No Ano Santo da Misericórdia temos colocado em evidência a experiência da APAC, um trabalho de humanização da execução penal, nascido no Brasil. Nesta entrevista, Dom Murilo Krieger e Valdeci Ferreira, aprofundam este tema
“Não há lugar onde a sua misericórdia não possa chegar, não há espaço nem pessoa que ela não possa tocar”. Assim disse o Papa Francisco em fevereiro deste ano, em visita à América Latina, quando passou pelo Centro Penitenciário de Ciudad Juárez, no México, para celebrar com detentos o Jubileu da Misericórdia e lembrar que a misericórdia de Deus é para todos.
Seguindo os passos do pontífice, a AVSI Brasil encontrou o Arcebispo de Salvador e Primaz do Brasil, Dom Murilo Krieger, e o presidente da Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados (FBAC), Valdeci Ferreira. Durante um evento em Salvador, eles apresentaram o trabalho de recuperação do homem em cumprimento de pena nas unidades prisionais da APAC (Associação de Recuperação e Assistência aos Condenados).
Estamos vivendo o Ano Santo da Misericórdia. Qual a motivação do Papa para escolher esse tema?
Dom Murilo: Quando o Papa surpreendeu o mundo proclamando o Jubileu da Misericórdia, um ano que começou em novembro passado e irá terminar em novembro deste ano, ele quis destacar não um atributo de Deus, mas algo que é da essência de Deus. É da essência de Deus ser misericordioso. Inclusive, o Papa lembrou uma frase de São Tomás de Aquino que dizia assim: “É próprio de Deus usar de misericórdia e nisto se manifesta de modo especial a sua onipotência”. Então, Deus mostra sua força sendo misericordioso.
O que podemos entender por misericórdia?
Dom Murilo: A misericórdia, eu deixo a palavra ao Papa, “é fonte de alegria, de serenidade e de paz, é condição da nossa salvação. Seremos julgados pela maior misericórdia que tivermos com os outros”. Ele dá 4 definições de misericórdia: 1) Misericórdia é a palavra que revela o mistério da Santíssima Trindade. 2) Misericórdia é o ato último e supremo pelo qual Deus vem ao nosso encontro; 3) Misericórdia é a lei fundamental que mora no coração de cada pessoa, quando vê com olhos sinceros o irmão que encontra no caminho da vida; 4) Misericórdia é o caminho que une Deus e o homem, porque nos abre à esperança, porque nos abre o coração à esperança de sermos amados para sempre, apesar da limitação do nosso pecado.
Pode nos contar um pouco sobre a manifestação da misericórdia de Deus?
Dom Murilo: Jesus Cristo é o rosto misericordioso de Deus, é expressão viva. Quando Ele fala a parábola do Bom Samaritano, na verdade Ele quer dizer como Deus é em si. Quando Ele conta a história do filho pródigo, que na verdade é sobre o pai que ama muito, Ele está falando do seu pai, como é o seu pai: aquele que espera ansioso pela volta do filho. Toda a nossa salvação começou por um ato de misericórdia de Deus. Se o coração de Deus não fosse misericordioso, não teria se voltado para nós, porque Deus não precisa de nós; mas é próprio d’Ele ser misericordioso, porque assim Ele manifesta o que Ele é. A misericórdia, por ser um atributo de Deus, passa a ser um atributo nosso. O ser misericordioso como o Pai é um programa para nós, não é uma opção, não é um adjetivo que a gente pode colocar junto na frase ou não. Seremos julgados pela misericórdia. Tive fome, me destes de comer; tive sede e me destes de beber; estive preso e me visitastes (Mt 25). É próprio da Igreja e, portanto, próprio de cada um de nós, exercer a misericórdia e buscar meios de viver a misericórdia de Deus. Na carta encíclica Deus caritas est (Deus é amor), o Papa Bento XVI escreveu que a caridade deve ser organizada e deve ser organizada para produzir frutos. Mesmo porque não é possível todo mundo ir ao encontro de cada necessidade do mundo – por uma série de razões –, mas nos organizando podemos fazer com que as pessoas necessitadas, que precisam de misericórdia, sejam atingidas. Eu penso que foi nesse contexto que nasceu a APAC.
