Praça Tahrir, os Irmãos Muçulmanos, o retorno dos generais. Até o atentado na catedral copta de São Marcos. No Cairo, em seis anos, aconteceu de tudo. Para WAEL FAROUQ, as promessas da revolução não foram mantidas. Mas a cabeça do povo está mudando. E também algumas leis
Há seis anos os fatos da Praça Tahrir ocorreram poucas semanas após a primeira edição do Meeting Cairo, uma inusitada experiência “de amizade entre os povos” promovida por Wael Farouq, então professor na American University. A revolução foi como que o advento de algo inesperado que, logo, todos perceberam que estavam aguardando. Seis anos que parecem sessenta. Porque, depois da queda de Mubarak, aconteceu de tudo. A subida ao poder dos Irmãos Muçulmanos e a sua queda. O retorno dos militares. E também: a Síria, a Líbia, o nascimento do Estado Islâmico (Isis). A cantilena dos governos e da imprensa ocidental. O cínico retorno da Rússia à cena internacional. Até ao atentado do último 11 de dezembro contra a Catedral copta de São Marcos, no Cairo.
Que efeito faz rodar para trás a fita da história e voltar às bandeiras alçadas pelos jovens egípcios? Que distância há entre os slogans de então e a realidade de agora? Porque o Egito não é um país como outro qualquer: ainda hoje é o centro cultural do mundo árabe. No Cairo, de fato, não se vê bem somente o passado; pode-se também tentar entrever o futuro. Assim, é interessante voltar a questionar o professor Farouq, hoje professor da Universidade Católica de Milão, sobre o que será do seu Egito.
Quando o senhor olha o Cairo de hoje, o que pensa?
Wael Farouq: A revolução de 2011 não conseguiu gerar formas e protagonistas da vida política à altura dos ideais da Praça Tahrir. O Egito não manteve as promessas. Não se pode dizer que o nosso país é democrático e liberal. Mas seria errado julgar a situação sem olhar para o que acontece no resto do Oriente Médio. Líbia, Sudão, Síria, Iêmen: o mundo árabe é uma área tomada por guerras. O fato de o Egito não estar envolvido nelas não é pouca coisa. Mas lá também existe a guerra contra o terrorismo. Como os outros países não envolvidos diretamente com as guerras abertas - penso na Tunísia e na Jordânia e, de maneira diversa, na Turquia – o Egito foi atingido pelos atentados dos fundamentalistas islâmicos. E é o que está acontecendo na Europa: Berlim, Bruxelas, Paris... No fundo, no Cairo, durante os últimos dois anos, não ocorreram mais atentados do que na capital francesa. O Egito continua sendo um objetivo do terrorismo, e isso é explicável também pelo fato de ele não ter querido envolver-se nas guerras na Síria e no Iêmen, ao lado dos esquadrões jihadistas, como fizeram outros países.
O Egito ainda é um ponto de referência para o resto do Oriente Médio?
Wael Farouq: Sim, basta ver o quanto os sauditas ficaram espantados quando o grande imã de al Azhar, com outros 200 estudiosos provenientes de todos os países muçulmanos, assinou a declaração de Grozny, na qual se diz que a ideologia wahabita, promovida por Riad, não pertence ao verdadeiro Islã. O Egito continua tendo um papel central; em todos os países árabes os técnicos, os intelectuais, os dirigentes das instituições culturais são egípcios que migraram. Estão no Catar, em Dubai e também na Arábia Saudita. O nosso país ostenta duzentos anos de tradição de liberalismo e modernismo. Nos últimos anos houve uma verdadeira contraofensiva cultural e política ao wahabismo. Até a Europa está se tornando o campo de batalha desse confronto que, antes de ser militar, é ideológico. Os wahabitas são o verdadeiro inimigo do Egito, e deveriam sê-lo também das democracias ocidentais.
O senhor está certo disso?
