O cruzamento com o nacionalismo. O sistema de castas. A rejeição da modernidade. E também da liberdade, da pessoa... Um missionário de longa data explica por que a religião mais difundida na Índia desemboca, quando instrumentalizada pela política, em ódio anticristão. Como está ocorrendo atualmente
O hinduísmo é a única grande religião a não ter um fundador. Ele é um conjunto inorgânico de crenças e de ritos que foi se formando ao longo de milênios, num processo incessante de transformação. É hindu não aquele que crê em determinadas verdades dogmáticas, e sim quem nasceu numa comunidade tradicional da Índia, cujos membros têm precisos direitos e deveres de ordem social, não-religiosa: regras que dizem respeito à dieta alimentar, à pureza ritual, a várias formas de comportamento social.
Civilização em crise
A dificuldade de entender a Índia vem também dessa indeterminação da religião nacional, que criou uma grande civilização, que foi capaz de unir povos muito diferentes, mas que hoje atravessa uma fortíssima crise de identidade, frente ao avanço da civilização moderna.
Para compreender os ataques às missões cristãs atuais, é preciso partir desse dado de fato. O único fundamento, por assim dizer, dogmático do hinduísmo é a “reencarnação das almas”. As sagradas escrituras (em sânscrito, remontam a 2000-1000 anos antes de Cristo) falam claramente: “Aqueles que tiveram uma vida virtuosa – diz o Chandogya Upanishad – renascem no corpo de um brâmane ou de um nobre guerreiro ou de um outro ser humano honrado. Aqueles que se entregaram aos vícios renascem em seres inferiores e vis, no corpo de um pária ou de um cão ou de qualquer outro animal imundo”. A alma (atman) é eterna, mas vive sempre em corpos de homens ou de animais, passando de um para outro quando a morte do corpo anterior a liberta, e renasce segundo o karma de cada um, isto é, de acordo com as ações cumpridas durante a vida anterior. A existência humana é um ciclo de nascimento e renascimento, até a definitiva libertação.
O fundamento da Índia tradicional é o sistema de castas, uma sociedade hierarquicamente ordenada, com direitos e deveres bem definidos pela casta, de modo a assegurar a paz da sociedade e um melhor karma para todos.
As castas imobilizam a sociedade indiana, e, embora tenham sido abolidas com a independência de 1947 e pela Constituição nacional, continuam a regular a vida de centenas de milhões de indianos, sobretudo na zona rural. Esse sistema cria uma real solidariedade no seio de cada casta, “um por todos e todos por um”. A estrutura de pequenas unidades graníticas é o segredo da sobrevivência do povo indiano através de milênios
O neo-hinduísmo
O hinduísmo, que sempre permaneceu imóvel, por influência das missões cristãs começou, a partir da metade do século XIX, a se renovar por meio de várias samaj (associações) e grandes personalidades religiosas, algumas das quais (Ghandi, Vivekananda, Vinoba Bhave, Aurobindo) fortemente influenciadas pela figura de Jesus Cristo e pelo cristianismo (o que não aconteceu na renovação islâmica). O neo-hinduísmo procura conservar os valores fundamentais da tradição indiana (sobretudo a religiosidade), mas rejeitando o que é incompatível com o mundo moderno.
Ao mesmo tempo, porém, depois da subida ao poder de Rajiv Ghandi (filho de Indira, morta em 1984) e da queda do muro de Berlim (1989), a Índia renunciou ao modelo soviético de desenvolvimento e se colocou decididamente dentro da economia de mercado livre, que produziu um boom econômico jamais visto no país. Embora em forte crise, o hinduísmo tradicional está ressurgindo por causa do nascimento de vários partidos que assumiram o lugar do Congress Party e se baseiam no sistema de castas e instrumentalizam o sentimento religioso do povo.
Das castas às violências
O desenvolvimento econômico e social da Índia, hoje, é freado pelas castas, uma estrutura social milenar que não desaparece tão facilmente. Portanto, de um lado temos as forças políticas, culturais e religiosas modernas da Índia, que tendem à democracia, à liberdade de pensamento e de religião; do outro, as forças do indutva (o nacionalismo religioso-político) tendem a impor a todo o país, inclusive pela força, o princípio de que “Só o hindu é um verdadeiro indiano”, e assim desencadeiam atos de violência contra os muçulmanos (13% da população indiana, de mais de um bilhão de habitantes) – que respondem à violência com mais violência – e contra os cristãos (apenas 3%), os quais não nutrem sentimentos de vingança e terminam por ser tornar o bode expiatório da situação. Os ataques às missões e às obras cristãs tornaram-se um fato quase que rotineiro em alguns estados do centro-norte (Orissa, Madhya Pradesh, Uttar Pradesh, Gujarat, Bihar).