Quando conheceu a APAC?
Dom Murilo: Quando eu era padre, bem novo, no começo da década de 1970, morava em Taubaté e trabalhava com jovens no Vale do Paraíba. E acabei conhecendo Dr. Mário Ottoboni, quando ele começava a APAC. Parecia uma loucura. Ele começou justamente com uma expressão de misericórdia. Lutando contra tudo e contra todos, foi unindo pessoas em torno de si, que assumiram essa expressão de misericórdia, foram trabalhando e, a partir de determinado momento, os frutos falaram por si, se impuseram diante de tanta incredulidade. Para mim, não há dúvida nenhuma: temos muitas pastorais desafiadoras, como a que lida com dependentes químicos mas eu penso que o trabalho nas prisões é o desafio mais difícil, que exige mais determinação, perseverança e fé e, junto com a fé, o amor. Visitando os diversos presídios que nós temos, vemos que não vamos educar ninguém, não vamos recuperar ninguém, não vamos ajudar ninguém a descobrir a sua dignidade de pessoa de filho de Deus, criada à imagem e semelhança de Deus. Então, vejo com muita alegria essa perspectiva da APAC, uma nova luz num mundo tão difícil.
O lema da FBAC é “Ninguém é irrecuperável”. Em 33 anos dedicados à APAC, o senhor deve conhecer muitos fatos que confirmem e tornem concreta essa afirmação. Se for possível destacar um deles, qual considera mais marcante em se tratando da recuperação do homem numa APAC?
Valdeci: Eu não fiz outra coisa da minha vida senão cuidar de preso. Eu não fiz outra coisa senão visitar as prisões e tantas vezes ser submetido àquelas revistas humilhantes para ir ao encontro daqueles que muitas vezes não foram abraçados. Pessoas que foram golpeadas pela vida. Uma história que certamente muito nos marcou aconteceu na APAC de São José dos Campos, quando Dr. Mário ainda era o presidente daquela entidade. Chegou aos ouvidos do juiz da Comarca de que a APAC funcionava porque lá estavam os presos mais bonzinhos, aqueles que de certa forma já estavam como que recuperados. Então, o juiz – Dr. Silvio Marque Neto, na época – resolveu lançar um desafio e transferiu para APAC de São José dos Campos um dos presos considerados o mais perigoso de todo o Vale do Paraíba, que tinha o apelido de Boi Piranha. Ele havia cometido toda sorte de delitos, havia empreendido inúmeras fugas, de modo que, quando ele adentrou o presídio, houve um sussurro geral de todos os recuperandos, que diziam: “Agora nós estamos perdidos. Esse camarada chegou e vai estragar toda a nossa experiência”. Passada uma semana, o juiz ligou para o Dr. Mário para saber como estava o comportamento do famoso Boi Piranha, e o Dr. Mário disse que estava bem, estava tranquilo. Na semana seguinte, de novo, o juiz perguntou. Até que, lá pela terceira ou quarta semana, aquele preso já havia, de certa forma, se adaptado à rotina daquela APAC, de modo que as pessoas já nem se lembravam mais que ele estava ali. Depois de um tempo, chegou um outro preso para cumprir pena na APAC de São José dos Campos, chamado Valter. Ele havia cometido um crime de estupro e, no código dos presos, de um modo geral, essas pessoas que cometem delitos contra os costumes são muito judiadas, muito marginalizadas, muitos são mortos inclusive dentro dos presídios. E o Valter chegou à APAC. Ele parecia de fato semimorto na beira da estrada, porque os próprios companheiros o maltrataram muito, fizeram toda sorte de covardias. Ele chegou repleto de hematomas. Eles haviam conseguido quebrar a coluna dele. Ele foi transferido para a APAC para que nós cuidássemos daquele jovem. Depois de um tempo, para a nossa surpresa, quando entramos no corredor da APAC, passando diante da cela onde se encontrava o Valter, nós vimos o Boi Piranha dando banho no Valter, lavando as feridas daquele jovem. Eu confesso que, ao olhar para aquelas mãos, eu enxerguei mãos maternas. Eu me lembrei das mãos de minha mãe, das minhas irmãs, que acolhiam e acalentavam os filhos. As mãos de um homem que, no passado, foram capazes de cometer tantos crimes, delitos, maldades, agora eram mãos capazes de curar feridas. Esse fato, e tantos outros que eu pude presenciar ao longo desses 33 anos de jornada, nos deram a certeza de que ninguém é irrecuperável. O irrecuperável de hoje pode ser o recuperável de amanhã, não existem pessoas irrecuperáveis, o que existe é tratamento inadequado.