Wael Farouq: Não me parece um mero detalhe que todas as sextas-feiras, em todas as mesquitas da Arábia Saudita, a oração se conclui com a invocação a Deus para que destrua os cristãos e os judeus. É algo que acontece normalmente, de modo público. Sem escândalo. Eu vejo um conflito entre a cultura islâmica liberal e modernizada, promovida pelo Egito, e o Islã fundamentalista de caráter wahabita apoiado pelos sauditas. O que está em curso na Síria é a imagem mais dramática do que estou querendo dizer. Mas o confronto tem raízes culturais muito profundas. E um dos nós é a aliança entre intelectuais wahabitas e a família real saudita.
Os sauditas são acusados de financiar o fundamentalismo. O que o Egito está fazendo?
Wael Farouq: O general al Sisi, atual presidente, não se cansa de pedir uma renovação do discurso religioso. Está ocorrendo, de fato, uma mudança profunda. Não é por acaso que o objetivo dos atentados no Egito sejam sempre os cristãos coptas. O Isis quer convencer o mundo de que o novo tipo de convivência entre muçulmanos e cristãos é impossível. Esses ataques querem destruir o novo que nasceu nestes anos. A grande conquista da revolução de 2011 é que nunca como hoje muçulmanos e cristãos se sentiram unidos. É uma provocação enorme para o resto do Oriente Médio, e é o motivo pelo qual o Estado Islâmico faz de tudo para minar essa unidade. Não estou dizendo que a ideologia wahabita não está presente no país. Digo que o que aconteceu na Praça Tahrir mudou o coração das pessoas, antes que as instituições e as organizações políticas e religiosas.
O que o leva a pensar assim?
Wael Farouq: Pensemos no que aconteceu depois do grande atentado aos coptas de Alexandria, na noite de São Silvestre de 2011. Foi atingida a Igreja dos Santos e assassinadas 22 pessoas. Então, a única reação foi a das autoridades religiosas muçulmanas, que se limitaram àquelas costumeiras tomadas de posição autoabsolutórias: “Não, o Islã não é isso”. A apologia que é feita depois de cada atentado. Com os amigos do Meeting Cairo, havíamos tentado organizar um concerto em homenagem às vítimas do atentado. Não foi possível. Tomemos o último caso, o de 11 de dezembro na Catedral de São Marcos, no Cairo, sede do papa copta Tawadros II. Vinte e cinco mortos e trinta e cinco feridos. Há alguns anos era impensável ver centenas de muçulmanos acorrer para doar sangue para salvar vidas de cristãos feridos na igreja. Nas mesquitas rezou-se com a sura dedicada a Maria para que as almas das vítimas sejam levadas ao Paraíso. É o que estou vendo: a mudança do coração do homem, que é capaz de mudar a sociedade. Depois, estão chegando também algumas leis. Desde a década de 1950 que o Egito não tinha uma norma que regulasse a construção de igrejas. Agora existe, foi aprovada dia 30 de agosto. Não é uma lei perfeita, certamente, mas dá grande liberdade aos cristãos. Em qual outro país árabe estão sendo dados passos semelhantes?
Nesse contexto, que papel tem al Azhar?
Wael Farouq: A universidade islâmica também está infiltrada por muitos wahabitas. Mas as contradições entre as posições dos grandes estudiosos sempre existiram. O atentado de 11 de dezembro caiu no dia em que se recorda o nascimento do profeta Maomé. Poucas horas antes, al Sisi voltara a repetir o seu apelo pela renovação do discurso religioso. Então o ministro dos negócios religiosos, que é de al Azhar, ordenou que na sexta-feira seguinte, em todas as mesquitas do país, se lesse um único texto de condenação. Bem, al Sisi criticou de modo duro essa iniciativa, porque não basta impor um texto padrão para mudar o discurso religioso. A mudança deve nascer da vida cotidiana. Parece-me que o presidente entendeu que o povo está muito mais adiante que as instituições religiosas e políticas. Isso me dá muita esperança. Vejo pessoas que, sem hesitações ou medo, fazem o bem no qual acreditam. O Egito não é mais um país que ensina aos seus filhos que peçam a Alá a morte de cristãos e judeus. Parece-me que, desse ponto de vista, acabou o tempo da ideologia.
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