“Non plus ultra”. São as três palavras que a tradição afirma estarem gravadas nas colunas de Hércules, o limite extremo do mundo. Na fachada da Catedral de Santo Domingo, a primeira das Américas, estão esculpidas, mas sem o “non”: “Plus ultra”, porque o que era impensável existe. Há alguma coisa – e muito – além do conhecido.
No Continente aonde a fé chegou a quebrar os limites do previsível, aquele lema está estampado nas camisetas dos voluntários e nos livrinhos da Assembleia de Responsáveis de CL da América Latina (Aral), que completa dez anos. O logotipo escolhido não é uma evocação poética, é saber que há uma navegação ainda mais audaz: o ideal da vida é um sonho ou existe e pode ser tocado? Não há nada de óbvio nos três dias de diálogo (de 17 a 19 de março) entre Julián Carrón e os amigos vindos a São Paulo de vinte países, depois de viagens, em certos casos, mais longas do que a estadia.
Passou-se um ano de caminho e as condições de vida em muitos lugares são mais oprimentes, reduziriam a cinzas todo desejo. Para alguns, ao contrário, não. “Amo a vida agora mais do que antes”. Jenny é uma jovem mãe de El Tocuyo, uma cidadezinha rural aos pés dos Andes, no Norte da Venezuela, onde a crise não poupa ninguém: com os amigos criou uma rede de distribuição de alimentos para as famílias mais carentes. Está muito feliz por poder fazê-lo. “É demais o que eu recebi”, ela explica: “Encontrar Cristo é uma graça tão grande que, para agradecer, você abraça a vida tal como vem”.
A cada dia é preciso se confrontar com as agitações sociais do próprio país. Ou com o próprio mal. Com a perda do trabalho, da confiança, ou com o medo de perder sua filha que decidiu querer “debatizar-se”, como relata Juan José, argentino, que, depois de trinta anos de CL, de repente percebe não saber amar a liberdade. Não saber nem mesmo o que é aquela “liberdade pura” na qual Giussani apostou tudo. Porém, vislumbra alguma coisa: o modo como dois amigos, Dom Eduardo e padre Leo, tratam sua filha, e ela se abre, ao passo que com ele é um embate contínuo, no qual também os ensinamentos do Movimento se tornam uma arma. “Deus lhe responde na realidade por meio daqueles amigos”, sugere Carrón, “rompe o seu bloqueio e o leva a perguntar-se: se ela comigo fica em conflito, o que eu devo aprender?”.
No Uruguai os jornais relatam acerca de uma moça que decidiu abortar, e do namorado dela, que vai ao tribunal porque quer a criança. Inesperadamente, o juiz dá razão a ele e o país se divide em dois. “Nos debates que explodiram, as opiniões são um tsunami”, relata Agustín: “Eu tenho claro meu juízo, não tenho dúvidas sobre a questão, entretanto me parece não transmitir a verdade. É como se eu partisse de uma certeza para acabar defendendo-me, na insegurança”. “Isto é decisivo”, diz Carrón: “Por que passamos da certeza à insegurança?”. A pergunta fica aberta.
Os problemas políticos e sociais não atormentam somente a opinião pública, mas famílias e amizades. Ernesto é um rapaz venezuelano: “Eu lia a Escola de Comunidade sobre a ‘postura’ para a qual a Igreja nos educa, e não entendia. Depois ocorreu um fato. Na minha família existem fortes divisões. Um dia me encontro com dois tios meus: um chavista e o outro antichavista. Ambos me perguntam sobre o Movimento, querem saber, e eu conto. Ficam fascinados, e, como eles, também minha prima, que algum tempo depois me diz: ‘Ouvindo-o falar assim sobre a fé, eu pedi ao meu namorado para ir à Igreja’. Com ela está nascendo uma amizade belíssima”. Carrón lhe diz: “Por que você pode ser interessante para pessoas de tendências opostas? Pelo pertencer a uma experiência que o liberta, que rompe o mecanismo ação-reação. De qualquer forma, amigos, numa situação tão dramática como a de seu país, um rapaz que a vive com letícia não é uma anedota. O que é?”. Outra pergunta que se abre, e são tantas nestes dias, como o perguntar-se por que existe uma afeição, uma unidade tão potente, entre pessoas que nunca se veem. Ou a gratuidade dos amigos brasileiros e dos voluntários, que trabalham para o evento e procuram resolver as necessidades de quem quer que seja, a qualquer hora.
Uma questão de certeza. Gianni, no Chile, tem uma oficina mecânica. Um funcionário lhe pede uma licença: deve acompanhar a namorada para abortar. Não pode ficar calado diante desta dor e tenta conversar com ele. Dias depois, o rapaz lhe comunica que não tem mais necessidade da licença, porque mudaram de ideia: “Não é por aquilo que você me disse. Mas pelo modo como me disse”. Depois relata acerca de três rapazes que chegam para um estágio. Ele acredita muito na importância de transmitir o trabalho e fica sempre contente em acolher os jovens. Atende-os para a entrevista. Começa o primeiro: “Meu nome é Paula”. Também o segundo se apresenta como mulher. O terceiro não, tem nome masculino. “O impacto foi dramático”, conta: “Mas decidi dar-lhes o trabalho, porque eu fui olhado pela verdade de mim. Agora posso dizer que estou admirado, todos na oficina estamos, pelo modo como trabalham. São fantásticos, um espetáculo”. “É ambiguidade isso?”, o Carrón provoca: “É falta de certeza? Nós achamos que a certeza é intransigência. É o contrário. Quem é mais frágil, é mais rígido”.
