Um dos maiores cientistas que trabalharam no Brasil durante o século XX, Miguel Covian (1913-1992) nos propõem, a partir de sua própria experiência pessoal, uma tese desconcertante para os tempos atuais. Considera que Ciência e Religião são as duas faces de uma mesma realidade que se complementam mutuamente e correlacionadas permitem um conhecimento mais total e profundo dela. Para ele, conforme afirma Einstein “a Ciência sem a Religião é aleijada; a Religião sem a Ciência é cega”
O conhecimento humano não só capta os fenômenos, mas procura a razão de ser dos mesmos, o porquê. Quando (...) se procura o porquê desses fenômenos, sua causa, surge o conhecimento científico, a ciência (..). A Ciência trata de estabelecer princípios gerais que determinam e regulam as conexões recíprocas das experiências sensoriais, dos fenômenos que acontecem na unidade espaço-tempo (...); não se preocupa pelo ser das coisas, senão pelos vínculos entre suas manifestações sensoriais (fenômenos) que trata de matematizar. Diante de um objeto material confluem dois tipos de conhecimento: o conhecimento dos sentidos e o conhecimento do intelecto. Este último procura uma solução ascendente ou ontológica , estando o sensível a seu serviço. O conhecimento dos sentidos (experimental) procura uma solução descendente, sem referência ao ser, colocando-se a serviço do sensível, observável e especialmente o mensurável. (....)
Há outro tipo de conhecimento diferente dos já mencionados, característico da religião, que é o conhecimento alcançado pela Fé e que ocupa uma alta percentagem como conhecimento que orienta nossa vida prática. É um conhecimento apoiado na autoridade de quem é honesto, merece confiança e é veraz, ou seja, quem diz a verdade. Eu não preciso repetir passo a passo os experimentos de quem mereceu o Prêmio Nobel pelas suas descobertas. Eu acredito porque ele reúne minhas exigências de credibilidade. Neste sentido, nossos conhecimentos estão mais apoiados na fé que na vivência pessoal dos fatos. Eu aceito que o átomo seja formado por elétrons e um núcleo com prótons e nêutrons, que existam os quarks, etc. Se eu acredito em Deus, é muito mais lógico que acredite no que Ele me diz, do que nos próprios sábios.
As históricas discordâncias entre o saber científico experimental e o saber pela fé nasceram do erro de considerar que todo o saber humano se esgota numa forma particular de conhecer a realidade. Por conseguinte, se admitiu uma concepção univocista do saber: só o saber dos fenômenos, de origem sensorial é o único e verdadeiro saber. Em outras palavras, o que é certo para a ciência dos fenômenos, é certo também para qualquer saber humano; estende-se a toda universalidade do saber o que só vale para um setor dele. Foi na segunda metade do século XIX que esta atitude se radicalizou, negando-se toda realidade não experimentável. Tudo aquilo que a Ciência não demonstra de acordo com seus métodos está totalmente destituído de fundamentação e, por conseguinte, de credibilidade. Em virtude de suas notáveis descobertas nos campos da física, química, ciências biológicas e genéticas, que aplicadas melhoraram as condições de vida em todos seus aspectos práticos, o interesse voltou-se para o pensamento e método das ciências experimentais. Um passo a mais e nasceu com Comte a filosofia positivista, que limita o conhecer humano ao experimental. Outro passo a mais e esta filosofia se transformou em metafísica que absolutiza as realidades experimentais com pretensão de resolver todos os problemas humanos: científicos, filosóficos, sociais, éticos e até religiosos. O curioso nesta história é que os antemetafísicos criaram uma metafísica, ante a qual em atitude religiosa, se prostraram de joelhos, como corresponde fazê-lo ante uma Verdade Suprema. Pareceria que o homem de alguma forma tem que dar vazão à necessidade intrínseca que tem de adorar algo ou alguém. Quando não aceita o Deus revelado, cria seu próprio deus que se metamorfoseia com nomes diferentes: ciência, ateísmo, materialismo, etc. Por suposto que este movimento positivista tratou de terminar com o Deus da Revelação, Aqui estão as origens do conflito moderno entre Ciência e Fé.
