Nos cem anos das aparições de 13 de maio, o Papa canoniza Francisco e Jacinta. O Cardeal José Saraiva Martins, ex-prefeito da Congregação para as Causas dos Santos, explica a “extraordinária heroicidade” dos pastorinhos. E por que Fátima fala ainda hoje para nós
“Sobre Fátima e os três pastorinhos que viram Nossa Senhora eu ouvi falar desde criança, faz parte do DNA de nós, portugueses; lembro ainda hoje da emoção que senti quando me levaram lá. Jamais pensei que um dia me tornaria, em certa medida, um dos protagonistas desse evento, que eu contribuiria para elevar aos altares Francisco e Jacinta, que conheceria e encontraria regularmente Irmã Lúcia, e que depois pediria ao Papa que abrisse antecipadamente o processo de beatificação da última vidente de Fátima”.
Quem fala, com um sorriso, quase se desculpando, é o Cardeal José Saraiva Martins, 85 anos bem vividos, ao me receber para esta entrevista, em Roma. Conheço há anos sua Eminência, no decorrer dos anos me fez muitas confidências, me permitiu também entrar com as câmeras pela primeira vez no mundo no Arquivo da Congregação para as Causas dos Santos, da qual foi Prefeito por dez anos, permitindo-nos filmar os sinais tangíveis que ficaram sobre a terra dos milagres, como as marcas que acontecem na caminhada pela Lua, como os grãos de arroz que, em 1949, na Espanha, se multiplicaram nas panelas da mesa para os pobres, sob os olhos de centenas de testemunhas, como se fosse a renovação do milagre dos pães e dos peixes; as radiografias da mulher hindu repentinamente curada pela intercessão de Madre Teresa; os grossos volumes que acolhem os maravilhosos testemunhos sobre o Padre Pio.
E hoje, com o Cardeal português, falamos dos cem anos das aparições de Nossa Senhora em Fátima, ocorrência que leva pela primeira vez o Papa Francisco ao Santuário, meta da peregrinação, todo ano, de milhões de pessoas. E se no dia 13 de maio de 2000 foi João Paulo II quem beatificou dois dos três pastorinhos, Jacinta e Francisco, e mandou revelar a terceira parte do segredo de Fátima, neste 13 de maio é Bergoglio quem vai proclamá-los santos. Mortos muito jovens, os corpos de Jacinta e Francisco estão sepultados na Basílica. Ao lado deles, agora repousa também Lúcia.
Eminência, uma vez um seu colega Cardeal me disse: “Na minha opinião, crianças tão pequenas não deveriam ser elevadas às honras dos altares. Quando crianças, todos somos santos”. O que o senhor pensa disso?
Antigamente era proibido beatificar – e, portanto, canonizar – crianças, porque se achava que elas não eram “capazes de praticar em grau heroico as virtudes cristãs”, primeiro requisito para, depois, se elevar alguém à glória dos altares. Mas, para mim, não era um princípio aceitável, e Jacinta e Francisco foram as primeiras crianças na história da Igreja a ser beatificadas. Elas foram de uma “heroicidade cristã” extraordinária, que gostaria de encontrar em muitos adultos. Procuraram aterrorizá-las, para que dissessem que aquilo que tinham visto era uma fantasia de crianças. Elas nunca cederam, nem mesmo frente a ameaças de morte feitas pelas autoridades que as haviam detido. Chegaram a lhes dizer que Lúcia tinha sido morta no óleo fervente, e que elas teriam o mesmo fim. Mas não cederam.
Já transcorreu um século daquelas aparições. Como pode ser útil para o homem de hoje proclamar santos crianças que viveram naquela época?
Podem ser modelos modernos de como viver a fé – não só entendê-la, mas vivê-la. Elas puseram em prática, concretamente em suas vidas, tudo o que Nossa Senhora lhes disse. Aderiram com alegria ao que tinham encontrado. Foram capazes de maravilhar-se.
Fátima é um “lugar” pleno de mistérios. O Sol que gira frente a centenas de pessoas, uma fonte milagrosa, uma mensagem discutida ainda hoje. Falou-se muito do terceiro segredo de Fátima (na realidade, a terceira parte de um único segredo). João Paulo II tornou-o conhecido no átrio do Santuário, mas há quem diga que não foi revelado integralmente, e que uma parte continua ainda oculta. O que o senhor acha disso?
Penso que é uma bobagem. Acho que foi revelado tudo o que era para se revelar. Não há mais nenhum mistério, e não se pode pensar que os Papas que disseram que tudo foi revelado tenham decidido mentir a respeito.
Depois da queda do Muro de Berlim e dos primeiros sinais de decadência do regime soviético, eu me lembrei de uma afirmação de João Paulo II à Irmã Lúcia. A última vidente me disse: “Evitou-se a terceira guerra mundial”. Palavras que me espantaram.
Entendo sua reação, mas é verdade. É muito verdade. As condições para uma terceira guerra mundial estavam postas. Certamente. E foi evitada. Se não rezarem, virá uma terceira guerra mundial, anunciara Nossa Senhora. Ela foi evitada. Graças às preces.
No terceiro segredo se fala também de um Bispo vestido de branco que morre assassinado. João Paulo II identificou-se com essa referência, embora ele não tenha sido morto. “Uma mão disparou, uma outra desviou a bala”, disse.
Ele foi expressamente a Fátima para oferecer a Nossa Senhora a bala que ia matá-lo. Eu estava sentado ao lado dele quando, no Santuário, ofereceu essa bala à Virgem, para agradecer por tê-lo salvo. Estávamos numa sala, a estátua de Nossa Senhora de Fátima estava sobre a mesa, de frente para ele, e eu estava ao lado do Papa. Wojtyla apoiou a bala sobre a mesa, e com o dedo a fez avançar, lentamente, com pequenos empurrões, para perto de Nossa Senhora. Estava vivendo intensamente aquele momento. Até que a bala ficou bem em frente à imagem.
