Padre José Cândido da Silva mostra como a proposta de vida apresentada no livro responde a um desejo de radicalidade que existia nos primeiros cristãos. Além disso, apresenta um interessante diálogo entre o livro de Dom Giussani e a última encíclica de Bento XVI, Spes salvi
“É possível viver assim? ”. Podemos situar essa interrogação, dentro da história da Igreja, naquela famosa passagem da Igreja dos primórdios, a Igreja primitiva das catacumbas, para a Igreja do Império na época de Constantino, a partir do século IV. Logo no começo do Cristianismo, todo cristão – qualquer que fosse seu estatuto dentro da Igreja, leigo, papa, bispo, – estava destinado ao martírio. O fato de receber o batismo fazia com que aquela pessoa já fizesse uma opção por uma vida muito difícil – eu diria heróica – porque era destinado ao martírio. Ser cristão era realmente uma opção que fazia diferença na cultura e no mundo. Por isso é que a preparação para o batismo era tão longa: três anos de preparação formal além de toda uma experiência que se criava para atestar se aquela pessoa realmente tinha a fidelidade e a força necessária – evidentemente vinda da graça – para permanecer na fé cristã.
Quando o Cristianismo passa a ser a religião oficial do Império, todos não só podem, como devem ser cristãos. E aí é que surge o monacato, a vida religiosa, respondendo à situação que se criara. Nos primeiros tempos, o fato de ser cristãos já era um ato de heroísmo; agora não mais. Agora era o comum, era o de todo mundo. E muitos falaram: “Assim não é possível! Seguir Jesus Cristo conforme o Evangelho é um ideal que apela, que tem uma força de mudança de vida muito grande, muito exigente; mas agora não há exigência nenhuma...”.
Surge então, em lugar do martírio de sangue, o chamado martírio branco que é exatamente a vida monacal, a vida dos anacoretas, que renunciam a tudo para permanecer de alguma forma com aquelas mesmas exigências que antes estavam voltadas para o martírio do derramamento de sangue. Agora era uma radical entrega da vida, da própria vida, através dos votos, através da renúncia, através do seguimento radical de Jesus – o que chamamos hoje de vivência radical do batismo. Mas aí alguns começaram a se perguntar: “é possível viver assim?”. Todo mundo podia ser cristão da forma comum, então por que estas exigências tão fortes?
Esta é a mesma pergunta que, de alguma forma, Giussani nos propõe hoje. No fundo é a mesma coisa. Nós termos um mundo mais ou menos cristão, mas com esse neo-paganismo de nossos tempos, esta pergunta volta principalmente para aqueles que se consagram a uma vida diferente, que marca a diferença no mundo de hoje. Mais do que nunca as pessoas se perguntam: “é possível viver assim?”.
Fé e esperança
Passo diretamente ao quarto capítulo, ao tema da esperança: É possível viver assim porque cultivamos uma esperança no coração. Dom Giussani procura expor as razões desta esperança, pois quando chegamos a estas razões que brotam da fé e da esperança nós vamos perceber que elas são suficientes para fundamentar uma vida de profunda dedicação ao Mistério. Mistério que não controlamos, mas que nós encontramos. Eu diria mais: Ele é que se apropria de nós, Ele é que nos conduz. Nesta dedicação ao Mistério nós temos a luz da palavra de Jesus, do grande encontro, da Grande Presença – como é chamada no livro. E todas estas maravilhas descobertas pelas palavras da escritura são analisadas a partir da perspectiva de uma razão humana.
Quero analisar este quarto capitulo à luz da última encíclica do Papa Bento XVI – Spes salvi –, justamente sobre a esperança cristã, que é preciosa. Falando da esperança cristã, a primeira coisa que Giussani diz é que a esperança cristã não dispensa a razão humana. Aqui há uma fundamentação. Inclusive no próprio diálogo com os jovens que fazem parte daquela formação, o tempo inteiro se fala desta necessidade de compreender. É muito importante isto: na nossa tradição católica, não partimos somente do salto na obscuridade (como professava Kierkegaard ou os pietistas e os fideístas); mas também compreendermos aquilo no qual nós nos envolvemos.