O que é uma APAC e como surgiu esse método?
Valdeci: A APAC é o resultado da sociedade civil organizada, que toma consciência de um problema grave, danoso, que é o sistema prisional brasileiro, e aponta uma solução. Mas a APAC é mais do que isso. A APAC é o resultado de uma vivência, colhida no dia a dia das prisões, através de uma escuta paciente, de uma escuta demorada, em reuniões de cela, em atendimentos. O método APAC não nasceu de cima pra baixo, não nasceu da cabeça de doutores. Ele é o resultado dessa escuta. De modo que, pacientemente, os nossos fundadores, com as devidas adequações de conformidade, com a mudança da realidade (que termina por exigir a mudança de paradigmas), foram colhendo dados dessa vivência dos recuperandos e foram, aos poucos, delineando uma metodologia, uma terapêutica penal própria constituída de 12 elementos fundamentais, entre os quais: a participação da comunidade; o recuperando ajudando recuperando; o trabalho; a espiritualidade; a assistência jurídica; a assistência à saúde; a valorização humana; a família do recuperando e a família da vítima; o voluntário; o mérito e a jornada de libertação com Cristo. Esses 12 elementos, quando aplicados de modo harmônico,vão produzir resultados efetivos que, hoje, fazem com que representantes da ONU afirmem que a experiência mais marcante no mundo atual, em matéria prisional, é o movimento das APACs no Brasil.
Qual é o fundamento do método APAC?
Valdeci: Existem três pilares que são os alicerces dessa terapêutica: o amor, a disciplina e a confiança. Nós partimos do princípio de que só o amor recupera o ser humano, porque só o amor é capaz de curar as feridas da rejeição, e as pessoas com as quais nós trabalhamos, com as quais nós lidamos, são pessoas que viveram experiências profundas e dolorosas de rejeição. Muitas já no ventre materno, outras na primeira, na segunda ou na terceira infância ou na adolescência etc. Pessoas que vieram de lares desestruturados, de famílias enfermas, de famílias doentes e que muitas vezes acabaram caindo no crime por causa dessas experiências fortes de rejeição. Eu chego até a dizer que o crime é a dor da rejeição levada ao extremo. Nos nossos presídios, no mundo inteiro, nas APACs, não é diferente: estão povoados por homens e mulheres famintos, sedentos, carentes de amor. Então, toda a nossa experiência se fundamenta nessa experiência do amor, nessa experiência da misericórdia. Outro pilar é a disciplina, uma disciplina rígida, que exige que os nossos recuperandos despertem às 6 da manhã e só vão dormir às 10 da noite. Uma rotina repleta de atividades que tem no trabalho e no estudo a obrigatoriedade. O zelo pessoal, o zelo com o irmão, o zelo com as coisas do irmão. Uma disciplina extremamente rígida, onde não se admite o uso de drogas, não se admitem agressões físicas, não se admite o uso de celulares etc. E, ao final, o pilar da confiança. Nós confiamos a ponto de entregar aos nossos presos as chaves do presídio, para que eles possam dela cuidar. Uma confiança extremada, onde os recuperandos podem se alimentar fazendo uso de talheres, de pratos de vidro, copo de vidro, faca e garfo e os nossos resultados são surpreendentes.
