No centenário de seu nascimento, uma viagem pela vida e obra de um autor italiano que marcou a história recente da literatura. Porque, como afirma seu biógrafo Lorenzo Mondo, “perfurou a crosta da realidade”, para prestar contas ao destino
“A vida só tem valor se a gente vive por alguma coisa ou por alguém.” Bastaria essa frase, tirada de A casa na colina (La casa in collina), para captar a dimensão e a inquietude de Cesare Pavese, autor fundamental do século XX na Itália, um narrador com estilo enxuto e direto. Lorenzo Mondo, ex-vice-diretor do jornal italiano “La Stampa”, que há muito tempo dedica-se a estudá-lo, explica: “Cesare Pavese é um escritor religioso. E ao mesmo tempo, ou justamente por isso, está profundamente mergulhado na realidade. Não escreve para si, perfura a crosta da realidade e nos leva às profundezas”.
Em suma, excluamos logo possíveis equívocos: trata-se da religiosidade de um homem que se debate com as coisas reais e não nos leva para regiões rarefeitas ou remotas, mas onde os nervos descobertos da nossa consciência são tocados um a um. Eis porque, há cem anos do seu nascimento, ocorrido em Santo Stefano Belbo, Norte da Itália, no dia 9 de setembro de 1908, vale a pena conhecer um pouco da sua obra.
Seu trabalho, por assim dizer, de discernimento existencial é extraordinário. Pavese leva-nos às soleiras do destino – o pessoal, de cada um, e o coral, de todos nós – e investiga a alma humana, suas infinitas aspirações, suas perguntas irredutíveis, suas incertezas. E tudo isso com uma prosa – e, às vezes, uma poesia – que é ao mesmo tempo épica e cotidiana, voltada para o céu e empastada de terra.
Tomemos o final de A casa na colina (romance não editado em português no qual o protagonista Corrado foge de Turim, atingida por bombardeios, refugia-se nas colinas, e depois volta ao seu vilarejo natal): a imagem terrível da Itália dilacerada pela guerra civil, pelo desastre que se seguiu ao 8 de setembro. “O escritor está entre os primeiros a abordar o tema da guerra civil e o faz de um ponto vista original, seu”, analisa Lorenzo. “Agora que vi o que é a guerra, o que é a guerra civil, sei que todos, ao término dela, deveriam perguntar-se: o que fazemos com os que caíram? Por que morreram? – Eu não saberia o que responder. Não agora, pelo menos. Nem me parece que alguém o saiba. Talvez só os falecidos o saibam, e somente para eles a guerra terminou, de fato”. Lorenzo observa: “Essas palavras desenham uma perspectiva que escapa às leituras ideológicas”.
Um homem livre
Em que senso? Pavese, em seu Caderninho secreto, chegou a ventilar uma reforma do fascismo; após 1945, animou-se com o comunismo, mas em ambos os casos a sua abordagem foi personalíssima, não-ortodoxa. “Pavese era um homem livre. E esse trecho também é uma prova disso: sentimos piedade, a piedade pelos mortos sem cor política e que escandaliza os vencedores, embriagados com a retórica própria da Resistência; percebe-se aí aquela ânsia de verdade, aquela conjugação tão pavesiana entre vida, guerra, morte, destino”.
O escritor pode ser visto todo inteiro nessa conjugação. Seu fascínio está exatamente nesse ponto, tão alto e tão profundo, tão religioso e tão terreno.
Gianfranco Lauretano, outro estudioso do autor, afirma: “Pavese gira em torno de alguns temas. Dois, em especial, me impressionam: o destino, entendido como algo incompleto e iminente, e o retorno às raízes, à própria casa, à infância, à origem, a algo que não se consegue nunca agarrar”. E junto com esses temas correm outros, página após página, fortemente ligados entre si: morte, mulher, solidão. As grandes figuras de seus romances carregam, ainda aberta, essa grande ferida, e as tramas são lugares pensados para escandalizar o espírito humano, em geral dentro da moldura inextinguível da tragicidade.
