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Passos N.184, Setembro 2016

IGREJA | EZEQUIEL

O povo e o esposo

por Ignacio Carbajosa

O trecho de Ezequiel meditado por padre Julián Carrón durante os Exercícios da Fraternidade deste ano. E a audácia com que os profetas descrevem a aliança entre o Senhor e Israel. A solicitude a propósito de uma predileção imerecida e a infidelidade de Jerusalém, diante da qual Deus decide fazer “uma coisa nova”



Uma das coisas mais surpreendentes da Bíblia são as imagens que ela utiliza para exprimir a relação entre Deus e o seu povo. Para falar da aliança que o Senhor estabeleceu com Israel no Sinai, a Escritura poderia ter usado a imagem dos pactos de vassalagem entre um rei e seus súditos, ou entre um Império e as nações a ele submissas. Trata-se de imagens que encontramos na literatura religiosa de outras culturas, e que, aliás, não faltam na própria Bíblia. Essa imagem poderia ser mais adequada para expressar a distância entre um deus e o seu povo. Mas a literatura profética de Israel mostra uma certa audácia ao descrever a relação entre o Senhor e o seu povo como uma relação nupcial, sem excluir nenhuma das suas características.
O primeiro a utilizar essa imagem é Oseias, cuja própria vida já é um sinal para Israel: deve desposar uma prostituta e gerar filhos da prostituição. Assim se lamenta Deus em relação a Israel: “Processai vossa mãe, processai. Porque ela não é minha esposa, e eu não sou seu esposo! Que ela afaste do seu rosto as suas prostituições e de entre os seios seus adultérios” (Os 2,4).
Jeremias, por seu lado, remonta ao momento do noivado no deserto, quando o Senhor liberta Israel da escravidão no Egito, antes do casamento no Sinai: “Eu me lembro, em teu favor, do amor de tua juventude, do carinho do teu tempo de noivado, quando me seguias pelo deserto, em uma terra não cultivada” (Jr 2,2). Depois do casamento, Deus se pergunta, sofrendo como um esposo abandonado: “O que encontraram os vossos pais em mim de injusto, para que se afastassem de mim e corressem atrás do vazio?” (Jr 2,5).
Isaías também utilizará essa imagem, nesse caso para falar da restauração de Jerusalém após o exílio: “Já não te chamarão Abandonada, nem chamarão à tua terra Desolação (...); como a alegria do noivo pela sua noiva, tal será a alegria que teu Deus sentirá em ti” (Is 62,4-5).

A infidelidade. Mas o profeta que vai além, recorrendo às imagens mais audaciosas e provocantes é, sem dúvida alguma, Ezequiel. Ainda muito jovem, o profeta precisa deixar Jerusalém e dirigir-se a Babilônia com a primeira deportação ordenada por Nabucodonosor. Compreende na própria pele a razão desse drama: a infidelidade da cidade. Mas Jerusalém não compreende: continua percorrendo o mesmo caminho, buscando outros deuses e outras alianças políticas, sem colocar a sua esperança no Senhor. Passaram-se outros dez anos e Nabucodonosor retorna, destrói a cidade e o templo, põe fim à monarquia e manda para o exílio o resto da população.
É nesse período intermediário que Ezequiel recebe o seu chamado e o mandato de pregar, de longe, contra a cidade que se ilude. Se Oseias partia do casamento consumado, Jeremias do noivado e Isaías parecia prometer um casamento à cidade que enviuvara, Ezequiel parte do nascimento da criança que em seguida o Senhor desposará. O seu oráculo é endereçado à cidade de Jerusalém, verdadeiro coração do povo do reino de Judá, única coisa que resta depois das múltiplas infidelidades. Compreende-se, então, por que fala de uma origem pagã, algo que não se podia dizer do povo santo nascido do seio de Abraão. “Por tua origem e por teu nascimento, tu procedeste da terra de Canaã. Teu pai era amorreu e tua mãe, heteia” (Ez 16,3): Jerusalém era a cidade dos jebuseus, conquistada só mais tarde por Davi.