O motivo fundamental dessa violenta reação anticristã é a consciência de que o “mundo moderno” terminará inevitavelmente por destruir a sociedade indiana tradicional. A presença das pequenas comunidades cristãs no meio do povo difunde os valores do mundo moderno: valor absoluto da pessoa humana, igualdade de todos os homens frente ao Estado, a mulher com os mesmos direitos do homem, liberdade de pensamento e de religião, justiça social... Se o povo indiano entrar nessa lógica “moderna”, abandonará o hinduísmo e a Índia perderá a sua cultura e a sua identidade profunda, pregam eles.
As elites hindus, tanto religiosas quanto laicas, por meio do diálogo com o cristianismo e das escolas cristãs, inclusive universitárias (as mais credenciadas, 12% das quais são indianas), amadureceram uma visão superior do hinduísmo e conseguem, de algum modo, permanecer hindus, embora vivendo plenamente a modernidade; mas as massas populares (onde o analfabetismo chega a 35%) vivem ainda um hinduísmo tradicional e são mais facilmente instrumentalizadas pelos partidos políticos extremistas.
O extremismo hindu contra as missões cristãs tem também uma outra motivação.
A obra social dos missionários sempre se voltou para a promoção das classes mais pobres e marginalizadas. Entre os “sem-casta” (ou dalit, ou párias, são hoje cerca de 150 milhões de pessoas) e os tribais (outros oitenta milhões), as missões desenvolveram um trabalho grandioso, reconhecido inclusive pelo governo indiano: elas deram aos pobres uma consciência da sua dignidade e dos seus direitos. Quem visitou as regiões habitadas por párias ou por tribais há 20-30 anos e volta para lá agora pode testemunhar a profunda revolução social realizada ali, sem qualquer violência, só por meio da educação das pessoas.
Há mais de cinquenta anos visito a Índia e o estado de Andhra Pradesh, onde trabalham os missionários italianos do Pime, e cada vez admiro mais os passos gigantescos dados pelos próprios párias. Para citar só um exemplo: onde, em 1964, havia os párias “servos da gleba”, que eram contratados como diaristas para trabalhar nas terras dos proprietários rurais, hoje há duas universidades fundadas pelos missionários e destinadas a eles (Engenharia e Medicina). É fácil entender os interesses que estão por trás daqueles que não querem essa promoção dos sem-casta!
Hoje, no mundo não-cristão, a Índia é o país mais próximo de Cristo e do Evangelho, não só pela sua Igreja viva e florescente, mas pela penetração dos valores cristãos em sua cultura. As missões e as comunidades cristãs tiveram grande influência no amadurecimento e na renovação do Hinduísmo. Gandhi queria uma Índia progressista, mas não materialista e atéia; as raízes da Índia moderna são bem diferentes daquelas do Ocidente cristão: estas são atéias e anticristãs (Iluminismo, filosofia idealista, marxismo...); as indianas, ao invés, são teístas e influenciadas pelo Evangelho e pelas Bem-aventuranças.
Não é estranhar, pois, a atitude do extremismo hindu. É preciso rezar e apoiar de todos os modos os cristãos da Índia. A terra de São Tomás de Aquino terá um grande papel na difusão do Evangelho na Ásia.
Um bilhão e 147 milhões de habitantes: a Índia é o segundo país mais populoso do mundo. Cerca de 80% da população é hinduísta e em segundo lugar está o islamismo, com mais de 100 milhões de fiéis. Os cristãos são a minoria (abrangência de 3%) e se concentram, sobretudo, nas zonas do sudeste. O hinduísmo, mais do que uma religião, é uma filosofia de vida com dois fulcros: o karma, que são as ações que podem levar à reconciliação com o Ser supremo, e o dharma, que são as regras que guiam a sociedade, as castas e os indivíduos. |
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