“Há uma frase que dá de modo explícito o sentido desse destino tão pesado”, diz Lauretano. Quase como um escafandro que aprisiona o homem que corre para a sua realização. “Podemos encontrá-la em O diabo nas colinas (Il diavolo sulle colline); história de três jovens estudantes, das suas travessuras noturnas e do seu encontro com Poli, um jovem rico e debochado). “Como? – gritou Pieretto ao vento – Você não sabe que aquilo que o atinge uma vez se repete? Que assim como a gente reagiu uma vez, voltará a reagir sempre?”. Eis aí o homem, o homem que, tal como os protagonistas desse livro, se debate para livrar-se do tédio que o atormenta, mas está preso nesse saco, junto com suas aspirações.
Naturalmente, a complexidade de Pavese não pode ser simplificada com esquemas pré-fabricados, e às vezes os próprios protagonistas refletem o debate interior e a oscilação de suas considerações. Como um tecido dupla-face: “A gente não aprende a ser suficiente sozinho – nos diz Clelia em Mulheres sós (Tra donne sole) – a não ser depois de fazer a experiência em dois”. Mas poucas páginas depois, Clelia sai-se com esta: “Nada como estar, à noite, sobre o mesmo travesseiro, para entender que cada um foi feito de um modo todo seu e tem o próprio caminho a fazer”. E cada um caminha, inexoravelmente, para um final áspero, dramático, trágico.
Final anunciado
Por que Rosetta se mata? Clelia, a certa altura desse livro fantástico, que desfia as fofocas, os sentimentos, as maldades, as ilusões e as desilusões de um grupo de mulheres, tendo como pano de fundo o suicídio (primeiramente mal-sucedido e, depois, concretizado de Rosetta), explica-o entregando-nos uma verdade muito amarga: “Rosetta Mola era ingênua, mas levava as coisas muito a sério”. Como Pavese, justamente. “No fundo, era verdade que havia se suicidado sem motivo, não certamente por aquela estúpida história do primeiro amor com Momina, ou por qualquer outra confusão. Ela só queria estar sozinha, queria isolar-se do barulho; mas em seu ambiente ninguém podia ficar sozinho, ninguém podia fazer nada sozinho, a não ser saindo de cena”. Como faz Pavese dia 27 de agosto de 1950, com apenas 42 anos, com uma morte que se parece muito com a dessa jovem.
Mulheres sós é o romance da solidão e da morte. Mas é também e, sobretudo, o romance do retorno, da busca pelo destino. Clelia volta a Turim, não vê a hora de reencontrar o beco escuro em que cresceu. “O grande tema, só aparentemente lateral, é o retorno impossível, o passado irrecuperável, as coisas que conseguimos quando não nos servem mais. E Clelia encontra-se com a Turim exuberante – a velha e a nova burguesia, a nobreza esquecida e reconvertida –, que é obrigada a frequentar por causa do seu trabalho”, observa Lorenzo. Em suma, o retorno a Turim não leva a lugar nenhum. Só à morte de Rosetta.
Assim como a viagem de Pavese de volta a Santo Stefano Belbo, a vila onde havia nascido em 1908, é um fracasso. “Pavese escava, escava, escava. Procura aquelas raízes que poderiam lhe dar uma identidade, um pertencimento, um sentido. Mas também aí a louca corrida em direção ao passado não preenche o presente e as expectativas sobre o futuro. Aquela epígrafe no início de A lua e as fogueiras (La luna e i falò; história de Anguilla e do seu retorno dos Estados Unidos, onde enriqueceu, para as colinas de Langhe, onde crescera, de uma pobre família de camponeses) – ‘For C. Ripeness is all’ (Para C. amadurecer é tudo) – não se cumpre”, insiste Lauretano.
Permanece aquele incipit memorável: “Há uma razão para eu ter voltado a este vilarejo, para cá e não para Canelli, para Barbaresco, ou para Alba... Quem pode dizer de que carne sou feito? Girei o suficiente pelo mundo para saber que todas as carnes são boas e que se equivalem, mas é por isso que a gente se cansa e procura lançar raízes, abraçar a terra e a própria aldeia, para que a sua carne valha algo e dure algo mais do que um virada de estação”.