“Tu te tornastes minha”. Percorrendo todos os grandes lamentos de Deus pela infidelidade de Israel, sua esposa, veem à luz os benefícios que o Senhor concedeu ao seu povo. Desse modo, bloqueia-se desde o início qualquer tentativa de réplica: a infidelidade não tem desculpa, é sinal de ingratidão e irracionalidade. No caso de Ezequiel 16, começa-se descrevendo o nascimento da cidade-criança, que sendo pagã não goza dos benefícios da aliança. Ao contrário, é lançada ao chão sem sequer ter sido cortado o seu cordão umbilical, como de fato acontecia naquele mundo quando o recém-nascido não era do sexo masculino. Ninguém tinha pena dele. E aqui aparece o primeiro benefício de que goza qualquer ser, ainda que excluído da aliança: “Ao passar junto de ti, vi que te revolvias no teu próprio sangue. Eu te disse: Vive! Fiz com que crescesses como a erva do campo” (16,6-7). A vida é um dom de Deus. Aquela criança sobrevive pela vontade de Deus, mesmo sendo como a erva do campo, desprovida dos cuidados da aliança. De fato, a cidade dos jebuseus escapou do extermínio, não foi conquistada, em primeira instância, pelas tribos de Israel: sobreviveu como uma flor espontânea.
Nesse contexto “selvagem”, a criança começa a crescer e se torna uma mulher. É, então, que chega o momento do amor: “Passei junto de ti e te vi. Era o teu tempo, tempo de amores, e estendi a aba da minha capa sobre ti e ocultei a tua nudez; comprometi-me contigo por juramento e fiz aliança contigo - oráculo do Senhor Javé - e te tornaste minha” (16,8). A gratuita iniciativa do Senhor dobra-se sobre aquela jovem para desposá-la, acolhendo-a na aliança.
É exatamente isso que acontece com a conquista de Jerusalém pelas mãos do rei Dai, que mais tarde faz dela a capital do seu reino. Os efeitos dessa preferência imerecida não se fazem esperar: a mulher é lavada (ainda estava ensanguentada) e purificada (pertencia aos povos pagãos), ungida com óleo (como uma rainha). Trata-se de gestos de zelo próprios do contexto da aliança, mais uma vez descrita em termos matrimoniais. Começa, então, o rito da ornamentação da esposa com vestes e jóias, expressão do afeto que o Senhor sente por ela. Segue-se a descrição do alimento saboroso, que não é mais aquele de um animal selvagem. A descrição é, de fato, minuciosa e onde domina a iniciativa do Senhor, que cuida dos mínimos detalhes pelo amor à sua esposa. O resultado torna-se conhecido de todas as gentes: “Assim te tornavas cada vez mais bela, até assumires ares de realeza. Tua fama se espalhou entre as nações, por causa da tua beleza que era perfeita, devido ao esplendor com que te cobrias...” (16,13-14). É o momento do máximo esplendor de Jerusalém, no tempo do rei Salomão, quando a rainha de Sabá se apresentou para contemplar a beleza do seu templo, dos seus palácios e dos seus muros. A minuciosa arquitetura da narrativa torna evidente a origem de toda a beleza de Jerusalém: “Pela glória que eu pus em ti” (16,14, na versão da CEI 1974 - a versão de 2008 não tem essa nuance).
E eis a traição que o Senhor lamenta amargamente. No versículo 15 muda o sujeito. Das ações de Deus passa-se às ações da mulher-Jerusalém: “Puseste a tua confiança na tua beleza e, segura de tua fama, te prostituíste, prodigalizando as tuas prostituições a todos os que apareciam” (16,15). A beleza doada não foi a ocasião para se dirigir ao seu amado cheia de gratidão: misteriosamente, Jerusalém não reconhece, e se volta para os seus amantes (os ídolos e as nações com as quais procura alianças políticas). Todas as vestes e jóias que recebeu do Senhor, que são sinal do afeto apaixonado do seu esposo, ela os usa agora par adornar os altares... para pedir afeto aos ídolos que não podem dar-lhe afeto. Os alimentos, que expressam um cuidado valioso da parte do Senhor, ela os põe diante de imagens inanimadas como oferenda de suave perfume... buscando uma companhia que os ídolos não lhe podem dar.
É difícil não nos reconhecermos descritos nessa passagem. Assim fizeram o papa Francisco e o pe. Giussani. Como Jerusalém, nós também precisamos de um coração novo no qual possamos guardar o afeto como um juízo, como uma simpatia radical. Mas é aqui que o Senhor, movido por piedade do seu povo, decidiu fazer uma coisa nova. Pedro, o traidor, diante de Jesus, é a primeira testemunha dessa nova criação.


APROFUNDAMENTOS
> O livreto dos Exercícios espirituais da Fraternidade de CL.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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