Em recente vista ao Brasil, padre Julián Carrón, Presidente da Fraternidade de CL, realizou, em São Paulo, uma assembleia com universitários da América Latina. Brasileiros, mexicanos, venezuelanos, argentinos, chilenos, além de estudantes de outras nacionalidades, puderem compartilhar com padre Carrón suas experiências em circunstâncias bastante adversas, e ali ficou evidente como nenhuma circunstância pode impedir o florescimento da pessoa. A seguir alguns trechos dos depoimentos dos jovens e das respostas de Carrón
Paula, Rio de Janeiro: Descobrir o Movimento, pra mim, depois de ter crescido na Igreja Católica, foi como encontrar um tesouro; descobrir um modo de viver que abraça a minha humanidade, que não ignora a realidade à minha volta. Agora eu cheguei à conclusão de que aderir a esse caminho não é só uma escolha, mas é um ato de coragem que é renovado diariamente. Eu sinto que é como desafiar o mundo e ao mesmo tempo desafiar a mim mesma. Porque se eu vivo do modo comum, é como viver anestesiada, é passar pela vida sem perceber o que me acontece. E eu sinto que o mundo recompensa quem vive dessa forma. Então é preciso uma coragem muito grande pra tomar a decisão de aderir a esse caminho e continuar nele. Ao mesmo tempo, pra mim, eu sinto que não é mais opcional, faz parte de mim. Porque a partir do momento que eu descubro que existe algo maior, que existem expectativas mais altas para minha vida, para o meu trabalho, para os meus relacionamentos, para as minhas amizades, é impossível não desejar isso. (...) Sempre que esse ímpeto decai, chega um momento em que eu não consigo mais me reconhecer. E quando eu encontro qualquer situação ou qualquer pessoa que desperta em mim uma vontade de me mover gratuitamente, como por exemplo, observando a maneira como os meus amigos de Escola de Comunidade agem, penso: eu quero ser um pouco mais assim. Eu faço o caminho de volta e esse ímpeto volta com tudo.
Julián Carrón: Cristo, o único na história que disse isso, afirmou que quem o segue viverá 100 vezes mais, e a partir do momento que alguém descobre que existe algo melhor, é impossível não desejar isso. Por esse motivo, você usa a expressão “encontrei um tesouro”. Tanto é assim que Jesus dá o exemplo da parábola do tesouro escondido, o reino de Deus. Descobrir isso é como descobrir um tesouro escondido em um campo, e a pessoa, quando descobre o tesouro, vende tudo o que tem para comprar o campo, porque é impossível não desejar o tesouro que descobriu. Então, notem bem, ela usa as mesmas expressões de Jesus, mas sem mencionar Jesus, simplesmente é natural o que ela diz, como o que diz Jesus, porque se a pessoa encontra um tesouro, algo inesperado, imprevisto, não pode parar de desejá-lo. Como dizia Dom Giussani, posso entender que para alguém não interesse a vida eterna, porque está muito distante, mas precisa ser tolo para não desejar viver aqui cem vezes mais. Quando a pessoa descobre isso, é um desafio, sente-se desafiada.
Tantas vezes nos desanimamos porque decaímos e é por isso que Jesus nos disse: “Paula, sem mim nada podeis fazer”. Não é um problema que você esteja fazendo algo errado, mas é que você precisa constantemente voltar a encontrar algo à frente, pessoas que voltem a despertar o ímpeto inicial. Por isso, a verdadeira decisão não é dizer: “Eu quero responder a esse impulso”. Não, a verdadeira decisão é que, tomando consciência de que decaio, e de que não consigo manter o ímpeto constantemente, quero pertencer a um lugar no qual constantemente o meu ímpeto se desperta. Estamos juntos, seguimos Jesus porque sabemos perfeitamente bem sobre esse decair, não somos um bando de ingênuos. É mais realista aquele que não apenas percebe a coisa maravilhosa que encontrou, mas que, ao percorrer a estrada, percebe que decai. Então, o que pode nos fazer recomeçar? Isto é o que Jesus veio fazer, e é como se dissesse: “Você não pode fazer isso, porque você não tem a energia e a capacidade em você para fazê-lo, então não fique bravo consigo mesmo porque você não consegue”. Esta é uma libertação: não fique zangada com seu namorado porque ele é incapaz de fazê-lo, porque nem sua mãe e seu pai são capazes de realizar, não brigue com eles. Muitas pessoas ficam zangadas com os outros porque eles não nos dão o ímpeto do começo e nós passamos a vida irritados com os outros porque eles não nos respondem. E é por isso que descobrir a resposta a esta questão é decisivo, porque quem compreendeu a resposta realmente encontrou não apenas o tesouro, mas a possibilidade de manter o tesouro.
