Uma iniciativa em Fortaleza para visitar um abrigo de idosos. Uma provocação contínua a sair das próprias medidas, que levou a convidar estudantes universitários a se envolverem também. Ocasião de doar um pouco de si, e receber muito
O Lar Três Irmãs é uma instituição que há quatro anos atua em Fortaleza. Sua missão é resgatar idosos em situação de rua ou que estejam abandonados. O nosso caminho de encontro com este Lar começou a partir da fala de um amigo sobre a história do sr. Vicente. Como nosso grupo buscava um local para fazer caritativa, e assim viver a experiência que nos ensinou Dom Giussani, desde o início do Movimento – “A lei última do ser e da vida: a caridade. A lei suprema do nosso ser é compartilhar o ser com os outros, é pôr em comunhão a si mesmo” –, decidimos ir lá conhecer.
Desde a primeira visita essa amizade cresce e é uma contínua provocação. Tem algo lá que é mais, que vai além das nossas medidas, e que nos ajuda. Dona Vanda Maria Almeida é a presidente do Lar Três Irmãs. Ela nos conta como nasceu esta obra: “Dei início a esse trabalho por causa do meu pai que eu não via há 30 anos. Eu tive dois sonhos consecutivos com ele e, então, comentei com minha mãe e pedi a meu irmão para me levar até ele. Eu o encontrei em situação de abandono, de mendigo”. Seu pai estava com sequelas de um AVC e dona Vanda se fortaleceu na luta para ajudá-lo, seja enfrentando a resistência dos irmãos, que não queriam perdoá-lo, seja buscando seus direitos sociais. Ela continua: “Foi o amor pelo meu pai que fez com que eu tomasse essa decisão de ter um Lar para idosos que, de alguma forma, vêm de uma situação difícil. Então, surgiu do amor em 2014. De lá para cá, a gente vem tentando se adequar cada vez mais. Com todos os idosos que vêm para cá, a gente cria um amor inexplicável”.
Uma vez aberto como instituição, Dona Vanda iniciou uma luta constante com os órgãos públicos, pois não os ajudam, mas cobram muito: “É muita burocracia para colocar de pé uma casa como essa. Quando chegam os idosos aqui dentro têm mil e uma autoridades para fiscalizar”.
Encontros e histórias. Thaís é uma das filhas da Dona Vanda que trabalha no abrigo. Ela antes trabalhava com crianças. “Vim mais pela questão de ajudar a família, e de cara me identifiquei com o trabalho. Quando eu tive minha primeira experiência de banhar um idoso, não vi muita diferença do cuidar de uma criança. Eu vi que o trabalho é cansativo, árduo, mas é muito prazeroso, muito prazeroso mesmo. Foi isso que me motivou”. Como consegue estar o tempo todo feliz mesmo após um dia intenso de trabalho no abrigo? “Desde o começo, minha mãe sempre dizia que aqui é a casa deles. A gente tem uma vida lá fora e por mais que a gente passe muito tempo aqui com eles, a gente termina o dia, encerra o expediente e vai para casa, vai a uma lanchonete, vai ao Shopping, pode sair com o filho, marido, namorado. Mas a vida deles é entre essas paredes. Então a gente sempre trabalha com essa vertente. A gente tem que deixar nossos problemas lá fora”.
Mãe e filha têm sempre presente a história de três idosos que mais as chocaram, quando os acolheram. Thaís conta: “O primeiro é o sr. Vicente, que já está no Céu. Ele morava numa situação de abandono, num quartinho. Ele vivia no portão pedindo às pessoas da rua para quebrar aquele cadeado. O que o sustentava eram aquelas pessoas na rua que todo dia passavam e davam um prato de comida, um copo de água. Até que chegou um momento em que a população quebrou o cadeado e chamou a polícia e o trouxeram pra cá. Particularmente é uma cena que nunca esqueço a forma como ele chegou ao abrigo. Era meio dia e todos os idosos estavam almoçando e quando o sr. Vicente passou para tomar um banho não teve cheiro de comida que superasse o odor que ele estava. Lembro com muita clareza que naquele dia era fígado que os idosos iam almoçar e ele cortava o fígado em pedaços pequenininhos com muito gosto. Comeu toda comida com um prazer tão grande, todo banhadinho. É uma cena que acho que nunca vou tirar da minha cabeça. Era o mínimo, um banho, um prato de comida, e deu uma dignidade tão grande para ele, um prazer tão grande da gente ver. E o sr. Vicente passou mais de 2 anos com a gente e acredito que a gente conseguiu dar esse conforto para ele”.
