Cuba é um lugar suspenso no tempo. Mas onde coisas antes impossíveis estão acontecendo: encontros estratégicos para a política mundial, aberturas em relação à Igreja e por parte da Igreja. Entre elas, a existência da pequena comunidade de CL e a apresentação da biografia de Dom Giussani
O passado ainda está ali. Algo físico que pode ser visto e tocado nos grafites de Che Guevara e nas fotos de Fidel Castro, ou nos almendrones, carros americanos dos Anos Cinquenta que são usados como táxis compartilhados para ir até o centro. Ou as inscrições nos prédios que lembram o momento em que o calendário mudou: “Estamos no 59º aniversário da Revolución”. Foi quando nasceu o “Muro dos Caraíbas” e Cuba tornou-se a bandeira de meio mundo, referência do socialismo real.
Fora dali, dissolveu-se quase em todos os lugares. Aqui, não. A impressão é a de um lugar suspenso no tempo, que não sabe bem como será o futuro, rico de uma humanidade muito viva e, ao mesmo tempo, cansada e desconfiada. No fundo, se é um lugar que tem um modo particular de olhar o mundo, Cuba é também um espelho de nós mesmos, um lugar onde se vê rapidamente como é verdade o que Dom Giussani dizia aos seus alunos: “As forças que mudam a história são as mesmas que mudam o coração do homem”. Não há alternativa.
Talvez seja por isso que Cuba tenha sido visitada pelos últimos Pontífices: João Paulo II, em 1998, Bento XVI, em 2012 e Francisco, há menos de dois anos. Pela história e localização, é um lugar onde acontecem encontros que podem alterar o eixo da geopolítica global (como aconteceu com Barack Obama e Raúl Castro em março de 2016, início da quebra do gelo com os Estados Unidos), ou do relacionamento entre as Igrejas (foi no aeroporto de Havana que o Papa Francisco, um mês antes, abraçou Kirill, patriarca de Moscou). Mas por baixo de tudo – ou talvez no início – está exatamente aquele misto de desejo e cansaço, de inquietude e desilusão, que todos carregamos, e a respeito dos quais os Papas sempre falam. Como Francisco, no esplêndido discurso de improviso que fez aos jovens daqui: “Sonhem, desejem, busquem horizontes, abram-se para coisas grandes”. Mas o que permite abrir-se? O que pode despertar toda essa humanidade, escancarar o horizonte? E que contribuição a Igreja pode dar?
Impressiona ver o surgimento dessas perguntas enquanto estamos aqui para a apresentação de Su vida, a biografia de Dom Luigi Giussani, fundador de CL, acontecida em 25 de maio. No dia anterior, à mesa de um restaurante de Havana, estava o autor, Alberto Savorana, com os dois relatores que discursariam com ele. Um é Gustavo Andújar, 70 anos. Dirige Espacio Laical, revista de cultura e sociedade, e o Centro Cultural Félix Varela, onde acontecerá o encontro. O outro, Roberto Manzano, quase da mesma idade, é um poeta, um dos maiores de Cuba: cristão não praticante (“meu pai era comunista, minha mãe não: mas ele também era um ‘comunista do Sagrado coração de Jesus’, nunca tirou essa imagem da casa”).
Ficou muito tocado com Giussani, com a maneira com a qual enfrenta as “perguntas últimas” e olha para a beleza (“é a forma mais rápida para chegar à verdade: o homem, através da beleza, enfrenta a sua angústia existencial, ela é terapêutica”), pelo fato de que “lendo sobre a sua vida tem-se a sensação de estar diante de um homem sempre em caminho; sedimenta, acumula, avança em determinada direção, mas é sempre um crescimento, um movimento no qual a experiência é decisiva”.
“NÃO TENHO SONHOS”. Em uma hora e meia de diálogo, partindo de Dom Giussani, faz-se uma viagem de Dante a Péguy, do Big Bang à Sagrada Família, à liberdade, à Trindade, ao Mistério. Num determinado momento, aparece exatamente aquela palavra: desejo. “Há um filme que o senhor deveria assistir: Suite Habana, de Fernando Perez”, diz Andújar. “Mostra o dia de uma dúzia de cubanos, pessoas comuns. Depois do final, há uma fila: os protagonistas dizem quais são seus sonhos”. E quais são? “Desejos pequenos: reformar a casa da mãe, um carro... Coisas do gênero. E uma delas diz: ‘Não tenho sonhos’. Isso sempre me chocou. É sintomático que as pessoas não pensem mais em coisas grandes, que sempre renunciem aos ideais. Tudo é reduzido à gratificação imediata, ao ‘gosto, não gosto’, o critério torna-se paupérrimo”. E este não é apenas um problema de Cuba. “É importante que Francisco tenha falado sobre isso: Paulo VI dizia que o mundo não precisa de mestres, mas de testemunhas”. Frases que voltam à mente na viagem de Havana a Matanzas. Cem quilômetros de estrada com quatro pistas, entre palmeiras, poços de petróleo e carros antigos nos ultrapassando pela direita. Parece estarmos em um filme dos Anos Cinquenta. Às vezes se vê o mar, à esquerda. Placas indicam as praias dos habaneros: Santa Cruz, El Freile, Jibacoa...Varadero é a Cuba dos resorts turísticos fica 50 km adiante. De vez em quando alguém aparece no asfalto com um cacho de bananas ou um cesto de frutas para vender.