Atualmente o cientista está aprendendo com humildade que seu tipo de conhecimento é somente um dos caminhos para conhecer a realidade e que para conhecer a realidade total é necessário transitar outros caminhos. O conhecimento experimental não esgota todo o conhecimento. É só uma janela aberta que permite ver um fragmento da realidade. É preciso abrir outras janelas da inteligência (a intuição eidética, o conhecimento por conaturalidade, ontológico, etc) para que ela possa satisfazer sua fome de “ver”. Esta atitude de prudência e humildade teve sua origem em descobertas científicas do século XX que abalaram o mito positivista, iniciaram uma crítica da própria ciência, e debilitaram a antinomia entre ciência e fé. Principalmente dois fatos levaram a esta revisão que quebrantou o princípio mecanicista-determinista: as noções de “quanta” de energia (Max Planck, 1940) e a teoria da relatividade (Einstein, 1905). O princípio de indeterminação de Heisenberg foi um duro golpe para a física clássica e para a filosofia determinista fundamentada nela. A Ciência moderna é muito cautelosa já que constatou a precariedade de seus dogmas e sua incapacidade para fazer feliz o homem. Ela não se opõe hoje a um diálogo com Deus. Outro erro dos intelectuais ao estudar as diversas avenidas para alcançar o saber é a de considerar uma mesma metodologia como válida para todos os setores do saber. Este erro já foi advertido por Santo Tomás: “É um pecado contra a inteligência querer proceder de idêntico modo em terrenos tipicamente diferentes – físico, matemático e metafísico – do saber especulativo”.
Duas verdades atingidas seguindo caminhos diferentes do saber, não se contradizem. Que matematicamente 2 x 2 = 4, ninguém o nega e que quimicamente duas moléculas de hidrogênio combinadas com uma de oxigênio formam um composto chamado água., também ninguém nega. O conflito surgiria se um matemático tratasse de demonstrar que os químicos estão errados ou vice-versa, cada um aplicando para estas diferentes realidades a metodologia específica de sua disciplina. (...)
Em verdade, Ciência e Religião são as duas faces de uma mesma realidade que se complementam mutuamente e correlacionadas permitem um conhecimento mais total e profundo dessa realidade. Repetimos que a Ciência estuda uma realidade que é captada diretamente pelos sentidos; os dados sensoriais são trabalhados pela inteligência e assim se obtém um conhecimento. Por seu lado, a Religião estuda aquela parte, ou face da realidade que não é diretamente sensorial, mas que pode ser captada pelos sentidos nas suas manifestações que são efeitos sobre os quais a inteligência se inclina para encontrar uma Causa à qual dá o nome de Deus. Ou seja, a realidade sensorial que a ciência estuda aparece para a Fé como obra criada por Alguém. Os desenhos das grutas de Altamira nos conduzem a seus autores e ninguém pensa que eles foram cachorros, urso, ou qualquer classe de animal irracional. Os desenhos que a natureza nos oferece através de suas polimorfas manifestações nos conduzem também a um Autor. Observa-se assim que a Ciência e Religião quando harmonizadas nos permitem um conhecimento integral e total da realidade que indubitavelmente enriquece o homem.
O conhecimento alcançado pela Ciência não compromete nem modifica meu comportamento, é externo a mim mesmo, não tem valor normativo. Que 2 x 2 sejam 4, me deixa indiferente, em nada modifica minha visão do mundo. Mas o conhecimento obtido pela Fé, se eu me abro, me penetra intimamente e se aceito que há um Deus, toda a minha vida se transforma e minha visão do mundo se modifica substancialmente. A Ciência não estabelece normas de vida, nem hierarquia de valores. A religião preenche esta lacuna e completa o cientista porque este apreende através da realidade visível uma face invisível que compromete sua vida por ser normativa e valorizante.
