Vai para os conteúdos

Passos N.202, Maio 2018

DESTAQUE

A santidade no mundo de hoje

por Papa Francisco

Apresentada em Roma a Exortação Apostólica "Gaudete et exsultate" (Alegrai-vos e exultai), o documento papal sobre a “chamada à santidade no mundo atual”. Aqui, um trecho com as palavras dirigidas a todos que recusam uma vida “medíocre” e buscam a “felicidade”

Santos sim, mas não “super-homens” ou “perfeitos”. Simplesmente pessoas comuns – maridos e mulheres, pais, avós, trabalhadores, consagrados – que não têm medo “de apontar para mais alto” e a cada dia se deixam “amar e libertar por Deus”, transformando a própria vida numa contínua “missão” a serviço dos outros.
É “a santidade ‘ao pé da porta’ daqueles que vivem perto de nós e são um reflexo da presença de Deus” que está no centro da Exortação Apostólica Gaudete et exsultate, assinada pelo Papa Francisco no dia de São José e apresentada em Roma no dia 9 de abril, solenidade da Anunciação do Senhor. Um texto que não tem a pretensão de ser um manual teológico e nem tem o tom de um tratado doutrinal. Pelo contrário, demonstra a familiaridade de um livro de referência para acompanhar aqueles que não se acostumam “com uma vida medíocre, superficial e indecisa”.
A seguir, publicamos o primeiro capítulo do documento (A chamada à santidade), com o convite a abrir-se para a leitura e meditação desse texto do Santo Padre como ajuda a um caminho pessoal de santidade como “a vida verdadeira, a felicidade para a qual fomos criados”.


“Alegrai-vos e exultai” (Mt 5, 12), diz Jesus a quantos são perseguidos ou humilhados por causa d’Ele. O Senhor pede tudo e, em troca, oferece a vida verdadeira, a felicidade para a qual fomos criados. Quer-nos santos e espera que não nos resignemos com uma vida medíocre, superficial e indecisa. Com efeito, a chamada à santidade está patente, de várias maneiras, desde as primeiras páginas da Bíblia; a Abraão, o Senhor propô-la nestes termos: “anda na minha presença e sê perfeito” (Gn 17, 1).
Não se deve esperar aqui um tratado sobre a santidade, com muitas definições e distinções que poderiam enriquecer este tema importante ou com análises que se poderiam fazer acerca dos meios de santificação. O meu objetivo é humilde: fazer ressoar mais uma vez a chamada à santidade, procurando encarná-la no contexto atual, com os seus riscos, desafios e oportunidades, porque o Senhor escolheu cada um de nós “para ser santo e irrepreensível na sua presença, no amor” (cf. Ef 1, 4).

Na Carta aos Hebreus, mencionam-se várias testemunhas que nos encorajam a “correr com perseverança a prova que nos é proposta” (12, 1): fala-se de Abraão, Sara, Moisés, Gedeão e vários outros (cf. cap. 11). Mas, sobretudo somos convidados a reconhecer-nos “circundados de tal nuvem de testemunhas” (12, 1), que incitam a não deter-nos no caminho, que nos estimulam a continuar a correr para a meta. E, entre tais testemunhas, podem estar a nossa própria mãe, uma avó ou outras pessoas próximas de nós (cf. 2 Tm 1, 5). A sua vida talvez não tenha sido sempre perfeita, mas, mesmo no meio de imperfeições e quedas, continuaram a caminhar e agradaram ao Senhor.
Os santos, que já chegaram à presença de Deus, mantêm conosco laços de amor e comunhão. Atesta-o o livro do Apocalipse, quando fala dos mártires intercessores: “Vi debaixo do altar as almas dos que tinham sido mortos, por causa da Palavra de Deus e por causa do testemunho que deram. E clamavam em alta voz: Tu, que és o Poderoso, o Santo, o Verdadeiro! Até quando esperarás para julgar?” (6, 9-10). Podemos dizer que “estamos circundados, conduzidos e guiados pelos amigos de Deus. (...) Não devo carregar sozinho o que, na realidade, nunca poderia carregar sozinho. Os numerosos santos de Deus protegem-me, amparam-me e guiam-me” (Bento XVI, Homilia no início solene do Ministério Petrino, 24 abril 2005).
Nos processos de beatificação e canonização, tomam-se em consideração os sinais de heroicidade na prática das virtudes, o sacrifício da vida no martírio e também os casos em que se verificou um oferecimento da própria vida pelos outros, mantido até à morte. Esta doação manifesta uma imitação exemplar de Cristo, e é digna da admiração dos fiéis. Lembremos, por exemplo, a Beata Maria Gabriela Sagheddu, que ofereceu a sua vida pela unidade dos cristãos.