Matanzas tem 140 mil habitantes. É um labirinto de ruas esburacadas, casas térreas, lugares imprevistos de beleza. Mas a impressão que se tem é a de que o coração está ali, naquelas seis pessoas sentadas à mesa daquela pizzaria que tem uma bandeira italiana na fachada. É um pedaço da pequena comunidade de CL: o resto virá depois, para o encontro com Savorana, para enchê-lo de perguntas sobre Giussani, o livro, o início. Alejandro, o responsável, é daqui. Trabalha na Diocese e é professor. Deivis e Yiadiana, ambos técnicos em enfermagem, foram seus alunos e contam que estão aqui porque “ele era um professor diferente: não nos perguntava apenas sobre a matéria, mas sobre nós”.
E, certa vez, viram uma imagem do Papa em seu computador: “Você é católico?”. Começou, assim, uma amizade. Que Idelvis, a esposa de Alejandro, viu nascer do outro lado: “Ele voltava para casa e me dizia: sabe, há dois estudantes que... Não sei explicar, mas têm algo”. O que é esse algo e como pode crescer e amadurecer, estão descobrindo aos poucos, seguindo o Papa e o Movimento. Enquanto para Deivis quis dizer retomar o caminho de fé deixado na adolescência, para Yiadiana foi começar um caminho a partir do Batismo e do desejo de se casar na igreja. “Noutro dia, um aluno me disse: ‘A Igreja é uma ditadura’. Dois anos atrás teria respondido irritado, ou teria tentado convencê-lo dialeticamente. Agora, me surpreendi dizendo: olha, quero entender por que você diz isso, porque você é um bem para mim. Fazendo essa observação, você me obriga a ir até o fundo daquilo que eu vivo. Ele me olhou nervoso, mas iniciou-se um diálogo”, conta Alejandro.
Aí está, diálogo. Não é óbvio por estas partes. Nunca o foi, em tempos de muros e cortinas: Leste e Oeste, socialismo e mercado, partido e Igreja. No entanto, é a palavra que aparece mais vezes nestes dias, a ponto de nos fazer perceber o quanto é preciosa. Voltamos para Havana, para a apresentação. Será no Centro Félix Varela, o antigo seminário de São Carlos e Santo Ambrósio, no coração da Havana Velha, que leva o nome de um sacerdote e filósofo reconhecido por todos como um pai da Pátria. “Aqui, começou-se a pensar em Cuba”, explica Andújar. A Catedral é muito próxima, logo após a esquina. Atrás da fachada, um claustro e três andares de salas. Internamente há um centro de estudos sobre a Igreja que se estendeu às Faculdades de Humanas, até tornar-se um curso extracurricular: o Governo olha com atenção e com um certo interesse. E, enquanto isso, mais de cem estudantes vêm conhecer a Doutrina Social e Santo Tomás, uma história e uma filosofia diferentes daquelas que se estuda nas escolas oficiais.
FORA DO RECINTO. Outras coisas que acontecem aqui dentro também surpreendem. Há quatro anos, por inciativa do Cardeal Jaime Ortega, nasceu um lugar onde praticamente todos os meses há encontros, debates, mesas redondas. Com pessoas de qualquer área: escritores e musicistas, intelectuais “orgânicos” e dissidentes, católicos e não católicos. “Vêm porque aqui podem encontrar um espaço onde o confronto é real, realmente se discute”, com a única preocupação de entender o outro, observa Andújar. Diálogo, justamente, onde não se esperaria.
