Por que em um país destruído pela guerra há jovens que escolhem seguir Cristo ao invés de fugir ou se alistar? Nestes anos, contamos a aventura de padre Frederico Trinchero e do Mosteiro que se tornou um campo de refugiados. Agora, o conflito continua, mas algo floresceu “na periferia de uma periferia do mundo”
A guerra na República Centro-Africana parecia terminada. Mas não terminou. A situação relativamente tranquila da capital, Bangui, pode enganar. Nestes meses, no interior do País, grupos de rebeldes – cuja origem e objetivos nem sempre são identificáveis – deixaram centenas de mortos, casas queimadas e milhares de refugiados em diversas cidades e vilarejos.
O risco é o de habituar-se à guerra. Quase como se fosse inevitável, quase como se fosse a única maneira possível de se unir... Para quem está longe, ao contrário, o risco é o de se esquecer da guerra. Levante a mão quem se lembra de algum conflito nessa região. Ou quem saberia dizer com precisão onde este país está localizado. Não é de modo algum exagerado o título do mais novo livro de Jean-Pierre Tuquoi, ex-jornalista do Le Monde, sobre a tumultuada história desta ex-colônia francesa: Oubangui-Chari, le pays qui n’existait pas (“Oubangui-Chari, o país que não existia”). É um Estado duas vezes maior que a Itália, do qual a mídia fala pouquíssimo.
Mas, em 2013, depois do golpe de Estado, o mundo percebeu que existíamos. Não se tratou, de fato, de um golpe como os anteriores: parecia quase a invasão de um exército estrangeiro. Os rebeldes que chegaram ao poder – uma coalisão muito heterogênea, mas em sua maioria muçulmana, denominada Seleka – eram, sobretudo, mercenários sudaneses e chadianos. O novo presidente, Michel Djotodia, não consegue manter as rédeas do Estado. Saques, violência e o exército nacional em crise. Uma parte da população, enfurecida, se organiza em violentos grupos de autodefesa (os anti-Balaka). São, em sua maioria, cristãos, mas os Bispos logo se dissociam e condenam sua violência.
No dia 5 de dezembro daquele ano, a capital foi tomada de assalto. Em poucos dias o país parecia envenenado. Durante meses, vê-se apenas guerra e pessoas fugindo. A França intervém para evitar que o embate se torne um genocídio entre cristãos e muçulmanos. Djotodia é obrigado a renunciar e, para ocupar o cargo, a Assembleia Nacional elege uma mulher: Catherine Samba-Panza. Mas a guerra continua – com fases mais e menos cruentas –, apesar do envio, pela ONU, de uma Missão com 12 mil soldados.
Em novembro de 2015, desafiando os prognósticos mais pessimistas, Papa Francisco decide vir abrir o Jubileu da Misericórdia aqui, onde acontecem disparos até algumas horas antes de sua chegada, tornando a viagem incerta até o último minuto. A visita, porém – e este é o primeiro milagre –, se desenvolve perfeitamente. Bangui é proclamada a “capital espiritual do mundo”. As portas da Catedral abrem-se e parece um novo início. Segundo milagre: cessam os disparos. Em março de 2016, é eleito um novo presidente: Faustin Touadéra. As eleições acontecem de forma tranquila e ninguém contesta o resultado. Os refugiados lentamente voltam para casa. Parecem existir quase todas as condições para uma mudança. Mas o país se arrasta e os rebeldes voltam a cometer atos violentos. A guerra é cruel. Para um país pobre, a guerra é uma sentença de morte.
Hoje, dois dados exprimem a situação dramática em que nos encontramos: 80% do território ainda está ocupado ou controlado pelos grupos rebeldes: ditam leis no lugar do Estado, que tem dificuldade – quase renuncia – de impor a sua presença. A eleição do novo Presidente, a presença maciça da ONU e a ajuda abundante por parte da comunidade internacional pareciam uma ocasião para o desenvolvimento. Mas, pelo menos por enquanto, os resultados não corresponderam às expectativas.
Segundo dado: o último relatório da ONU coloca a República Centro-Africana em último lugar (188º entre 188) no Índice de Desenvolvimento Humano. Somos o país mais pobre do mundo. No entanto, o subsolo transborda ouro, petróleo e diamante. A madeira está entre as mais procuradas da África Central. Também a agricultura, graças ao clima e à abundância de água, poderia ser praticada de modo extensivo e lucrativo. Sem esquecer dos jovens, a maior riqueza: 50% da população tem menos de 18 anos. Porém, em quase todos os lugares falta infraestrutura básica e, nas ruas, se vê uma multidão de jovens desempregados, ou tentando um pequeno comércio, ou jogando mais uma partida de futebol... à espera de uma nova República Centro-Africana, que parece cada vez mais distante.
