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Passos N.95, Julho 2008

DESTAQUE - CHINA

Na China, também é possível viver assim

por Riccardo Piol

Um ano após o Papa Bento XVI ter escrito uma carta aos católicos chineses (e às vésperas das Olimpíadas que têm posto Pequim no centro das atenções do mundo inteiro), o Bispo de Hong Kong conta como é a vida da Igreja em seu país. Há muito sofrimento, e grande esperança

É possível viver assim também na China? “Claro que é possível!”. O cardeal Joseph Zen parece não acreditar no que ouve, e antes de responder repete a pergunta, como que procurando se certificar de que ouviu bem: “Se na China, hoje, é possível ser cristão?”. Olha para mim por cima dos óculos, entre admirado e perplexo, depois recomeça a falar. E fiel ao título do livro-entrevista que apresentou na Feira do Livro de Turim, responde “sem diplomacia”. Porque umas das características mais conhecidas (e geralmente criticada) do arcebispo de Hong Kong é a sinceridade. Diz que “falar com franqueza é um dever importante, porque se a verdade não for conhecida, ninguém poderá ajudar essa realidade tão complexa”. E, então, sem muitos rodeios, diz aquilo que pensa sobre a China e sobre a situação atual dos doze milhões de cristãos – 1,1% da população – que lá vivem. E que ocupam um lugar especial no coração de Bento XVI, bastando citar a famosa carta de maio de 2007, o recente aceno papal às próximas Olimpíadas (“um evento de grande valor para a humanidade”), e a Oração a Nossa Senhora de Seshan, escrita para a Jornada de Oração pela Igreja na China, do último dia 24 de maio; aliás, o último ano foi marcado por referências contínuas do Papa à pátria do cardeal Zen. Com respostas vagas por parte do governo de Pequim.

Lendo os jornais, ficamos um pouco confusos. No Vaticano, a orquestra filarmônica de Pequim apresenta um concerto em homenagem ao Papa e todos falam de abertura. Em seguida, da China chegam notícias sobre a proibição imposta aos fiéis que querem ir em peregrinação aos santuários marianos do país. Como explicar sinais tão contraditórios?
É uma situação complexa. Trata-se de iniciativas diferentes, que dizem respeito a níveis diferentes. Já podemos deduzir que os atos de aproximação e abertura, como o concerto, vêm de esferas mais altas do governo chinês, provavelmente dos responsáveis pela política externa. Ao passo que as dificuldades e proibições vêm da Associação patriótica e do Escritório responsável pelos assuntos religiosos, que controlam a Igreja oficial e vigiam a clandestina: nestes anos, estão trabalhando em sentido muito negativo. Sem diminuir em nada o gesto de amizade representado pelo concerto, é preciso saber que continuam existindo muitos sinais negativos. O dia 24 de maio é dedicado a Nossa Senhora Auxiliadora e o Papa convidou todos a rezarem pela Igreja na China. Eu sou salesiano de Xangai, e por isso lancei a idéia de uma grande peregrinação da comunidade de Hong Kong ao grande santuário de Sheshan, em minha cidade natal. Imediatamente o governo nos fez saber que não viam com bons olhos a iniciativa. Então nós, para não gerar confusão, suspendemos o projeto, sem traumas. O problema, porém, é que também na China continental houve proibição a peregrinações. Um sacerdote da Igreja clandestina comunicou a seu irmão que vive em Taiwan que desde 1º de maio está sendo vigiado 24 horas por dia; uma vigilância tão estreita que certo dia os seus vigilantes o impediram de sair de casa para fazer as compras: foram eles próprios ao mercado em lugar dele! É o cúmulo da limitação da liberdade, algo que só pode ser visto como um boicote. Dizem que o governo não gostou do apelo que o Papa faz por orações pela China: “Por que rezar pela China? Por acaso temos algum problema? Aqui tudo vai bem”, é o que pensam eles.

Portanto, passado um ano da carta do Papa aos católicos chineses, a situação está difícil de mudar?
As coisas não mudaram muito, mas talvez eu esteja sendo muito impaciente. Uma situação que perdura há tanto tempo não muda, mesmo, de uma hora para outra. De qualquer forma, não temos nada mais forte do que a carta do Papa. E embora eu, entre paciência e impaciência, tenda mais para esta segunda postura, é preciso dar tempo ao tempo. Aos poucos, os resultados vão aparecer.

