As heresias, a Igreja Militante, as Ordens Mendicantes... O grande mestre florentino também viveu em uma época em que o mundo inteiro mudava. E respondeu revolucionando a História da Arte. Porque a fé é “um momento de tempo concretíssimo”
Ao entrarmos na grande sala capitular da Igreja de Santa Maria Novella, em Florença (Itália), chamada Capela dos Espanhóis, nos deparamos com os afrescos de Andrea de Bonaiuto, de 1365 aproximadamente. Das histórias de São Pedro de Verona, dominicano e mártir, à celebração do papel desempenhado pelos Dominicanos na Igreja. Vemos isso no grupo representado na parte inferior, à direita da entrada, que está na frente da Santa Maria del Fiore, a Igreja Militante: encontramos expoentes de ordens monásticas, cavaleiros, o Pontífice (provavelmente Bento XI), junto com o imperador Carlos IV. Segundo a tradição, entre os fiéis estariam as figuras de alguns conhecidos representantes das artes da época: Cimabue, Giotto, Arnolfo di Cambio, Dante... protegidos por dois cães de cor branca e preta, os “cães do Senhor”, simbolizando os frades de São Domingos. Mas o que Giotto e os outros têm a ver com a Igreja Militante?
Não é uma simples curiosidade, nem uma questão de especialistas. Tentar responder essa pergunta pode nos ajudar a entender o que vivemos agora. Porque o grande mestre que revolucionou a História da Arte também viveu em circunstâncias que o Papa Francisco chamou de “não uma época de mudanças, mas uma mudança de época”. Como nós, hoje.
Um corpo real. Os Dominicanos chegaram a Florença para combater a propagação da heresia dos cátaros na cidade, que tiveram muitos seguidores e simpatizantes, muitas vezes em formas ocultas de agregação ou confundidos com outros, como os paterinos. Favorecida pelos movimentos que criticavam o clero e os monges por terem traído o Evangelho e o ideal de pobreza de Cristo, esta heresia tinha uma concepção dualista da realidade, criada a partir de dois princípios: o Bem e o Mal. Desprezavam a matéria, negavam a encarnação de Cristo e os Sacramentos, “matéria” através da qual se “toca” o Senhor. Assim como São Domingos, seus discípulos se dedicavam à pregação do Evangelho vivendo o exemplo de uma vida pobre e austera.
Giotto, de acordo com o alemão Michael Viktor Schawarz (autor de uma de suas biografias), passou sua juventude no distrito de São Pancrácio, onde havia a oficina do ferreiro Bondone, seu pai, e tendo como paróquia de referência justamente a de Santa Maria Novella. Portanto, não parece uma coincidência que entre as referências de Giotto, indicadas pelos estudiosos, esteja Temigio de’ Girolami, que também pertencia à paróquia de São Pancrácio e que, por isso, esteve durante anos entre os pregadores da Basílica “guiada” pelos Dominicanos embora tenha estudado em Paris, na escola de São Tomás de Aquino.
Esse fato explica muito bem uma das revoluções que o mestre trouxe para pintura da época. Giotto ressalta a “matéria” e o “espaço” físico porque o cristianismo, assim como a própria vida, é algo que acontece na realidade, na carne, num momento de tempo concretíssimo. O Mistério se fez carne, Cristo tem um corpo real, material, como se vê no Crucifixo criado especialmente para a Santa Maria Novella. Não uma ideia, um vago espiritualismo ou uma fábula, mas um homem que vive em um lugar preciso: entre as casas de uma cidade “verdadeira”, em um quarto, em uma paisagem com montanhas, árvores e pedras. A descoberta de Aristóteles, o florescimento de um movimento científico centrado na descoberta do corpo e sua saúde, os estudos sobre a luz e a forma, são o pano de fundo de um modo de pintar que insere – através de veladuras, sombras e gradação de cores – a perspectiva tridimensional. Onde as dobras do tecido dão forma ao corpo e a cena é construída sobre planos de perspectiva que convergem para o ponto mais importante.
O céu é azul. Mas a mudança que Giotto traz para a Arte não para aqui. A narrativa suscita nos personagens representados uma reação que também deve ser mostrada, ser vista. Não mais a estaticidade, mas o “movimento”. Todos são colocados “dentro”, identificados com aquela matéria, a ponto de serem por ela transformados. É uma exaltação dos sentimentos, das reações, que devem ser mostrados e que fazem parte do realismo do que acontece, dos corpos e da natureza. De resto, justamente São Tomás tinha entendido que o desenvolvimento humano estruturalmente se dá através da experiência, do sentir e da inteligência, do ser feitos para a verdade. Entendemos que existimos porque agimos: “A pessoa percebe que tem uma alma, que vive e que existe na medida em que sente, entende e exercita outros atos vitais similares” (De veritate).
