Pierluigi Bernaregg é um intelectual notável. Mas raras vezes será encontrado na universidade ou em outro lugar semelhante. Ele escolheu dedicar toda a sua vida ao trabalho com os pobres e favelados de Belo Horizonte. Com inteligência e sagacidade, nos explica o que é ser protagonista em nossa realidade
O cristianismo trouxe ao mundo a ideia de que a dignidade e a liberdade são um atributo de cada pessoa; portanto, o protagonismo é uma coisa para todos. Impulsionada por esse espírito, a Idade Média, ao contrário do que muitos pensam, foi a grande época do florescimento das lideranças locais, das comunas, das fraternidades de artes e profissões, dos grandes santos, do florescimento das liberdades civis e da co-responsabilidade entre as pessoas. Tudo isso não foi fruto da imposição do poder, mas expressão desta criatividade, desta liberdade. Na Idade Média se criou esta cultura da liberdade e do valor das pessoas: a comunidade não é um formigueiro, mas é a união das pessoas. Há sempre uma referência comunitária, mas por causa da pessoa, não por causa do poder. Mas sem o cristianismo, esse conceito de pessoa não existiria; haveria apenas a ideia do formigueiro, das formigas que são indivíduos numa massa.
No Brasil, as irmandades, que seriam uma expressão dessa criatividade, já vieram da Europa manipuladas pelo poder imperial. As irmandades daqui não tiveram uma função – hoje diríamos – libertadora. Tinham mais uma função agregadora dos pobres sofridos que se unem para se ajudar, mas não eram como a fraternidade medieval, construtora da civilização, guia da construção da cidade. Aqui quem construiu a cidade sempre foi o poder dominante. São poucas as verdadeiras experiências populares daqui, tais como Zumbi e Canudos, aparentemente fantásticas ou folclóricas, mas que na realidade foram tentativas reais de independência das pessoas.
Neste ponto a Doutrina Social da Igreja é totalmente desconhecida e até evitada, inclusive introjetando dentro da própria mentalidade dos dirigentes católicos a ideia de que ela não é adequada. Na Doutrina Social da Igreja o centro de tudo, o eixo, é a pessoa. O princípio de subsidiariedade é a forma sócio-política de entender este protagonismo da pessoa, da família, das agregações que as pessoas criam. Tudo isso é mais importante do que o Estado, do que as organizações mundiais, do que o poder, etc.
O fio da meada
Agora, onde está o fio da meada? Está na agregação das pessoas formando uma grande solidariedade popular que possa realmente exigir as grandes mudanças. Cleusa e Marcos Zerbini, por exemplo, são líderes, mas no sentido de expressão de uma criatividade e solidariedade de pessoas. Aí sim o líder tem seu lugar. Mas no geral os chamados líderes são fruto de manipulações, de montagem através da mídia e do marketing: eles são vítimas também.
No meu meio, a gente sente como é difícil as pessoas viverem o protagonismo. Pesa demais uma herança cultural que leva induz à passividade. Para enfrentar isso basta levar a sério a Doutrina Social da Igreja: sua teologia, sua cristologia, sua teologia, sua eclesiologia – a sua identidade. Se nós levamos a sério a nossa identidade, nós temos a condição de deflagrar uma grande mudança no mundo atual. Mas tem de ter uma grande consciência da nossa identidade cristã, da verdadeira novidade do cristianismo. Não é questão de religião de bater palma, de cumprir tabela, rezar na semana-santa... O verdadeiro protagonismo é a comunidade cristã sentir-se chamada a mudar o mundo – o mundo inteiro, não apenas a dar cobertor aos pobres, comida aos famintos...
A raiz está na formação cristã recebida, na experiência; e sobretudo para nós como padres, na nossa união com o bispo. É aí que está para nós o eixo do sentido, do porquê estamos aqui. A referência de todas as experiências de fraternidade, de descoberta do sentido da comunhão fraterna, da renovação da pessoa, se encontra na conversão a Cristo. Se você participar seriamente da Igreja como ela é, conviver com a vida da Igreja como ela é, você tem tudo para não se esvaziar, nem mesmo dentro de uma globalização que caminha para o esvaziamento das pessoas.