Não pensemos apenas em quantos já estão beatificados ou canonizados. O Espírito Santo derrama a santidade, por toda a parte, no santo povo fiel de Deus, porque “aprouve a Deus salvar e santificar os homens, não individualmente, excluída qualquer ligação entre eles, mas constituindo-os em povo que O conhecesse na verdade e O servisse santamente” (Lumen gentium, 9). O Senhor, na história da salvação, salvou um povo. Não há identidade plena, sem pertença a um povo. Por isso, ninguém se salva sozinho, como indivíduo isolado, mas Deus atrai-nos tendo em conta a complexa rede de relações interpessoais que se estabelecem na comunidade humana: Deus quis entrar numa dinâmica popular, na dinâmica dum povo.
Gosto de ver a santidade no povo paciente de Deus: nos pais que criam os seus filhos com tanto amor, nos homens e mulheres que trabalham a fim de trazer o pão para casa, nos doentes, nas consagradas idosas que continuam a sorrir. Nesta constância de continuar a caminhar dia após dia, vejo a santidade da Igreja militante. Esta é muitas vezes a santidade “ao pé da porta”, daqueles que vivem perto de nós e são um reflexo da presença de Deus, ou – por outras palavras – da “classe média da santidade” (Cf. Joseph Malègue, Pierres noires. Les classes moyennes du Salut, Paris 1958).
Deixemo-nos estimular pelos sinais de santidade que o Senhor nos apresenta através dos membros mais humildes deste povo que “participam também da função profética de Cristo, difundindo o seu testemunho vivo, sobretudo pela vida de fé e de caridade” (Lumen gentium, 12). Como nos sugere Santa Teresa Benedita da Cruz, pensemos que é através de muitos deles que se constrói a verdadeira história: “Na noite mais escura, surgem os maiores profetas e os santos. Todavia a corrente vivificante da vida mística permanece invisível. Certamente, os eventos decisivos da história do mundo foram essencialmente influenciados por almas sobre as quais nada se diz nos livros de história. E saber quais sejam as almas a quem devemos agradecer os acontecimentos decisivos da nossa vida pessoal, é algo que só conheceremos no dia em que tudo o está oculto for revelado” (Vida escondida y epifanía, Burgos 2007, p. 637).
A santidade é o rosto mais belo da Igreja. Mas, mesmo fora da Igreja Católica e em áreas muito diferentes, o Espírito suscita “sinais da sua presença, que ajudam os próprios discípulos de Cristo” (São João Paulo II, Carta ap. Novo millennio ineunte, 6 jan 2001, 56). Por outro lado, São João Paulo II lembrou-nos que o “testemunho, dado por Cristo até ao derramamento do sangue, tornou-se patrimônio comum de católicos, ortodoxos, anglicanos e protestantes” (Carta ap. Tertio millennio adveniente, 10 nov 1994, 37). Na sugestiva comemoração ecumênica, que ele quis celebrar no Coliseu durante o Jubileu do ano 2000, defendeu que os mártires são “uma herança que fala com uma voz mais alta do que os fatores de divisão”.