O mistério atrai tanto o cientista como o homem de Fé. O primeiro trata de desvelá-lo aprofundando na realidade por um pólo, esmiuçando-a em peças cada vez menores. A Ciência ANALISA a realidade. Na ordem física, após a descoberta do átomo veio a de seus elementos constituintes – elétrons e núcleo – e neste último, dos prótons e nêutrons. O reino sub-nuclear não é ainda muito conhecido, mas tudo indica que novas substruturas serão descobertas. Na sua dissecação da realidade se chega a um mundo formigante de partículas cada vez menores, não se podendo afirmar em determinados casos se o que se observa é matéria ou energia. Neste processo analítico da Ciência se tem alcançado os limites inferiores do real sensível. Surge uma pergunta: alcançou-se a realidade total ou simplesmente seus constitutivos materiais? Desmembrou-se o relógio em cada uma de suas peças, mas onde está o relógio? Onde está a ordem, o espírito organizador que fazia que aquelas peças tão cuidadosamente estudadas formassem um todo que é o relógio? Aqui aparece a complementação apresentada pelo conhecimento religioso que partindo desta base atomizada, quanto mais ampla melhor, nos levará ao vértice do cone do conhecimento onde tudo se unifica, adquire harmonia, significação, visão de totalidade. Não é verdade que quem domina ou conhece os mínimos elementos da matéria, conhece o Tudo, já que este não é simplesmente a soma dos elementos. Cada coisa, como o relógio, é algo mais que as partículas unitárias que a formam. Isto é, há um Espírito que unifica e dá sentido à pluralidade do Universo: a outra face da realidade, diferente, mas não oposta ao conhecimento do real alcançado pela Ciência. São duas formas complementares que harmonizam já que uma “vê” ANALITICAMENTE e outra “vê” SINTETICAMENTE. A Ciência atinge suas fronteiras no seu trabalho descendente de análise e ali humildemente deve reconhecer que o que leva ao vértice do cone, a síntese que unifica os elementos tão sabiamente estudados, corresponde a outro tipo de conhecimento que é dado pela religião. Confessou Max Planck: “A Ciência conduz até um ponto, além do qual não pode guiar. Ciência e Religião não estão em contraste, senão que se necessitam uma da outra, para completar-se na mente de todo homem que reflita com seriedade (...)”.
Quanto mais a Ciência avançar, quanto mais poderosos nos faça, mais em nós deve vibrar o espírito religioso que também se alimenta e fortalece com as descobertas científicas, pois estas limpam a face de Deus. A Ciência pela sua atitude demitificante colabora para um melhor conhecimento da realidade sobrenatural, purificando-a de tudo aquilo que a ingenuidade e o temor do homem de outras épocas atribui a um Deus da ignorância. Estes véus se estão retirando e começa a aparecer o rosto do Deus da sabedoria.
Para o homem religioso existe uma harmonia profunda entre o múltiplo, descoberto pela Ciência e a unidade característica da Religião, entre o analítico e o sintético. Para ele, Deus, a vida divina, a Providência, animam e unificam o formigante mundo das descobertas científicas. (...)
Em resumo, Ciência e Fé são autônomas e constituem duas avenidas do conhecimento que se complementam e harmonizadas permitem um conhecimento mais profundo e total da realidade. (...) Todo o dito teria só um valor acadêmico e literário se não manifestasse minha vivência dessa complementação entre Ciência e religião, que guardadas as características individuais, coincide com a de muitos colegas espalhados no mundo. Jamais encontrei oposição entre ambos tipos de conhecimento, nem limitação nenhuma, pelo contrário houve um enriquecimento mútuo. Em mim, a Ciência teria se tornado uma atividade monótona, fatigante, sem poesia nem profundidade, insuficiente para satisfaze plenamente a fome intelectual de quem procura nas coisas algo mais que o que aparece, o fenômeno. Teria sido simplesmente o pão e já sabemos que o homem precisa de algo mais para viver. Com a Religião esquivei-me do perigo do cientificismo, ampliando por conseguinte o horizonte do conhecimento, houve maior abertura (lembro-me neste instante de Chesterton: o cristão se acha limitado por seu cristianismo, como o ateu pelo seu ateísmo) e evitei fazer da Ciência um substituto da Religião. Por outra parte, minha Religião sem a Ciência teria corrido o risco de cair no hermetismo, na acomodação, na pura emotividade, na mitificação, quando não na superstição.
O verdadeiro homem de ciência tem uma natural disposição para o trabalho silencioso, meditativo. Diria que sua atitude é religiosa, ainda que negue Deus.
(Esse artigo foi originalmente publicado no Suplemento Cultural do Estado de São Paulo, em 15/7/1979, e encontra-se atualmente no Acervo de Obras de Miguel R. Covian, junto à Universidade de São Paulo, campus Ribeirão Preto.)
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