Ele também mostra – e aí há uma ligação com o texto da encíclica – que fé e esperança são duas faces de uma mesma moeda. A esperança brota da fé. Na encíclica, o Papa escreve: “Antes de nos debruçarmos sobre estas questões, hoje particularmente sentidas, devemos escutar com um pouco mais de atenção o testemunho da Bíblia sobre a esperança. Esta é, de fato, uma palavra central da fé bíblica, a ponto de, em várias passagens, ser possível intercambiar fé e esperança” (§2). Ou seja, no lugar de fé você coloca esperança; no lugar de esperança você coloca fé. Giussani diz praticamente o mesmo: a esperança brota da fé, a esperança é a caminhada da fé para a plena realização da glória de Deus.
O que se busca nesta esperança cristã não é um futuro bem sucedido para si, o que nós buscamos no trabalho, na dedicação, na consagração é a glória de Deus, que acaba sendo também para nós porque “a glória de Deus é o homem vivente”, diziam os antigos sábios. Então este resultado da caminhada da fé que é a esperança, o futuro que vai chegar, é a gloria de Deus – é o que nós buscamos. Como Lutero e os reformadores, nós católicos também sempre dizemos: “Solo Deo gloria” . O que nós buscamos e almejamos, aquilo pelo que trabalhamos, é a gloria de Deus.
A fé é reconhecer
Giussani sublina ainda, falando sobre a esperança, é que a fé é reconhecer. As pessoas muitas vezes falam da fé como a formação de algo novo. Não é. A fé é um dado que nós reconhecemos. O sol existe, a gente precisa reconhecê-lo. Este reconhecimento é – a meu ver – uma palavra chave. As pessoas dizem: “quando a gente acredita na eucaristia e Jesus presente na eucaristia, Jesus se faz presente ali”. Não é produto da minha fé a presença de Jesus na eucaristia. Eu simplesmente reconheço. Não é a minha fé que cria a presença de Jesus. Não é a fé dos apóstolos que cria a ressurreição. Os apóstolos reconheceram o Ressuscitado; o Ressuscitado existe.
Não se trata de um futuro repetido – vai dizer o livro de Giussani – mas é um futuro novo, completamente novo. Não é algo que se repete amanhã a guisa daquelas repetições cíclicas da compreensão da filosofia grega, da história como história cíclica, que se repete como a natureza (as estações, o sol, a lua e assim por diante). Não, aguardamos o futuro absolutamente novo, mas certo. É uma certeza.
Reconhecer com certeza um futuro – um futuro novo, não repetido – que nasce da esperança. Sobre isso o Papa diz, na Spes salvi: “Aparece aqui também como elemento distintivo dos cristãos o fato de estes terem um futuro: não é que conheçam em detalhe o que os espera, mas sabem, em termos gerais que sua vida não acaba no vazio. Somente quando o futuro é certo [note a certeza de Giussani aqui] como realidade positiva, é que se torna vivível também o presente” (§2): É possível viver assim!
Giussani fala ainda do “reconhecimento de uma Presença que nos permite a certeza de um futuro pela memória do passado”. Memória é uma categoria cristã de fundamental importância. O que é que nos dá esta certeza do futuro? Que o passado já aconteceu, já foi fato, não é uma ilusão. E este fato do passado, como é que ele chega até mim hoje? Ele chega até mim pela memória. Mas não é uma memória fraquinha, uma memória psicológica. Aqui entra o conteúdo da memória no sentido teológico em que esta recordação, esta anámnesis, traz o passado para este presente, para o presente agora, e isso alimenta o futuro.
