Michel tem um doutorado em Literatura russa. Mas hoje vive na Irlanda, trabalhando como vendedor de software. “E todo dia vou descobrindo a mim mesmo”
Cresceu com a paixão pela literatura e pelas línguas estrangeiras, cultivou-a com afinco desde o ensino médio e conseguiu um doutorado em Literatura russa, com a perspectiva de uma carreira acadêmica. Hoje, trabalha no setor de vendas de uma supercompetitiva empresa americana de software em Dublin.
Michel foi catapultado para um “novo mundo”, como ele diz. Aos 31 anos chegou à Irlanda seguindo a esposa, que já tinha um emprego lá. No início, tentou achar um trabalho no seu campo, mas não conseguiu, então teve que recomeçar do zero. Ou quase.
Não ficou parado. “É uma coisa muito dura”. Em perfeito estilo anglo-saxão, o trabalho gira todo em torno de números e resultados, ainda mais numa empresa de information technology que cresce velozmente. “Você é o que você produz. E se não produz, está fora”. A gente é uma bolinha no grande quadrante que mede os desempenhos: cada funcionário tem o seu nome nesse esquema, que está à vista de todos. “Quanto mais a sua bolinha está no alto, maior é o seu índice de vendas”. Contam os telefonemas que você faz num dia, quantas vezes você fala com os clientes. Num mundo que está numa corrida contínua: corre a economia (a irlandesa está entre as mais velozes do mundo), e correm as pessoas para ganhar mais, comprar uma casa, abrir um financiamento...
“Eu fui em frente, reinventando-me, colocando no serviço tudo o que eu havia aprendido e construído nos anos de estudo e em outras experiências”, conta Michel. O seu ponto forte é a simplicidade com que vive o trabalho, tal como ele é. “Tenho que enfrentar esse modo de trabalhar, tão enquadrado. É a situação na qual a minha vida se joga. Num primeiro impacto, pode parecer estranha, sobretudo se você não está acostumado. Mas estou aprendendo que é um bem, com toda a fadiga e o stress que comporta”. É preciso levar para casa um plano específico de contatos com os clientes e de oportunidades de novos negócios toda semana, com objetivos financeiros cada vez mais altos.
Por que é um bem? “Porque me ensina a responder a alguém, a ser responsável pelas minhas ações. Também a ter coragem de recomeçar do zero, ser sincero e dizer: eu preciso disso. Como fiz esta manhã, quando pedi ao meu chefe para me ajudar a entender como encarar a carga de trabalho que me aguarda este mês”. Não esconder a dificuldade. Ou viver a jornada esperando que as coisas se ajustem. “É interessante também ir até ele e partilhar o que penso, os pontos de desacordo, ideias diferentes. Não como um obstáculo, mas para propor, aprender”. As atitudes do chefe também mudam: “Compreendo que ele também está sob pressão, como nós: é medido pelo sucesso. Tomar consciência disso abre uma relação construtiva”.
O que mais o entusiasma é a nota de fundo de tudo: “O trabalho é uma ocasião contínua de avaliar a minha experiência. Eu chego ao escritório sabendo que não coincido com os meus resultados, porque sou educado pela fé cristã, pela pertença ao Movimento, a conhecer o valor da minha vida. E essa consciência é um recurso muito importante para mim. Mas é uma consciência que se aprofunda justamente aí, enfrentando o trabalho. Cada vez se torna mais minha”. Num ambiente onde quem faz assim ou é muito sortudo ou é muito, muito corajoso. “Mas são poucos. Muitos outros vivem na frustração”.
Às vezes corre-se o risco de ser tomado pela ansiedade, mas se a gente a admite, até a pressão se torna uma ocasião para caminhar. “Reavalio, recomeço. Olho os resultados que preciso obter, sei que será difícil, e me pergunto se eu sou o que faço ou se sou mais do que isso. E então posso, com liberdade, dar tudo: procurar vender o máximo possível e fazê-lo bem. Apoiado pelos amigos e pela relação com alguns colegas”. Sorri. “Há também muitos aspectos positivos que me apaixonam. As relações, antes de tudo. Depois os projetos que seguimos, para resolver problemas de negócio ou de pesquisa científica. Até o conhecimento que eu tinha do mundo universitário tornou-se útil...”.
E aquele desejo que o levou a fazer o doutorado? “Não lamento por não ter seguido a carreira acadêmica; prefiro viver o que tenho, gastar aqui o que eu pensava usar de outro modo. É belo descobrir que o trabalho não é cristalizado: é uma caminhada, que pode mudar e mudar de novo. Não é indolor deixar para trás um mundo que você ama e no qual pensa em se realizar. Mas há um mundo que eu não conhecia, e que é interessante. E me leva a descobrir a mim mesmo”.
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