Portanto, não apenas a “matéria” em oposição ao espiritualismo extremo, mas também os sentimentos, a pessoa que reage e continua sendo atingida, sofre a atração, se maravilha ou sofre. E isso também explica o legado que chega a Giotto da presença, em Florença, dos frades franciscanos, que frequentará muitas vezes e em muitas cidades. Timothy Verdon, historiador de Arte e diretor do Museo dell’Opera del Duomo, escrevendo sobre a espiritualidade de Giotto, sublinha como nele floresceu a concepção vivida por São Francisco, de quem o pintor contará a história nos afrescos de Assis e na Capela Bardi: “o artista mostra o santo perfeitamente ‘conformado’ a Cristo... redescobrindo a natureza, o corpo e os sentimentos”.
O historiador de arte, Luciano Bellosi, introduzindo as ideias de Henry Thode, crítico alemão que viveu na virada do século XVIII para o XIX, enfatiza justamente essa “profunda conexão entre a espiritualidade de São Francisco e a arte de Giotto, entre a força subversiva da religiosidade franciscana e o potencial de inovação estética do movimento criado por Giotto. As modalidades de representação da vida do santo, a relação entre pregação, poesia e representação figurativa, as grandes alegorias... desenham o itinerário geográfico e ideal de uma revolução espiritual e artística destinada a marcar toda a história do Ocidente”. Giotto simplesmente percebe as coisas como elas realmente são, parte do dado, sem preconceitos, porque normalmente, como diz Gaber em um monólogo dedicado ao mestre florentino, “o homem entende tudo exceto as coisas perfeitamente simples”: o céu de Giotto será simplesmente azul.
Linguagens simples. Vivendo profundamente seu tempo, o artista florentino participa desta renovação trazida pelas Ordens Mendicantes. Aquele momento histórico não era “uma época de mudanças, mas uma mudança de época”: enquanto o mundo “envelhecia”, a Igreja soube encontrar o caminho para se renovar através dos santos que, como disse Bento XVI, “com a palavra e com o exemplo sabem promover uma renovação eclesial estável e profunda, porque eles próprios são profundamente renovados, estão em contato com a verdadeira novidade: a presença de Deus no mundo” acompanhando a “História da Igreja em meio às tristezas e aos aspectos negativos do seu caminho”.
Entre as Ordens dos Mendicantes, em um momento certamente dramático, complexo e rico de contradições, os mais significativos foram seguramente os Franciscanos e os Dominicanos de modo, às vezes, contrastante. Falando do pobre de Assis e do espanhol São Domingos de Guzman, o Papa Ratzinger continua: “Estes dois grandes santos tiveram a capacidade de ler com inteligência ‘os sinais dos tempos’, intuindo os desafios que a Igreja precisava enfrentar. Mostraram que era possível viver a pobreza evangélica, a verdade do Evangelho como tal, sem se separar da Igreja. Tiraram exatamente da íntima comunhão com a Igreja e com o Papado a força de seu testemunho”.
Franciscanos e Dominicanos “com linguagens simples” difundiram “uma devoção à humanidade de Cristo usando exemplos concretos e compreensíveis”. As instituições leigas, as antigas corporações e as próprias autoridades civis se dirigiam a eles, também para a solução de embates internos e externos. E se adaptaram às transformações da sociedade: uma vez que as pessoas estavam migrando do campo para as cidades, construíram seus mosteiros em áreas urbanas. Souberam entender “as transformações culturais em ato naquele período. Novas questões animavam as discussões nas universidades que surgiram no fim do século XII (...) e como estudantes e professores, entraram nas universidades mais famosas da época, fundaram centros de estudos, produziram textos de grande valor, deram vida a verdadeiras e próprias escolas de pensamento”.
Giotto dará vida não apenas a um estúdio muito ativo e sede de muitos mestres, mas também a uma verdadeira e própria “escola” que influenciará toda a arte italiana subsequente. Numa época que está mudando, com sua revolução pictórica o artista florentino atinge o auge de uma renovação que – expondo-se a riscos, contradições e já a novas decadências – o levará a ser considerado, como escreve o historiador Giovanni Villani em 1340, “o mestre da pintura mais notável que já existiu”.
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