Tudo isto é importante. Mas, o que quero recordar com esta Exortação é sobretudo a chamada à santidade que o Senhor faz a cada um de nós, a chamada que dirige também a ti: “sede santos, porque Eu sou santo” (Lv 11, 45; cf. 1 Ped 1, 16). O Concílio Vaticano II salientou vigorosamente: “munidos de tantos e tão grandes meios de salvação, todos os fiéis, seja qual for a sua condição ou estado, são chamados pelo Senhor à perfeição do Pai, cada um por seu caminho” (Lumen gentium, 11).
“Cada um por seu caminho”, diz o Concílio. Por isso, uma pessoa não deve desanimar, quando contempla modelos de santidade que lhe parecem inatingíveis. Há testemunhos que são úteis para nos estimular e motivar, mas não para procurarmos copiá-los, porque isso poderia até afastar-nos do caminho, único e específico, que o Senhor predispôs para nós. Importante é que cada crente discirna o seu próprio caminho e traga à luz o melhor de si mesmo, quanto Deus colocou nele de muito pessoal (cf. 1 Cor 12, 7), e não se esgote procurando imitar algo que não foi pensado para ele. Todos estamos chamados a ser testemunhas, mas há muitas formas existenciais de testemunho. De fato, quando o grande místico São João da Cruz escrevera o seu Cântico Espiritual, preferia evitar regras fixas para todos, explicando que os seus versos estavam escritos para que cada um os aproveitasse “a seu modo”. Pois a vida divina comunica-se “a uns de uma maneira e a outros de outra” (Cântico Espiritual B, Prólogo, 2: Opere. Roma 1979, 490).
A propósito de tais formas distintas, quero assinalar que também o “gênio feminino” se manifesta em estilos femininos de santidade, indispensáveis para refletir a santidade de Deus neste mundo. E precisamente em períodos nos quais as mulheres estiveram mais excluídas, o Espírito Santo suscitou santas, cujo fascínio provocou novos dinamismos espirituais e reformas importantes na Igreja. Podemos citar Santa Hildegarda de Bingen, Santa Brígida, Santa Catarina de Sena, Santa Teresa de Ávila ou Santa Teresa de Lisieux; mas interessa-me sobretudo lembrar tantas mulheres desconhecidas ou esquecidas que sustentaram e transformaram, cada uma a seu modo, famílias e comunidades com a força do seu testemunho.
Isto deveria entusiasmar e animar cada um a dar o melhor de si mesmo para crescer rumo àquele projeto, único e irrepetível, que Deus quis, desde toda a eternidade, para ele: “antes de te haver formado no ventre materno, Eu já te conhecia; antes que saísses do seio de tua mãe, Eu te consagrei” (Jer 1, 5).