Vê-se de forma imponente no testemunho da primeira noite: Valdeci Antônio Ferreira, o presidente da Federação das APAC’s, os presídios sem polícia nem armas (ver Passos jan/fev). Valdeci relata a revolução judiciária e social de uma obra que “não é minha, não é nossa, é o sonho de Deus diante do abandono do homem”. É Valdeci quem decidiu dar as chaves da APAC nas mãos de José de Jesus, o detento que tinha fugido doze vezes dos presídios comuns, e que respondendo à pergunta de um jornalista deu um nome a esta revolução: “Por que daqui você não foge?”. “Porque do amor ninguém foge”.
“O que podemos fazer para nós mesmos, para os nossos amigos, para os nossos filhos, para os nossos países?”, pergunta Carrón no dia seguinte. As grandes mãos que abraçam o filho pródigo de Rembrandt destacam-se no pano de fundo: “Aquele pai não o obrigou, não deu respostas a perguntas inexistentes, e respeitou a liberdade sem abandoná-la: continuou a construir a casa que pudesse acolhê-lo, mostrando, simplesmente, que uma possibilidade de vida diversa existe”.
Oliveiro é mexicano. Cinco anos atrás compareceu na sua confeitaria a mãe de um amigo de juventude, pedindo-lhe ajuda, porque o filho estava deprimido e alcoolizado. “Marcou-me antes de tudo ela”, relata Oliveiro: “Ela tinha a certeza de poder confiar, por um mínimo de fé que viu. Eu procurei o filho dela e nestes anos nasceu uma amizade”. Até que um dia o amigo o chama, pede para ir à casa dele, e para não escandalizar-se. Ele tinha feito cortes nos braços e nos pulsos. Diz: “Eu tenho 35 anos, nunca trabalhei, tenho uma namorada e não sei o que dar a ela, bebo… Mas você, por que nestes cinco anos nunca me disse nada?”. Oliveiro responde: “Eu tenho a sua fragilidade. Mas encontrei outra coisa”. E lhe conta sobre a experiência que faz. Uma semana depois, o amigo vai encontrá-lo e o olha nos olhos, coisa muito rara: “Quero lhe agradecer pelo abraço do outro dia. Decidi que quero viver aquilo que você vive”. “É isto o que peço, para mim e para ele”, conclui Oliveiro: “Reconhecer o lugar em que sou olhado de um modo verdadeiro, em que encontro toda a minha dignidade humana”.
Testemunho como presença. A verdade de que tanto precisamos não se impõe, revela-se em um encontro, no qual a liberdade se abre. Só assim é iluminado “o lado edificável” de toda situação, pessoal e social. Verdade e liberdade. Este, que é o coração do livro A beleza desarmada, de Julián Carrón, traduzido para o espanhol e o português. Não é um problema europeu, mas desafia o passado e o presente em qualquer lugar.
Vê-se isso no diálogo em que Carrón responde às perguntas de Victor Vorrath, jornalista mexicano, de Juan Sebastian Vargas, empresário colombiano, e de Horácio Morel, advogado de Buenos Aires, a partir dos três fatos que marcam o rosto da América do Sul hoje: o muro de Trump, o processo de paz com as Farc’s e a reconciliação na Argentina após o regime militar. Por que optar pelo testemunho como presença e não come militância? Que é o verdadeiro diálogo? Como se faz para sair do ceticismo que a fé possa deveras incidir nas situações? Desde a crise migratória às teorias de gênero, parece que a fé não baste.
Carrón diz: “A fé não basta, se não sabemos o que é a fé. A fé não é um equilíbrio entre ‘entrar no mérito’ das coisas ou ‘estar fora disso’. Nós, para defender os valores mais sagrados, a primeira coisa que dizemos é: ‘Estas não são questões confessionais, estas são coisas que todos reconhecem’. Não! não é assim. E pensar ainda assim é o nosso primeiro erro. Falta a origem”. Retoma o Concílio Vaticano II e a grande alternativa entre uma fé reduzida à ética e a verdadeira natureza do cristianismo: “Tudo o que acontece é para que possamos redescobrir que o ponto-chave, a resposta mais concreta a tudo, é o encontro que fizeram João e André. E que nós fizemos”.
Insiste nisto também na segunda noite, no diálogo aberto com quatro educadores da Argentina, Brasil, México e Chile e um seu ex-aluno de Madri, que relata: “Estávamos na escola mais leiga da cidade. E ele nos desafiava sempre. Por exemplo, na sexta-feira nos dizia: “Desejo-lhes que si realizem todas as coisas que vocês desejam para o fim de semana”. Assim poderíamos intuir a necessidade infinita que temos dentro”.
O mesmo estímulo a olhar a experiência que caracterizou o encontro com os universitários, no primeiro dia de Aral. Perguntas e respostas onde nada é tido como óbvio. Guilherme, de Belo Horizonte, relata a sua caritativa com as mulheres no presídio e o desejo de transmitir-lhes o valor infinito que elas têm. “Por que você diz que estas mulheres têm um valor infinito?”. Silêncio. “Como você o sabe? É porque você tem um valor infinito? Se você é um pobre coitado como eu, se nascemos e morremos, onde está esse valor infinito? Repete-o como um mantra?”, insiste Carrón. Ele responde tê-lo visto em Rose Busingye, de Uganda, quando esteve no Rio de Janeiro: “Desejo ter a mesma consciência disto que ela tem”. “Você o viu. Eis por que o sabe, mesmo antes de entendê-lo”, continua Carrón: “Como os discípulos com Jesus, que antes de compreender o valor infinito da vida entenderam que o relacionamento com aquele homem era essencial para a vida. E você terá consciência disso sempre mais e o transmitirá sempre mais, se se deixar gerar pelo lugar no qual começou a intui-lo. E será uma descoberta muito maior do que você imaginou”. Existe uma terra mais além.
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