A Igreja como ela é
Digo “Igreja como ela é” porque ela tem o seu segredo, tem o seu mistério, que é a comunhão das pessoas em Cristo. E este mistério profundo resiste a qualquer tipo de pressão, de situação, de desafio ou fracasso. Não importa o tamanho da comunidade e da experiência fraterna das pessoas, isso acontece mesmo quando são pequeninas, fracas, ainda engatinham. Você pode criar comunidade cristã nos redutos mais miseráveis, nos lugares aparentemente menos protagonistas, onde seria menos fácil protagonizar alguma coisa.
Digo “Igreja como ela é” no sentido que ela tem a sua forma de ser global, tem a ver com tudo. “A Igreja como ela é” não é Igreja só de rezar, só de fazer cerimônia, só de pregar o evangelho, só de se modificar de penitência, só de rito; “a Igreja como ela é” é um conjunto, é uma vivência onde entram todos os problemas entre as pessoas. Então esta comunhão fraterna entre as pessoas é a semente das mudanças.
Você não encontra a comunidade cristã para se adequar a ela: é você que a gera de dentro para fora. Portanto, sem protagonismo não há comunidade. Comunidade não é algo em que você se encaixa, se sente bem e vai levando. Criar comunidade é um impacto, é uma luta, uma batalha. Necessariamente é protagonismo. Só no fato de estar criando a comunidade cristã, implicitamente você está envolvido num processo de transformação do mundo todo. É o único protagonismo real, porque o resto é aparência; no final das contas quem domina é a lei da natureza pervertida pelo pecado original, portanto são todos vítimas.
Geramos a comunidade “de dentro para fora” porque a nossa vida é a pessoa de Cristo. E isso é uma outra humanidade, uma outra estrutura, profunda; é aí é que está o protagonismo. Cristão – a própria palavra diz – é aquele que mesmo com todos os seus defeitos está cheio da pessoa de Cristo, reconhece o Cristo, e por isso representa um fato novo que ninguém nunca viu. No palco da vida é um protagonista.
Nós recebemos a presença de Cristo dos outros, são eles que nos alertam para a presença do Cristo. A questão é abrirmos os olhos sobre a realidade, porque ela existe independentemente da nós, de alguém explicar, mostrar, educar e tal. O educador é aquele que faz a pessoa acordar para a realidade que ele já vive de antemão, desde sempre, desde que o Cristo ressuscitou, subiu ao céu e sentou-se à direita do Pai, isto é, está plantado no íntimo de todos. Esta é a coisa nova. Não é um anúncio no sentido que trazem a você uma coisa nova, mas sim no sentido que o fazem abrir os olhos sobre a coisa nova que já está aí. É um fato primordial, é um dado, uma realidade objetiva que independe inclusive da gente tomar conhecimento dela. Mas, à medida que você toma conhecimento dela você se torna protagonista. Se Cristo existe, tudo tem um outro sentido, tudo precisa ser modificado.
“Protagonistas ou ninguém”: tomando conhecimento da presença de Cristo, abraçando esta presença de Cristo realmente, você se torna alguém; mas sem isso você é ninguém, você é formiga, formiga dentro do formigueiro, é objeto do poder e, por sua vez, os poderosos são objetos da cobiça do pecado original, são também objetos e vítimas. O imperador não é o dono do mundo; ele é aquele no qual o pecado original gerou um poder maior no sentido da anti-vida, no sentido anti-humano, portanto é um ser vivo pior que os outros. Quer dizer, num mundo sem Cristo não há ninguém que seja protagonista: todos são vítimas, cada um da sua maneira. Mas no mundo de Cristo todos são protagonistas, mesmo aqueles que você acha que não, cada a sua maneira. Segundo o Evangelho, os que o são da maneira mais humilde são os mais eficazes.
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