Para ser santo, não é necessário ser bispo, sacerdote, religiosa ou religioso. Muitas vezes somos tentados a pensar que a santidade esteja reservada apenas àqueles que têm possibilidade de se afastar das ocupações comuns, para dedicar muito tempo à oração. Não é assim. Todos somos chamados a ser santos, vivendo com amor e oferecendo o próprio testemunho nas ocupações de cada dia, onde cada um se encontra. És consagrada ou consagrado? Sê santo, vivendo com alegria a tua doação. Estás casado? Sê santo, amando e cuidando do teu marido ou da tua esposa, como Cristo fez com a Igreja. És um trabalhador? Sê santo, cumprindo com honestidade e competência o teu trabalho ao serviço dos irmãos. És progenitor, avó ou avô? Sê santo, ensinando com paciência as crianças a seguirem Jesus. Estás investido em autoridade? Sê santo, lutando pelo bem comum e renunciando aos teus interesses pessoais.
Deixa que a graça do teu Batismo frutifique num caminho de santidade. Deixa que tudo esteja aberto a Deus e, para isso, opta por Ele, escolhe Deus sem cessar. Não desanimes, porque tens a força do Espírito Santo para tornar possível a santidade e, no fundo, esta é o fruto do Espírito Santo na tua vida (cf. Gal 5, 22-23). Quando sentires a tentação de te enredares na tua fragilidade, levanta os olhos para o Crucificado e diz-Lhe: “Senhor, sou um miserável! Mas Vós podeis realizar o milagre de me tornar um pouco melhor”. Na Igreja, santa e formada por pecadores, encontrarás tudo o que precisas para crescer rumo à santidade. “Como uma noiva que se adorna com as suas joias” (Is 61, 10), o Senhor cumulou-a de dons com a Palavra, os Sacramentos, os santuários, a vida das comunidades, o testemunho dos santos e uma beleza multiforme que deriva do amor do Senhor.
Esta santidade, a que o Senhor te chama, irá crescendo com pequenos gestos. Por exemplo, uma senhora vai ao mercado fazer as compras, encontra uma vizinha, começam a falar e… surgem as críticas. Mas esta mulher diz para consigo: “Não! Não falarei mal de ninguém”. Isto é um passo rumo à santidade. Depois, em casa, o seu filho reclama a atenção dela para falar das suas fantasias e ela, embora cansada, senta-se ao seu lado e escuta com paciência e carinho. Trata-se de outra oferta que santifica. Ou então atravessa um momento de angústia, mas lembra-se do amor da Virgem Maria, pega no terço e reza com fé. Este é outro caminho de santidade. Noutra ocasião, segue pela estrada fora, encontra um pobre e detém-se a conversar carinhosamente com ele. É mais um passo.
Sucede, às vezes, que a vida apresenta desafios maiores e, através deles, o Senhor convida-nos a novas conversões que permitam à sua graça manifestar-se melhor na nossa existência, “para nos fazer participantes da sua santidade” (Heb 12, 10). Outras vezes trata-se apenas de encontrar uma forma mais perfeita de viver o que já fazemos: “há inspirações que nos fazem apenas tender para uma perfeição extraordinária das práticas ordinárias da vida cristã” (São Francisco de Sales, Tratado do Amor de Deus, VIII, 11, Roma 2011). Quando estava na prisão, o Cardeal Francisco Xavier Nguyen van Thuan renunciou a desgastar-se com a ânsia da sua libertação. A sua decisão foi “viver o momento presente, cumulando-o de amor”; eis o modo como a concretizava: “aproveito as ocasiões que vão surgindo cada dia para realizar ações ordinárias de maneira extraordinária”.
Deste modo, sob o impulso da graça divina, com muitos gestos vamos construindo aquela figura de santidade que Deus quis para nós: não como seres autossuficientes, mas “como bons administradores das várias graças de Deus” (1 Ped 4, 10). Os Bispos da Nova Zelândia ensinaram-nos, justamente, que é possível amar com o amor incondicional do Senhor, porque o Ressuscitado partilha a sua vida poderosa com as nossas vidas frágeis: “o seu amor não tem limites e, uma vez doado, nunca volta atrás. Foi incondicional e permaneceu fiel. Amar assim não é fácil, porque muitas vezes somos tão frágeis; mas, precisamente para podermos amar como Ele nos amou, Cristo partilha conosco a sua própria vida ressuscitada. Desta forma, a nossa vida demonstra o seu poder em ação, inclusive no meio da fragilidade humana”.