A apresentação de Su vida também retoma constantemente este fio. Com Manzano, que aprofunda muitos dos temas que emergiram à mesa: as perguntas últimas, o desejo, a beleza como caminho ao verdadeiro, o estupor pelo modo como Giussani lê o poeta Leopardi, a sua pedagogia. E Alberto Savorana, que fala sobre o “belo dia” em que o fundador de CL descobriu que a resposta para essas perguntas era Cristo: “Não uma doutrina, mas uma pessoa”. Deste fato nasceu “o desejo de comunicar a todos esta descoberta” e a “grande capacidade que tinha de dialogar com todos”. Ele também fica tocado com o fato de que esta apresentação aconteça aqui, neste lugar que nasceu para ser um espaço de diálogo, não de dialética. “É a mesma coisa que Dom Giusani viveu. Ter encontrado a resposta é a origem da sua paixão pelo homem”. No fundo, durante toda a vida “não fez outra coisa senão comunicar uma beleza que tem o poder de despertar todo o desejo do homem. Porque Cristo veio para o coração que deseja”. “Em Cuba há muito desejo de espiritualidade: as pessoas se deparam com uma vida cotidiana difícil, têm sede de outra coisa”, diz, no dia seguinte, Roberto Méndez. Ele é o diretor de Palabra Nuevaem>, a revista da Arquidiocese: 10 mil cópias mensais (“a diagramação é manual, imprimimos como é possível e todos os meses precisamos ir atrás de papel, tinta... A revista sai mais por milagre que por estrutura”), temos um público também de fora do “recinto” (“talvez sejamos mais lidos fora da Igreja do que dentro: encontro pessoas de todo tipo que não só dizem que a leem, mas comentam os artigos...”) e alguns colaboradores imprimem a marca de Varela: intelectuais, economistas e professores de todas as áreas. Por que colaboram? “Porque somos algo diferente da maioria das revistas oficiais. Não há a pressão de seguir uma linha ideológica. Há atenção à pessoa. E conteúdos que em outros lugares não seria possível encontrar. Não apenas sobre Igreja e religião, mas sociedade, arte, cultura...”. Um espaço livre, em suma, embora o confronto ainda seja intenso, e a ideologia ainda pese.
A última polêmica, forte, foi sobre o aborto, com ataques pesados à Igreja. “Poderia responder com um editorial duro, teria uma resposta também dura e estaria tudo encerrado”, diz Méndez: “Haveria algum efeito? Nenhum”. Qual a alternativa? “Aprendemos conforme caminhamos. Como aconteceu há pouco tempo com uma socióloga feminista, que escreveu sobre gênero. Eu lhe telefonei e marcamos um café. Começou um confronto”. Mas o que é o diálogo para vocês? “É o espaço de encontro com a outra pessoa. Como se dizia ontem, na apresentação, não é contrapor argumentos para se impor. É uma história que, aqui, tivemos que aprender, depois de anos de embates. Mas, assim, estamos conhecendo muitos não católicos que começam a apreciar algumas coisas da Igreja. É sempre uma descoberta”.
PROCESSO IRREVERSÍVEL. “Não adianta discutir sobre o diálogo, é importante fazê-lo”, diz Andújar: “Oferecendo espaços e recebendo pessoas que, aqui, podem se exprimir livremente. É o meio mais importante que temos para mudar este estado das coisas. O próprio fato de acontecer, mostra que é possível. E espero que suscite imitações: não temos problema de direitos autorais...”.
Há muito do Papa, do seu convite a uma Igreja em saída e a “um caminho que se aprende fazendo”. E enquanto isso, aos poucos, as coisas mudam. “Estamos no início de um processo, irreversível”, nos diz um amigo daqui. Outra palavra para a qual Francisco chama a atenção: a importância de “iniciar processos, não ocupar espaços”. Não é um acaso que depois da viagem do Papa, a televisão Cubana tenha começado a segui-lo com atenção. Isso significa inclusive ter transmitido a Missa de Natal, a Via Sacra... Coisas antes impossíveis, agora acontecem.
Assim como era impossível pensar, alguns anos atrás, em uma apresentação da biografia de Dom Giussani em Havana. Ou imaginar encontros como o que nos conta Adalberto, membro da pequena comunidade de CL daqui. Engenheiro nuclear, enviado à Rússia para estudar (“a energia nuclear devia ser o futuro de Cuba”), ouviu falar de Jesus pela primeira vez através de uma babuska, num trem para Voronez: “Sentou-se ao meu lado, num vagão vazio, e me perguntou: ‘Você conhece Cristo?’. Depois, acrescentou: ‘Olha que Ele é o único que pode lhe ajudar a viver, que pode iluminar o caminho’”. Assim, de modo direto. Isso ficou dentro dele, mesmo depois de anos de dificuldades e de busca. Até que, em frente a uma igreja, alguém lhe deu um exemplar de Huellas, a versão espanhola de Passos... Agora está aqui, junto com Silvia, Eduardo e Rafael, falando sobre a caritativa: “Vamos visitar os idosos que, por muitos motivos, não podem mais ir à igreja”. E quando perguntamos como isso o ajuda, responde, com simplicidade: “Ajuda a dar-me conta de que Jesus está entre nós. Não sei dizer de outro modo”.
Parece pouco, mas é tudo. “É preciso ter paciência e estar atentos a cada sinal, usar como uma lente de aumento para ver o que existe, ao invés de olhar para o que falta”, diz Alejandro: “Mas é um ótimo exercício. Porque aquilo que falta, normalmente, é uma ideia sua: o que se vê, por pequeno que seja, existe”. E opera, diria Giussani.
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