A outra história é a da Maria do Castro, que Thaís conta com gosto: “A Maria é muito querida. Eu a tenho como minha mãe preta. Ela vivia pelo Pirambu, e como moradora de rua, conseguia ganhar ajuda de uns e de outros, até que ela foi recolhida pelo abrigo estadual. A Maria sempre teve histórias muito engraçadas de macumba, de espírito, e ela assustava muito as pessoas, principalmente quando as pessoas não conheciam a história dela. A assistente social nos ligou e a gente foi lá visitá-la. Ela estava deitada num beliche na parte de baixo, cantando as músicas do Maranhão. Enquanto minha mãe conversava com a assistente social eu pedi para conhecer a idosa e ela até então tinha sequer tomado um banho e fazia dois dias que ela estava nesse abrigo. Consegui fazê-la sentar e conversar com ela. Quando a assistente social entrou no quarto, a Maria disse ‘Pode arrumar minhas coisas que eu vou com ela’. Foi amor à primeira vista mesmo! Foi um amor de mãe e de filha. Tenho um carinho muito especial por ela”.
A terceira é a Socorro. Ela vivia num condomínio da prefeitura, num apartamento junto com o único filho. Mas ele a negligenciava e a vizinhança chamou a reportagem e arrombaram a porta. E Thaís relata: “Chamaram o SAMU e ela foi recolhida para um hospital. Mas infelizmente, depois da alta, ela voltou para casa. Graças a Deus, após várias denúncias, os órgãos públicos conseguiram recolhê-la. Mesmo depois que ela voltou do hospital, o filho continuou a maltratando. Conseguimos acolhê-la e a gente faz o comparativo do antes e do depois. Ela tinha as unhas tão grandes que estavam cortando as mãos, o cabelo imenso, cheia de feridas na cabeça, extremamente agressiva. Hoje a Socorro ainda é um pouco agressiva, mas ela tem acompanhamento médico e a gente consegue uma interação muito boa com ela. Ela é muito querida, muito amada”.
Envolvimento dos estudantes. Atualmente o abrigo acompanha 28 pessoas. “Nós não dizemos 28 idosos, mas 28 filhos. A gente realmente sente quando perde para o Céu ou porque algum familiar o desliga. O sentimento é de perda como se fosse um ente querido nosso”, afirma dona Vanda. Ela tem um olhar amplo, e quer que os cursos universitários de saúde estejam presentes lá. Num dia de caritativa, vi um rapaz da Engenharia Civil, que ia todos os sábados. Isso me corroeu por dentro, pois ministro disciplina de Imunologia aplicada para o curso de Farmácia da Universidade Federal do Ceará, e meus alunos nem sabiam da existência do abrigo. Dois dias depois decidi fazer uma provocação a eles. Falei para meus alunos se organizarem livremente, que realizassem um projeto, desde que com nosso aval e do abrigo, e que tivessem três idas pelo menos. Na verdade, eu acabei apostando na liberdade deles, em sua criatividade e responsabilidade. No final, foi tão surpreendente a experiência que acabou se tornando parte da disciplina.
Alguns alunos relataram o que significou para eles participar desta atividade. Emanuel Magalhães disse: “Hoje foi a última das três visitas que fizemos ao Lar Três Irmãs. No início, achei que seria ‘só mais um trabalho, só para ganhar a pontuação e passar na disciplina’. No entanto, ao fazer a primeira visita ao Lar, vi que a realidade desses idosos é muito diferente e muito mais delicada. Apesar de alguns ainda terem contato com a família, outros foram praticamente abandonados. O que mais me tocou foi um senhor que todos os dias se senta perto do portão esperando seu filho vir buscá-lo, mas não é essa a verdade. Eles carecem muito de uma pessoa para conversar com eles e dar afeto, pois os funcionários do Lar são poucos para a grande quantidade de idosos”. E acrescenta: “Esse trabalho despertou em mim um lado mais humano, porque muitas vezes no âmbito acadêmico estamos preocupados apenas em passar em disciplinas, publicar artigos, e acabamos esquecendo aspectos tão importantes, não só para o profissional da saúde, mas também para o ser humano: o carinho, a empatia e o afeto. Muitas vezes o que esses idosos precisam é apenas de uma pessoa que escute suas histórias, suas reclamações e troque um pouco de saber com eles (como é o caso do Sr. Luiz). Agradeço por esta oportunidade ímpar na minha vida, pois uma coisa como essa não se aprende dentro dos muros da academia. Se Deus me permitir, continuarei fazendo visitas ao Lar”.