Para um cristão, não é possível imaginar a própria missão na terra, sem a conceber como um caminho de santidade, porque “esta é, na verdade, a vontade de Deus: a [nossa] santificação” (1 Ts 4, 3). Cada santo é uma missão; é um projeto do Pai que visa refletir e encarnar, num momento determinado da história, um aspeto do Evangelho.
Esta missão tem o seu sentido pleno em Cristo e só se compreende a partir d’Ele. No fundo, a santidade é viver em união com Ele os mistérios da sua vida; consiste em associar-se de uma maneira única e pessoal à morte e ressurreição do Senhor, em morrer e ressuscitar continuamente com Ele. Mas pode também envolver a reprodução na própria existência de diferentes aspectos da vida terrena de Jesus: a vida oculta, a vida comunitária, a proximidade aos últimos, a pobreza e outras manifestações da sua doação por amor. A contemplação destes mistérios, como propunha Santo Inácio de Loyola, leva-nos a encarná-los nas nossas opções e atitudes. Porque “tudo, na vida de Jesus, é sinal do seu mistério”, “toda a vida de Cristo é revelação do Pai”, “toda a vida de Cristo é mistério de redenção”, “toda a vida de Cristo é mistério de recapitulação”, e “tudo o que Cristo viveu, Ele próprio faz com que o possamos viver n’Ele e Ele vivê-lo em nós” (Catecismo da Igreja Católica).
O desígnio do Pai é Cristo, e nós n’Ele. Em última análise, é Cristo que ama em nós, porque a santidade “mais não é do que a caridade plenamente vivida”. Por conseguinte, “a medida da santidade é dada pela estatura que Cristo alcança em nós, desde quando, com a força do Espírito Santo, modelamos toda a nossa vida sobre a Sua”. Assim, cada santo é uma mensagem que o Espírito Santo extrai da riqueza de Jesus Cristo e dá ao seu povo.
Para identificar qual seja essa palavra que o Senhor quer dizer através de um santo, não convém deter-se nos detalhes, porque nisso também pode haver erros e quedas. Nem tudo o que um santo diz é plenamente fiel ao Evangelho, nem tudo o que faz é autêntico ou perfeito. O que devemos contemplar é o conjunto da sua vida, o seu caminho inteiro de santificação, aquela figura que reflete algo de Jesus Cristo e que sobressai quando se consegue compor o sentido da totalidade da sua pessoa.
Isto é um vigoroso apelo para todos nós. Também tu precisas conceber a totalidade da tua vida como uma missão. Tenta fazê-lo, escutando a Deus na oração e identificando os sinais que Ele te dá. Pede sempre, ao Espírito Santo, o que espera Jesus de ti em cada momento da tua vida e em cada opção que tenhas de tomar, para discernir o lugar que isso ocupa na tua missão. E permite-Lhe plasmar em ti aquele mistério pessoal que possa refletir Jesus Cristo no mundo de hoje.
Oxalá consigas identificar a palavra, a mensagem de Jesus que Deus quer dizer ao mundo com a tua vida. Deixa-te transformar, deixa-te renovar pelo Espírito para que isso seja possível, e assim a tua preciosa missão não fracassará. O Senhor levá-la-á a cumprimento mesmo no meio dos teus erros e momentos negativos, desde que não abandones o caminho do amor e permaneças sempre aberto à sua ação sobrenatural que purifica e ilumina.