Ernesto, Caracas: A crise que meu país vive é dramática: não há remédios nas farmácias, todo ano morrem dezenas de milhares de recém-nascidos por desnutrição, todos os dias é mais difícil pensar em comer carne ou proteínas e no país há tantas mortes quanto em uma guerra, a situação é terrível. O que prevalece é a tristeza, como um desespero e um desânimo diante de tudo que acontece. Carrón sempre não chama a atenção a olhar a necessidade de Cristo vir nos encontrar e olhar para nós. Por essa razão, fico surpreso que todo esse drama não apaga da minha memória o que padre Julian de la Morena nos disse há três anos: “A esperança para a Venezuela é que exista, aqui e agora, uma comunidade cristã viva e feliz”. Isso me faz pensar sobre o impacto de uma comunidade cristã e comecei o ano com esta pergunta. Dois fatos em particular me ajudaram a respondê-la. O primeiro é olhar para mim mesmo, pois vejo que tudo desmorona, vejo que a cada dia as coisas são mais complicadas e que o futuro não é animador, mas eu estou bem, e diante de toda a crise descubro em mim uma paz que me permite ir à faculdade, estar com minha família e cantar no coro com alegria. (…) A segunda experiência é que há algumas semanas aconteceram os Exercícios espirituais dos Universitários na Venezuela. Normalmente participamos em torno de 25 pessoas e desta vez éramos 50, das quais metade eram pessoas que nunca haviam participado de nenhum gesto do Movimento, e isso me provocou muito. Por que se animaram a ir a um encontro religioso? O que nós temos que as atraiu? No final da introdução perguntei a uma garota o que ela tinha achado. Esta amiga olhou para mim comovida e a única coisa que disse foi: “Quero estar sempre com vocês”. Isso me comoveu muito, lembrei que houve um momento na minha vida em que eu também disse “quero estar sempre com vocês” e ali eu vi acontecendo de novo diante dos meus olhos. A partir disso, ela começou a fazer Escola de Comunidade com grande fidelidade. Como se isso não bastasse, quase todos os novos ficaram muito impressionados e felizes com o que viram nos Exercícios. Vendo isso entendi mais uma vez que minha alegria não é ilógica, e que realmente uma comunidade cristã viva e feliz é esperança em uma situação como essa, porque somente tal realidade pode nos fazer entender que a crise não nos define e que existe uma maneira diferente de enfrentar os problemas, algo que vai além de se afogar neles ou ser tolo.
Carrón: Qual é a urgência da vida todos os dias? Ernesto já disse duas palavras antes: ser feliz e alegre, ou seja, aos que se sentem chamados, independentemente de onde moram, de qual família tenham, se têm muito ou pouco, o que todos nós fundamentalmente queremos é ser felizes. Então, se alguém não está distraído, como você gostaria que o dia fosse? Que fosse tão útil a ponto de responder à necessidade de sermos felizes. Mas como isso acontece durante o dia, hora a hora? Você tem que caminhar em direção a isso, em direção a esse desejo de ser feliz. Através de quais coisas? Você não pode dizer: “Eu vou para o Caribe ficar na praia, porque ali é uma maravilha”. Você não pode fazer isso, e mesmo se pudesse, isso não iria responder à sua necessidade. Então, através de quais coisas você é chamado, o que você tem que atravessar para alcançar isso? (…) Não podemos separar o chamado que temos para a felicidade das circunstâncias da vida, porque se você não puder responder a esse chamado à felicidade através das circunstâncias da vida, a felicidade se afasta cada vez mais. Isto é o que deve ser entendido: a vida é uma vocação, a vida é chamada, através de tudo que acontece, a esta necessidade, e cada um de nós não pode evitar viver o seu estudo, o seu cotidiano, quando a namorada o deixa ou quando ela diz sim. Tudo isso é uma ocasião para verificar se a minha necessidade de ser feliz é satisfeita nas circunstâncias. Porque não existe pessoa que não deseje ser feliz, não seria pessoa. O ponto é que depois de um momento da vida em que se diz “quanto eu quero ser feliz”, se a pessoa não tem um modo de viver as circunstâncias como vocação e na qual tudo chama para outra coisa, o desejo de felicidade e aquilo que a cumpre, achamos que é uma ilusão, e é por isso que vemos tantas pessoas que com o tempo se tornam céticas. O desafio que cada um de nós tem, desde o começo da vida, é verificar se esse desejo é uma ilusão, ou se existe algo que me ajuda a vivê-lo na vida cotidiana através das circunstâncias. Como cada um de nós vive isso?