Como se fosse um diálogo com Nossa Senhora...
Sim, um diálogo de gratidão. Agora aquela bala está incrustada na coroa da estátua de Nossa Senhora de Fátima.
Os dois pastorinhos serão proclamados santos. Quanto à Irmã Lúcia, ainda está em curso o processo de sua beatificação. O senhor a conheceu muito bem, era um dos poucos que podiam se aproximar dela.
As férias eu as passo habitualmente em Portugal, e as freiras do convento de clausura de Coimbra, onde Irmã Lúcia vivia, me convidavam, cada 15 de agosto, para celebrar missa para elas na festa da Assunção de Maria. Antes ou depois da celebração, fazíamos um encontro com as irmãs e naturalmente ela também estava lá. Lúcia era uma pessoa muito simples, mas muito inteligente. Prudente, sábia, com uma memória impressionante, e também muito concreta. Tanto que – e isso pode surpreender – quando as irmãs decidiram fundar um outro convento, porque já eram em número muito elevado, escolheram justamente ela para conversar com os arquitetos e acompanhar a construção do novo edifício. Tarefa não muito fácil. Pensa-se que os santos vivem uma vida abstrata, perdidos no espiritual. Nunca é assim! São pessoas concretíssimas. Lúcia não vivia nas nuvens. E era dotada também de um grande senso de humor.
O processo de beatificação de Lúcia também começou quando o senhor era Prefeito da Congregação das Causas dos Santos.
Segundo a lei canônica, um processo de beatificação só pode começar cinco anos após a morte. Mas quando se passaram apenas dois anos da morte de Irmã Lúcia, achei que era o caso de abreviar o tempo. Então, fui até o papa Bento XVI e lhe disse: “Santidade, antecipar em alguns anos o processo é a maior Graça que o senhor pode fazer para a Igreja portuguesa e para a Igreja universal”. E Ratzinger respondeu: “Está bem, então façamos assim”. Eu esperava que os três pastorinhos pudessem ser canonizados juntos, mas não foi possível.
Passados cem anos, o que resta de Fátima?
A sua mensagem ainda é atual, atualíssima. Refere-se aos problemas concretos, existenciais, que vivemos cada dia na Igreja e na sociedade. Antes de tudo, a fé, que infelizmente está desaparecendo. Há uma crise de fé, hoje, no mundo, que penetra também nos católicos, penetra na Igreja. Viver a mensagem de Fátima significa converter-se e aproximar-se cada vez mais de Deus e dos irmãos. Depois, é também um apelo à paz. Do que os jornais falam diariamente? Atentados, massacres, destruições. As religiões tornaram-se motivo de separação e morte. Mas Deus é fonte de paz. Sobretudo o fundamento da mensagem de Fátima é a esperança. Sem esperança a vida não tem sentido. Tantos jovens, hoje, não sabem mais qual é o sentido da vida. Não se fala muito disso, mas muitos se suicidam. Sem a esperança não se pode viver. Não se pode ser feliz sem conhecer o sentido, o fim da vida. Em Fátima, Nossa Senhora disse que a vida com Jesus é uma vida verdadeiramente vivida, vivida com alegria e com entusiasmo. Que extraordinária beleza é o cristianismo!
* Vaticanista de SkyTg24
História de uma presença
13 de maio de 1917. Nossa Senhora aparece a três crianças: os irmãos Francisco e Jacinta Marto e a prima Lúcia dos Santos. Elas estavam pastoreando o seu rebanho perto de Fátima, junto à Cova da Iria, quando veem uma “Senhora mais brilhante que o Sol”: ela as convida a voltar ali durante os próximos cinco meses, todo dia 13 de cada mês, na mesma hora. As crianças voltam, e a notícia das aparições se espalha rapidamente pelo povoado.
13 de agosto de 1917. Os três pastorinhos são detidos pelo prefeito da cidade e levados para Vila Nova de Ourém para ser interrogados. No dia seguinte são libertados: a quarta aparição acontece, então, com alguns dias de atraso, dia 19, e num lugar diferente.
13 de outubro de 1917. Última aparição de Nossa Senhora aos três pastorinhos. Mais de 70 mil pessoas estão presentes na Cova da Iria, como testemunhas: a Senhora diz que é Nossa Senhora do Rosário, pede que seja construída uma capela para ela. Acontece em seguida o “milagre do Sol”: para espanto dos presentes, o disco solar começa a girar sobre si mesmo, tornando-se enorme, como se estivesse para cair sobre a Terra.
4 de abril de 1919. Morre um dos pastorinhos, Francisco, atingido pela gripe espanhola. Poucos meses depois, em fevereiro de 1920, morre também Jacinta.
Outubro de 1930. A Igreja declara as aparições “dignas de fé”, e permite oficialmente o culto de Nossa Senhora de Fátima.
3 de outubro de 1934. Lúcia professa os votos perpétuos, ingressando na ordem das Carmelitas descalças. Suas confissões revelarão em diversos momentos os segredos que Nossa Senhora confiou aos pastorinhos.
13 de maio de 2000. Em Fátima, João Paulo II beatifica Francisco e Jacinta. É revelado o terceiro segredo.
13 de fevereiro de 2005. Morre também Lúcia. Três anos depois, é aberto o processo para a sua beatificação.
11-14 de maio de 2010. Viagem apostólica de Bento XVI, aos dez anos da beatificação de Francisco e Jacinta.
13 de maio de 2017. Na viagem a Fátima, o Papa Francisco canonizará Francisco e Jacinta.
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