O senhor pode dar um exemplo dos frutos dessa metodologia na vida de uma pessoa?
Valdeci: Uma vez chegou uma carta em minhas mãos, entre dezenas ou centenas de cartas que eu recebo de presos de todas as partes do país. Nela um preso dizia que havia sido condenado a 25 anos, que estava num presídio comum lá de Itaúna e que esperava a chance dele de ir para a APAC. Então, eu fui procurar o juiz e o promotor na época. Levei a carta e, quando eles viram a carta e viram quem assinava a carta, falaram que aquele preso não foi nem poderia ser transferido para a APAC. Eu falei: mas vocês estão contrariando a própria portaria que vocês editaram, que diz que todo preso de Itaúna tem a possibilidade de ser transferido para a APAC de Itaúna, independente do crime ou do tempo de condenação (desde que a família dele resida na comarca, que ele esteja julgado e que manifeste o desejo de ir para a APAC). Ele se enquadra nas condições estabelecidas. Então, eles disseram que ele não iria, porque cometeu um crime muito grave na cidade, hediondo, um crime de latrocínio muito divulgado na imprensa. Se ele vai para a APAC e foge de lá, nós não teríamos condições de explicar isso para ninguém. Então, eu terminei a conversa, fui até o presídio, visitei aquele preso e ele, na porta da grade, em prantos e lágrimas, conseguiu entrar na minha mente e me convencer de que tinha recuperação e que não ia fugir da APAC. Eu voltei no fórum para tentar entrar na mente do juiz e do promotor e convencê-los – o que não foi uma tarefa fácil. Depois de uma boa conversa, dr. Rodrigo, um promotor extremamente rígido, me disse: - Você é o presidente de APAC? Eu falei: - Sou, nesse momento sou. Ele disse: - Você, como presidente, me garante que ele não vai fugir da APAC?. Eu falei: - Eu garanto! Ele disse: - Você me dá uma declaração por escrito dizendo que ele não vai fugir da APAC?. E eu, sem titubear, ali mesmo na sala da promotoria, firmei uma declaração assumindo a responsabilidade sobre aquele preso. Uns dois dias depois, esse jovem de 21 anos condenado a 25 chegou na APAC. Certamente ele foi para lá como muitos vão, com a intenção reta de fugir, porque sabem que lá não tem polícia, não tem agentes penitenciários. Só que, antes da chegada dele, eu havia reunido todos os recuperandos e explicado a situação: - Se ele fugir daqui, vocês estão perdidos comigo! Onde ele ia, tinham dois ou três vigiando. Por sorte ou por providência (eu quero acreditar que foi a providência) com menos de um mês, nós estávamos realizando uma Jornada de Libertação com Cristo, que compõe a nossa metodologia, e o tema era “Perdoar é ressuscitar quem está morto dentro de nós”. Ali esse jovem fez uma experiência muito forte, uma experiência de Deus. Ele cumpriu nove anos dentro da APAC de Itaúna sem cometer uma falta sequer. Terminado esse tempo, nós conseguimos com o juiz que ele fosse transferido para APAC de Alfenas, onde ele ficou 6 anos, cuidando e ajudando aquela APAC. Agora, ele é um dos funcionários da FBAC, juntamente com a esposa dele, dos quais eu fui padrinho de casamento no ano passado. Quando eu vi ele lá na frente de terno e gravata, todo bonitão, e vi a esposa dele entrando de véu e grinalda, eu confesso que fiquei muito emocionado, porque vi que Deus tinha me usado, apesar dos meus pecados, da minha falta de méritos, pra resgatar aquele jovem que, se não fosse por essa confiança nele depositada, certamente estaria apodrecendo como tantos outros que estão apodrecendo nos nossos presídios.
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