Diante de um quadro tão desolador, não faltam razões para se desencorajar e se render. Mas é inútil continuar acusando um inimigo que nunca é bem definido, ou esperar que alguém – magicamente – mude a situação. É o momento de começar a fazer algo para que a situação mude, e é preciso que o povo o faça, em uma grande e muito esperada iniciativa de amor próprio.
“Aquele dia 5 de dezembro...”. Durante estes anos, a história da nossa comunidade carmelita – na periferia de uma periferia do mundo, a pouquíssimos quilômetros dos locais dos combates – confundiu-se com a história deste País e da capital. Aquele dia 5 de dezembro, que marcou o início da guerra, foi, para nós, o início de uma inesquecível aventura humana e cristã, tão intensa quanto inesperada: em poucos dias, dez mil refugiados se abrigaram dentro e em volta do nosso convento. A igreja se transformou em dormitório, o refeitório em hospital, a sala do capítulo em maternidade, meu quarto em depósito de remédios. Pensávamos que seriam apenas por alguns dias, no entanto, foram três anos que nos deram a sorte de viver o Evangelho sem sair de casa e sem muitos raciocínios... Não havia tempo. Nenhum herói entre nós, apenas uma pequena comunidade de frades que não quis se furtar.
Éramos doze e, depois, ano após ano, quase sem percebermos, o grupo aumentou. Nossa comunidade, hoje, possui vinte membros. Eu sou o único italiano. Mas confesso que quase não percebo isso por causa da unidade da nossa vida, que faz de nós uma família. Em setembro, sete jovens começaram o noviciado em nosso Mosteiro de Bouar, no norte do País: entre eles, está Aristide, um incansável enfermeiro do nosso campo de refugiados, dia e noite a serviço dos doentes, feridos e, sobretudo, parturientes. Por sorte os refugiados já se foram, senão precisaríamos afixar um cartaz nos portões do Mosteiro com os dizeres: ‘Sentimos muito, mas a maternidade está fechada...’”.
Parece quase inacreditável que tão perto dos bairros onde a violência da guerra provocou morte e destruição, aqui no Carmelo a oração não tenha sido interrompida, a fraternidade tenha crescido e a vida tenha florescido. Nasceram crianças no refeitório, mas também nasceram novos frades no Mosteiro.
Grande honra. Por que em um país destruído pela guerra ainda existem jovens que escolhem seguir Cristo ao invés de ir embora ou, pior ainda, alistar-se nas milícias dos rebeldes? Alguém poderia pensar que pode ser uma solução para fugir da miséria. Tal interpretação, além de ser errada, é também ofensiva para os africanos. Se fosse assim, deveríamos ser em um número muito maior... de acordo com a porcentagem dos jovens e o valor da renda per capta. E se, por acaso, alguém entrasse por motivo tão pouco nobre, não prosseguiria no caminho. A verdade é que toda vocação é um mistério que foge dos parâmetros, cálculos e previsões humanos. Por que não pensar que estes jovens experimentaram que só Jesus pode dar a paz verdadeira, a paz do coração? Que somente Ele é a riqueza pela qual vale a pena despender a vida? E que o desenvolvimento do País passa também por aqueles que decidem viver o Evangelho junto com outros irmãos?
Algumas semanas atrás, fomos ao cemitério perto de Saint Paul des Rapides, a igreja mais antiga da África Central. É seguramente um dos lugares mais sagrados do País. Aqui, em 1984, teve início a evangelização de Oubangui-Chari graças à coragem e à fé de alguns Missionários Espiritanos Franceses. Saíram de Brazzaville e subiram o rio Oubangui chegando a um lugar que, na época, era uma aldeia perto de uma estação colonial. Muitos deles morreram bastante jovens, alguns apenas poucos meses depois de chegar, vítimas de doenças tropicais. Seus corpos repousam neste cemitério, mas seus nomes foram apagados pelas camadas de cal colocadas nas cruzes de cimento sobre os túmulos.
Enquanto pensava nesses heróis de outros tempos, observava meus jovens confraternos. Os heróis debaixo da terra sequer ousariam imaginar que seu duro trabalho geraria uma messe tão grande. Os “não heróis” de hoje talvez não percebam ser fruto de uma semente que, por vezes com a mesma idade deles, foi morta para que a República Centro-Africana conhecesse o Evangelho. Certamente ainda são frutos imaturos. Provavelmente alguns se afastarão da árvore para amadurecer em outro lugar. Mas são frutos. Para mim, indigno sucessor daqueles heróis, foi dada a sorte e a grande honra de ver crescer, sem causar muitos danos – e crescendo um pouco também –, o que eles semearam.
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