Dado que não se pode conceber Cristo sem o Reino que Ele veio trazer, também a tua missão é inseparável da construção do Reino: “procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça” (Mt 6, 33). A tua identificação com Cristo e os seus desígnios requer o compromisso de construíres, com Ele, este Reino de amor, justiça e paz para todos. O próprio Cristo quer vivê-lo contigo em todos os esforços ou renúncias que isso implique e também nas alegrias e na fecundidade que te proporcione. Por isso, não te santificarás sem te entregares de corpo e alma, dando o melhor de ti neste compromisso.
Não é saudável amar o silêncio e esquivar o encontro com o outro, desejar o repouso e rejeitar a atividade, buscar a oração e menosprezar o serviço. Tudo pode ser recebido e integrado como parte da própria vida neste mundo, entrando a fazer parte do caminho de santificação. Somos chamados a viver a contemplação mesmo no meio da ação, e santificamo-nos no exercício responsável e generoso da nossa missão.
Poderá porventura o Espírito Santo enviar-nos para cumprir uma missão e, ao mesmo tempo, pedir-nos que fujamos dela ou que evitemos doar-nos totalmente para preservarmos a paz interior? Obviamente não; mas, às vezes, somos tentados a relegar para posição secundária a dedicação pastoral e o compromisso no mundo, como se fossem “distrações” no caminho da santificação e da paz interior. Esquecemo-nos disto: “não é que a vida tenha uma missão, mas a vida é uma missão” (Xavier Zubiri, Naturaleza, historia, Dios. Madri 1999).
Um compromisso movido pela ansiedade, o orgulho, a necessidade de aparecer e dominar, certamente, não será santificador. O desafio é viver de tal forma a própria doação, que os esforços tenham um sentido evangélico e nos identifiquem cada vez mais com Jesus Cristo. Por isso, é usual falar, por exemplo, duma espiritualidade do catequista, duma espiritualidade do clero diocesano, duma espiritualidade do trabalho. Pela mesma razão, na Evangelii gaudium, quis concluir com uma espiritualidade da missão, na Laudato si’ com uma espiritualidade ecológica, e na Amoris laetitia com uma espiritualidade da vida familiar.
Isto não implica menosprezar os momentos de quietude, solidão e silêncio diante de Deus. Pelo contrário! Com efeito, as novidades contínuas dos meios tecnológicos, o fascínio de viajar, as inúmeras ofertas de consumo, às vezes, não deixam espaços vazios onde ressoe a voz de Deus. Tudo se enche de palavras, prazeres epidérmicos e rumores a uma velocidade cada vez maior; aqui não reina a alegria, mas a insatisfação de quem não sabe para que vive. Então, como não reconhecer que precisamos deter esta corrida febril para recuperar um espaço pessoal, às vezes doloroso, mas sempre fecundo, onde se realize o diálogo sincero com Deus? Em certos momentos, deveremos encarar a verdade de nós mesmos, para deixá-la invadir pelo Senhor; e isto nem sempre se consegue, se a pessoa “não se vê à beira do abismo da tentação mais opressiva, se não sente a vertigem do precipício do abandono mais desesperado, se não se encontra absolutamente só, no cume da solidão mais radical” (Carlos M. Martini, As confissões de Pedro. Cinisello Balsamo 2017, p. 69). Assim, encontramos as grandes motivações que nos impelem a viver, em profundidade, as nossas tarefas.
Os próprios meios de distração que invadem a vida atual levam-nos também a absolutizar o tempo livre, no qual podemos utilizar, sem limites, aqueles dispositivos que nos proporcionam divertimento e prazeres efêmeros. Em consequência disso, ressente-se a própria missão, o compromisso esmorece, o serviço generoso e disponível começa a retrair-se. Isto desnatura a experiência espiritual. Poderá ser saudável um fervor espiritual que convive com a preguiça na ação evangelizadora ou no serviço dos outros?
Precisamos de um espírito de santidade que impregne tanto a solidão como o serviço, tanto a intimidade como a tarefa evangelizadora, para que cada instante seja expressão de amor doado sob o olhar do Senhor. Desta forma, todos os momentos serão degraus no nosso caminho de santificação.

Não tenhas medo da santidade. Não te tirará forças, nem vida nem alegria. Muito pelo contrário, porque chegarás a ser o que o Pai pensou quando te criou e serás fiel ao teu próprio ser. Depender d’Ele liberta-nos das escravidões e leva-nos a reconhecer a nossa dignidade. Isto se vê em Santa Josefina Bakhita, que, “escravizada e vendida como escrava com apenas sete anos de idade, sofreu muito nas mãos de patrões cruéis. Apesar disso compreendeu a verdade profunda que Deus, e não o homem, é o verdadeiro Patrão de todos os seres humanos, de cada vida humana. Esta experiência torna-se fonte de grande sabedoria para esta humilde filha da África” (São João Paulo II, Homilia na Missa de canonização, 1 de outubro de 2000)
Cada cristão, quanto mais se santifica, tanto mais fecundo se torna para o mundo. Assim nos ensinaram os Bispos da África ocidental: “Somos chamados, no espírito da nova evangelização, a ser evangelizados e a evangelizar através da promoção de todos os batizados para que assumam as suas tarefas como sal da terra e luz do mundo, onde quer que se encontrem”.
Não tenhas medo de apontar para mais alto, de te deixares amar e libertar por Deus. Não tenhas medo de te deixares guiar pelo Espírito Santo. A santidade não te torna menos humano, porque é o encontro da tua fragilidade com a força da graça. No fundo, como dizia León Bloy, na vida “existe apenas uma tristeza: a de não ser santo”.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

Volta ao início da página