Francisco, Cidade do México: Aconteceram algumas coisas na minha vida em que vi o meu limite, e surgiu a pergunta de como olhar para isso, então a questão de como recuperar o início é algo que me atormenta. Em primeiro lugar, há algum tempo comecei a ter muito contato com uma amiga e a certo momento começamos a namorar. Então, em princípio, deveria ser algo bonito que estava emergindo; porém, assim que começamos, vieram discussões entre nós, com mal entendidos e o relacionamento se tornou muito difícil. Num momento destas discussões ela me pergunta: “Nós somos verdadeiramente amigos?”. Este foi um golpe, e em outra ocasião ela me fez novamente a mesma pergunta. Eu percebi que não queria que minha amizade fosse de certo modo para ela. Algum tempo depois, nossa comunidade do CLU passou por uma situação muito difícil: uma das meninas morreu. Para todos nós foi devastador. (...) Então me pergunto: “Como é possível recomeçar outra vez?”. No caso da menina que morreu, parece que todo o lamento ou perguntar-nos o que poderíamos ter feito não faz sentido, afinal, não está mais aqui, não podemos remediar o que aconteceu com ela. E por mais que eu tente ser um amigo melhor, tudo sempre dá errado, e meu coração se sente triste e velho. Realmente não tenho uma alegria que me leve a olhar para os outros diferente, então quando você falou sobre a vocação e que a vida é um chamado, eu me disse “é isso”. Eu sempre acreditei que sou eu que faço a realidade, enquanto é Alguém que está sempre me chamando, mas reconhecer isso eu considero uma dificuldade minha. Paula falava da coragem que é necessária para dizer sim a Cristo, e acredito que a humildade também é necessária, porque eu me reconheço orgulhoso, como dizendo, “eu gostaria que as coisas fossem diferentes”. Então, pergunto: Como se vive essa consciência de perceber que você não é aquele que gerencia ou controla a realidade com as mãos? Pois, então, esse orgulho e essa arrogância que estão dentro de mim me dizem: bem, então que papel eu tenho? Ou o que fazer com os planos que tenho e que acho que vão me fazer feliz?
Carrón: Diante das coisas que você disse, qual é a primeira reação que nos vem quando queremos começar de novo? No início, quando acontece, você não se deu o desejo de ser amigo, encontrou em si, como quando a pessoa se apaixona, é um presente, um tesouro. Não percebendo que isso é algo que acontece como um presente, pensa que é suficiente tentar de novo, que é um problema seu, que é um esforço seu, e percebe que não é suficiente, que o esforço não constrói tudo, não me dá um minuto da plenitude que me aconteceu no início. No percurso da vida começamos a entender que existem maneiras de resolver os problemas que temos que não respondem à nossa necessidade. Porém, que você tenha entendido isso na sua idade é uma descoberta revolucionária, porque se você percebe que o problema não é o seu esforço, então você é livre, então você não pode ficar com raiva de você mesmo, nem do outro. Por que Jesus é um verdadeiro amigo que nos acompanha? Porque Jesus diz a você: “Francisco, você está absolutamente certo, isso não pode ser construído por você, então relaxe”. Relaxe, você não precisa se esforçar para manter o mundo, como se fosse um esforço titânico seu, porque sem Cristo você não pode fazer nada. É revolucionário porque isso lhe dá uma explicação do que você está vivendo que o ajuda a entender porque não funciona, por que você é incapaz de renascer de novo. É por isso que a pergunta que você faz é interessante, é como se de frente a essas questões começássemos a entender algumas coisas do Evangelho. Nicodemos perguntou a Jesus: “Mas é possível para um homem velho [como você disse antes, meu coração é triste e velho] nascer de novo?” e Jesus responde “para os homens é impossível, qualquer esforço é inútil, é impossível, mas Deus pode fazer tudo”.
Então, como viver quando eu não tenho o controle da realidade? Chega um momento no qual entendemos o que você disse: que falta uma humildade. E o que é a humildade? Deixar entrar um outro, deixar entrar outro que pode fazer isto, porque nós, diante dessa impossibilidade, podemos chegar a duas conclusões: uma, como nós não podemos, ninguém pode. Em vez disso, Jesus diz: “Não. Para você é impossível, mas há Alguém maior que você para quem é possível”. Humildade é esse reconhecimento de que eu não sou a medida do universo.