Outro estudante, Thiago Miranda, contou assim sua experiência: “A visita ao Lar Três Irmãs foi sem dúvida uma das melhores experiências que já vivi dentro da universidade. Já vivenciava esse tipo de experiência por fazer parte de um projeto social onde fazemos visitas a lares de crianças e idosos, além de fazer doações, mas foi uma surpresa ter uma disciplina da grade do curso propondo uma atividade como essa, por saber que alguém estava preocupado não somente com nossa formação acadêmica, mas sim em nos tornar seres humanos melhores, para assim sermos também melhores profissionais. A visita me fez ver, mais uma vez, como simples gestos como um aperto de mão ou um abraço podem fazer toda diferença no dia de uma pessoa. Sei que para eles a atenção e o cuidado que demos faz muita diferença, pois muitos se sentem sozinhos ou abandonados. Para mim, cada palavra dita, cada história de vida contada tenho certeza que vale mais do que tudo que fiz naquele Lar durante aqueles dias. Saí de lá cheio de histórias para contar, cheio de amor, e cheio de gratidão por tudo que vivenciei”. Thiago também relata outro diferencial que viu: “Nesta visita as pessoas puderam me ver de um modo diferente, não apenas como um jovem disposto a ajudar. No Lar Três Irmãs eu era visto como um aluno de Farmácia que estava ali para contribuir com o bem-estar deles. Pude ver na prática o quão importante é a profissão que escolhi para exercer, as reponsabilidades que terei que assumir e a confiança que as pessoas irão depositar em mim, como na limpeza e arrumação do armário tirando os materiais vencidos e organizando pela validade. Vi que ali estavam depositando a confiança em nós para que pudéssemos ajeitar o que não estava em ordem”.
Para Emmanuel Vinicius: “São momentos e oportunidades como essas que nos fazem mais humanos, mais sensíveis e vivos frente às dificuldades enfrentadas pelo nosso semelhante. Toca-me muito o avanço dos anos. Quantas histórias concentradas naquela área de convivência! Caras que hoje escondem sorrisos, pouco tempo atrás eram os protagonistas de suas vidas. O Projeto de Imunologia Aplicada foi sem dúvida um dos acontecimentos mais importantes do semestre, deu vazão à energia juvenil que trazemos em nossos corações e floresceu em muitos corações a vontade e o prazer em ajudar e servir. Percebemos a carência enfrentada por boa parte da população assistida sobre informações do uso racional de medicamentos, dos perigos da automedicação, bem como de quais seriam os melhores passos a serem seguidos ao apresentarem algum sintoma referente as infecções. O trabalho foi também muito importante para união de todo grupo envolvido, na superação das dificuldades, no trabalho em equipe, no abrir mão da sua opinião e abraçar a do grupo”.
Outro aluno, João Antonio, deu este depoimento: “Particularmente, achei a proposta dessa atividade indispensável na minha vida acadêmica, por quão positivo e modificador isso pode ser na vida de um profissional, de buscar promover o bem e ajudar quem necessita. Mesmo não tendo um projeto voltado para o contato direto com os idosos, todos os momentos de aproximação que tive com alguns deles, todas as conversas que ocorreram, foram bastante enriquecedores para o meu crescimento pessoal. Ver também o empenho do meu grupo de amigos em desenvolver essa atividade foi bastante gratificante, ver que estou cercado de pessoas boas em um ambiente tão competitivo, que é uma universidade, me deixa mais tranquilo”.
Por fim, a experiência do meu filho, Lucas Felipe, no abrigo. Como ele havia causado um acidente de carro, onde ninguém teve ferimentos graves, mas aparentava não ter aprendido muito daquela situação, decidi aplicar uma pena para lhe ajudar a olhar para os outros. Então, durante um ano, ele foi três vezes por semana ao abrigo, e relata o que viveu: “Minha experiência no Lar Três Irmãs foi muito boa para mim. Lá aprendi diversas atividades, como ajudar na cozinha e também servir o que eles pediam. Fiz muitas amizades, tanto com os idosos como com quem trabalha no abrigo. Aprendi muitos valores da vida, de como olhar para o próximo e a quem precisa. Também consegui conhecer a história de cada um pelo tempo que fiquei”.
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