O Papa diz – em uma passagem que considero de fundamental importância – que esta certeza que nós temos já é uma posse. Nós já temos posse agora desta realidade do futuro que é novo; nós a possuímos desde já. O Papa em sua encíclica (§7), num trecho belíssimo, observa que a fé é a substância, “a hypostasis das coisas que se esperam; prova das coisas que não se vêem” e comenta que Lutero, exatamente porque tinha certa ojeriza à palavra substância, hypostasis – termo grego que se incorporara à tradição escolástica – não a traduziu adequadamente. Assim fez uma tradução que se incorporou também ao universo católico, e que só agora está sendo corrigida. O trecho da Carta aos Hebreus que diz “a fé é a substância das coisas que se esperam; prova das coisas que não se vêem” foi traduzido por “a fé é permanecer firmes naquilo que se espera, estar convencido daquilo que não se vê”. E o Papa conclui: “em si mesma esta tradução não está errada, mas não é o sentido do texto, porque o termo grego usado não tem valor subjetivo de convicção, mas valor objetivo de prova”. É valor objetivo, não sou eu que tenho uma convicção das coisas que vão acontecer. Eu tenho a prova objetiva daquilo que vai acontecer porque dada pelo fato da memória; é diferente.
A certeza diante da Grande Presença
Giussani cita Filipenses 1, 6: “Aquele que começou em vós esta boa obra há de levá-la à realização plena”. Portanto não depende de nós, não é porque eu fechei os olhos e tive uma energia positiva que eu vou para o céu. Esta é a mania do mundo de hoje: vamos gerar uma energia positiva, nos dar as mãos para circular essa energia, porque se fizermos muita força e tivermos muita convicção as coisas vão acontecer. Não é o nosso caso. A nossa esperança não se baseia numa energia pessoal, a nossa esperança se baseia na substancia, na posse de algo que nos é dado, que vem de fora, mas do qual nós temos certeza. Ele diz esperança não é “tomara”, “oxalá”, mas posse de bens que não vemos mas já existem e surgirão em plenitude. E que tipo de certeza é? Não é uma certeza científica, uma certeza de verificabilidade através de instrumentos, mas uma certeza moral. A certeza oriunda do conhecimento científico é a que vem pelas condições de verificabilidade, e a certeza de que nós falamos é a que vem do amor e da confiança, não confiança em nós mesmo, mas n’Aquele que começou em nós uma boa obra e que vai leva-la a plena realização.
A esperança, portanto, é certeza do futuro e a fé é certeza do presente. No entanto, este futuro que vem da certeza do presente faz com que em nós haja um desejo – diz Giussani. E ele trabalha muito bem esta categoria do desejo: precisamos desejar isso. Mas que desejo é este? Por que desejo? Porque desejo é liberdade. Apesar de nós termos a certeza de algo do qual já temos posse (não por nossa força, mas porque nos é dado pela promessa, chega até nós pela memória e portanto podemos aguardar, uma vez que é dado), nós desejamos. O desejo está no coração do ser humano: um desejo de plenitude, um desejo de felicidade e assim por diante. Este desejo expressa aquilo de mais nobre que o ser humano tem que é a liberdade. É preciso desejar, portanto. E é preciso que esta esperança seja fruto de um desejo que se transforma em oração, em pedido, em súplica: Mane nobiscum Domine – Fica conosco, Senhor. É o desejo que se expressa neste aguardar o futuro.
E como garantir que este desejo vá se realizar? Pela promessa – a promessa que nós conhecemos pela memória. O coração humano é constituído de exigências fundamentais ou de ideais – daí o desejo e o pedido. A oração é a expressão humilde do desejo e, portanto, é a expressão da liberdade humana que entra no jogo.
E se este desejo que temos for em vão? Nós podemos perguntar: “é possível viver assim?”. Estamos fazendo uma série de renúncias, estamos fazendo uma série de coisas porque aguardamos um bem e nos perguntamos: mas e se isso tudo for uma ilusão? E se for um sonho? Qual é o critério para saber se este ideal não é uma ilusão? Giussani responderá: é que este ideal está submetido à Grande Presença. É a partir da Grande Presença que nós temos a convicção de que o que nós aguardamos e desejamos não é um mero sonho ou mera ilusão, mas um verdadeiro ideal.
Transcrição da palestra não revista pelo autor
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