmbito do mistério do Filho, de Jesus, que é a misericórdia do Pai feita carne. Através das chagas do Senhor ressuscitado, individuamos a imagem definitiva do receptor da misericórdia: uma imagem dos vestígios do pecado cancelado por Deus, que não se apaga totalmente nem supura (são cicatrizes, não feridas purulentas). As chagas do Senhor. São Bernardo tem dois sermões estupendos sobre as chagas do Senhor. Lá, nas cicatrizes do Senhor, encontramos a misericórdia. Com desassombro, diz São Bernardo: Sente-se perdido? Sente-se mal? Entra lá, entra nas chagas do Senhor e lá encontrarás misericórdia.
Na “sensibilidade” própria das cicatrizes, que nos lembram da ferida sem doer muito e a cura sem nos esquecermos da fragilidade, lá tem a sua sede a misericórdia divina: nas nossas cicatrizes. As chagas do Senhor, que permanecem ainda agora, levou-as consigo: o corpo belíssimo, as pisaduras não existem, mas as chagas quis levá-las consigo. E as nossas cicatrizes. Acontece a todos nós, quando vamos a uma visita médica e temos qualquer cicatriz, ouvir o médico perguntar-nos: “Por que motivo foi esta intervenção?”
Olhemos as cicatrizes da alma: esta intervenção que o Senhor fez, com a sua misericórdia nos curou… Na sensibilidade de Cristo ressuscitado que conserva as suas chagas não só nos pés e nas mãos, mas também no próprio coração, que é um coração chagado, encontramos o justo sentido do pecado e da graça. Lá, no coração chagado. Ao contemplar o coração chagado do Senhor, espelhamo-nos nele.
O nosso coração e o d’Ele assemelham-se no fato que os dois estão chagados e ressuscitados. Mas sabemos que o seu era puro amor, e ficou chagado porque aceitou tornar-se vulnerável; enquanto o nosso era pura chaga, que ficou curada porque aceitou ser amada. Nesta aceitação, forma-se o receptor da Misericórdia.
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