E permanece aquele “escorregar” obstinado à procura de si mesmo. Com Anguilla, que exprime um ponto de vista que é de todos nós, como um coral grego: “Precisamos de uma aldeia, ao menos pelo gosto de deixá-la um dia. Uma aldeia quer dizer não estar sozinho, saber que no povo, nas plantas, na terra, há algo da gente, e que mesmo quando não estamos lá, ela está a nos esperar”.
“Ó Tu, tem piedade. E depois?”
À terra, à terra que o gerou, Pavese pede a solução desse enigma que é a vida. A pergunta, a questão que volta conjugada com todas as palavras-chave de seu vocabulário tão existencial, permanece fincada dentro dele. “A propósito, há um episódio esclarecedor – explica Lorenzo –. Rosa Calzecchi Onesti, que está trabalhando na tradução de Ilíada, lê Antes que o galo cante (Prima che il gallo canti, díptico que contém La casa in collina e Il cárcere (O cárcere). E intui em A casa na colina um tormento religioso, fazendo votos de que ele o supere. Pavese lhe responde: “Quanto à solução que você deseja que eu encontre, creio que dificilmente irei além do capítulo XV do gallo. De qualquer forma, você não se enganou que aí está o ponto-chave, o locus de toda a minha consciência”.
De fato, nesse capítulo Corrado entra na igreja. E define aquele instante como “explosão de alegria”. “Rezar, entrar na igreja – nos diz Pavese – é viver um instante de paz, renascer num mundo sem sangue”. Lorenzo acrescenta: “Seguramente Pavese teve, nesse período, depois do 8 de setembro, uma crise religiosa. Padre Baravalle, o padre Felice de A casa na colina, relata que o atendeu em confissão e lhe deu a comunhão dia 1º de fevereiro de 1944”. Ele, em O ofício de viver (Mestiere di vivere), anota: “A gente se humilha ao pedir uma graça e acaba descobrindo a íntima doçura do reino de Deus. Quase que a gente se esquece daquilo que pedia: gostaria apenas de usufruir para sempre dessa explosão de divindade”.
Mas sabemos também que essa paz, conquistada naquela igreja, se despedaçará. Pavese ganha o prêmio Strega – o mais importante prêmio italiano de Literatura –, torna-se famoso, e vê-se novamente só. Ainda mais só do que antes. No verão de 1950, depois da enésima desilusão amorosa, de se desiludir com o projeto de construir um laço com Constance Dowling (a C. da dedicatória do livro), a situação agrava-se. Fecha o diário, O ofício de viver, com uma derradeira e raivosa invocação: “Escrevo: ó Tu, tem piedade. E depois?”.
“Perdôo a todos...”
Dia 27 de agosto de 1950, domingo, suicida-se em Turim com um sonífero, no apartamento 43 do Hotel Roma. Deixa uma mensagem sóbria, maiakovskiano: “Perdôo a todos, e a todos peço perdão. Tudo bem? Não fofoquem demais”. Na escrivaninha, uma cópia dos Diálogos com Leucó (Dialoghi con Leucò). Lorenzo conclui: “Nesse livro aflora todo o Pavese religioso, que não cansa de se perguntar sobre o sentido da vida. Num dos pontos altos, o diálogo intitulado Aos Deuses (Agli Dei), o divino é proposto como uma experiência, como um encontro que o homem moderno acabou perdendo, embora ‘diante da dificuldade, na hora incerta’, sinta saudade dele”.
Então, é o caso de nos perguntarmos por que exatamente esse livro acompanhou Pavese na última viagem. “Creio que essa escolha não foi casual. Pavese sentia que esse texto encerrava o sentido mais profundo da sua existência e da sua arte. Talvez naquela noite, a última da sua breve vida, tenha encontrado força para folheá-lo, como viático e breviário, testemunha da única verdade que lhe fora concedida”, responde Lorenzo.
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Obras de Pavese em Português
Diálogos com Leuco
Ed. Cosac-Naify
2001
A lua e as fogueiras
Ed. Berlendis & Vertecch
2003
O ofício de viver
Ed. Bertrand Brasil
1988
Credits /
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