Nós encontramos algo que nos desafiou de tal forma que estamos aqui, e temos a certeza de que aquele que despertou a esperança em nós a levará a termo se tivermos a humildade de continuar, de continuar a pertencer a um lugar onde constantemente a vida renasce, porque para nós é impossível, mas não é para Deus.
Camilo, Santiago: Estudo para ser professor de matemática. No ano passado eu fiz minha prática profissional em um instituto de ensino superior dando aulas. Ali conheci muitas pessoas com quem surgiu uma grande amizade, especialmente com um dos alunos que desde a primeira vez que conversamos me contou toda a sua história de ladrão, e que também tinha um problema com drogas. Casos como estes foram se repetindo e depois conheci quatro pessoas me contando suas histórias dolorosas muito semelhantes às deste amigo. Naquela semana eu fiquei muito marcado pelos encontros que tive e fiquei me perguntando como realmente acompanhar essas pessoas, pois elas obviamente estavam procurando por algo. Um amigo me disse por que não os convidava a começar uma Escola de Comunidade, e me parecia loucura, mas levei a sério essa proposta. Meu primeiro amigo aceitou e após alguns encontros falando sobre o senso religioso chegou o verão no Chile, e o convidei para ir às férias dos universitários comigo. Naqueles dias vi um milagre, pois sua disponibilidade foi impressionante para os gestos que propusemos e acima de tudo para com o que encontrou naqueles dias. Um exemplo disto é que nas férias vimos a imagem de Zaqueu e ele se identificou totalmente com ela devido a sua história. Estava preocupado, pois me dizia que aquelas pessoas não sabiam quem ele era realmente, e quando descobrissem iriam parar de olhá-lo com tanto carinho. Então perguntei se quando ele havia me contado tudo o que havia feito eu tinha mudado a forma de tratá-lo e olhá-lo, e ele respondeu que não. Então eu lhe disse: “Olhe para este fato que você encontrou e se você quiser dizer quem é para todos, faça”. Eu sabia que nada do que ele estava imaginando iria acontecer; e na assembleia final ele contou brevemente por que tinha sido julgado e foi para a cadeia, e ele também contou como estava feliz por ter me encontrado, e encontrar essa amizade que não olha para a história que se tem, mas que olha para a pessoa.
Carrón: Aonde se encontra um olhar assim, no qual não se olha para a história que a pessoa tem, mas se olha a pessoa? Este é o tesouro que entrou no mundo, porque antes de Jesus não é documentado na história tal olhar, em que é possível olhar para você não pelo que você foi capaz de fazer, pelos erros ou pecados que você cometeu, mas pela sua pessoa. Por isso o exemplo de Zaqueu vai ficar na história de todos nós, diante de todos os pecados que fazemos, todos os limites que temos, todas as coisas estúpidas que fazemos. Você percebe que havia um ladrão e alguém entrou em sua casa sem lhe dizer nada apenas pelo desejo de afirmar a sua pessoa, pelo desejo de amá-lo como ele era? Ou a mulher samaritana que tinha 5 maridos e a mesma coisa aconteceu com ela? E a Mateus, que era outro como Zaqueu, e Ele o fez seu discípulo? Este é o motivo pelo qual nós estamos juntos, menos do que isso não corresponderia à nossa situação humana, como a de seu amigo. Encontrar um lugar no qual eu possa ser abraçado, também quando existem tantos erros (existe alguém aqui que não cometeu erros?), que exista alguém que nos ame assim, é a possibilidade de começar de novo.
É por isso que não temos que nos preocupar que com o nosso esforço não conseguimos, Francisco, porque há alguém que nos perdoa a todos, e isso quando o vemos em uma pessoa é como se tivéssemos encontrado a chave para quando vermos isso acontecendo em nós. Às vezes nos dizemos “este erro é grande demais. Ninguém vai me querer”, como dizia o rapaz. Mas quando perguntou: “Eu mudei algo quando me contou?”, percebeu que existe alguém que o havia perdoado. Que a nossa comunidade cristã, que o nosso estar juntos, seja de tal maneira que a cada vez que nos encontrarmos, olhemos uns para os outros assim. E aquele que cometeu um erro possa ter a certeza de que, não importa o que aconteceu, nós o abraçaremos como no dia anterior, porque este é o único lugar humano. Em todos os outros lugares do mundo você tem que atender a certos requisitos para poder entrar, ou a gravata ou a jaqueta ou os sapatos. Aqui não há requisitos para entrar! É preciso apenas deixar-se abraçar.
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