Mas como foi acolhida a carta?
Contrariamente ao que esperávamos, o governo não criticou de forma violenta, de imediato, a carta, cujo texto, aliás, lhe fora mandado antecipadamente. No dia da publicação, ela podia até ser baixada pela internet; só no dia seguinte isso se tornou impossível. De qualquer forma, esperávamos reações imediatas e mais fortes.

E a comunidade católica, como reagiu?
Houve um grande entusiasmo, sobretudo entre os padres mais jovens. Foram promovidos também seminários de estudo e encontros. Depois, porém, houve a reação da Associação patriótica e do Escritório para assuntos religiosos: começaram a reclamar, convocaram sessões de doutrinação para os fiéis e sacerdotes da Igreja oficial, controlada por eles. Infelizmente, não apreciaram a sinceridade e a amizade do Papa, mas talvez seria mesmo demasiado esperar que reagissem diferente. O controle do governo sobre a China é inimaginável, é estreito e total. Não falo só das nomeações dos bispos sem a aprovação de Roma, mas também da vida toda da Igreja. Por exemplo: a Conferência episcopal é convocada pelos órgãos do governo e é uma espécie de farsa. Para os bispos e sacerdotes, trata-se de uma escravidão e de uma humilhação contínuas, das quais é muito difícil escapar.

Na carta, o Papa faz um apelo em favor da unidade da Igreja chinesa. Dadas as divisões causadas e apoiadas pelo governo entre a Igreja oficial e a clandestina, essa reconciliação é possível?
A Igreja na China é una. Quase todos os bispos mais idosos não-regulares [nomeados sem a aprovação de Roma; nde] pediram a legitimação ao Papa, sabendo que estavam contra a unidade da Igreja. Quase todos os bispos estão com o Santo Padre. Neste momento, porém, é importante não fazer confusão e distinguir as duas coisas: o apelo à reconciliação é uma coisa; o problema da inserção ou não na estrutura oficial do governo é outra. Somos chamados, hoje, à reconciliação dos espíritos e dos corações, pois tanto os membros da Igreja clandestina quanto os da Igreja oficial entenderam que a Igreja é universal e que o Papa é o pai comum dessa grande família. Unir-se também sob a mesma estrutura é uma outra questão. Assim como a Igreja oficial é estreitamente controlada e o governo não parece que queira mudar a sua política religiosa, então não é o momento, para os fiéis da Igreja “subterrânea”, de virem à tona, porque isso seria renunciar à pequena liberdade que têm na clandestinidade. Significaria entregar-se ao controle do governo.

Ouvindo o senhor falar de clandestinidade, Igreja “subterrânea”, de controle, vem logo a pergunta: mas é possível ser cristão, hoje, na China?
Claro, claro que é possível! A situação não é de liberdade completa, mas é possível ser cristão, sim. Já sofremos muito e continuamos sofrendo. Mas a história da nossa Igreja é plena de testemunhas que deram a própria vida pela missão e para comunicar a fé. Tê-las diante dos olhos – as mais distantes no tempo e as mais recentes – é a alavanca das nossas comunidades. E depois há também um outro aspecto...

Qual?
Eu o disse ao Papa na primeira reunião da Comissão pela Igreja na China: “Os comunistas têm medo de Nossa Senhora de Fátima, porque ela é anticomunista. Mas eles não sabem que Nossa Senhora Auxiliadora é mais poderosa e batalhadora: levou à vitória no Lepanto e em Viena!”. Eu rezo para que ela sustente e ilumine os nossos dirigentes, para que possam entender que o nosso país precisa, além de progresso econômico, também de progresso do espírito.

HISTÓRIA DE UMA PRESENÇA
por Paolo Perego

Século VII. Alguns monges siríacos estabelecem-se em Chang An, ao longo da estrada da seda. É a primeira comunidade cristã na China, segundo os documentos disponíveis. Julgados “escandalosos” pelo seu modo de vida (sem escravos, por exemplo), foram banidos do Império no ano de 845.

Século XIII. Nas pegadas de são Francisco Xavier, morto alguns anos antes durante sua missão na Ásia oriental, o missionário jesuíta Matteo Ricci alcança a China continental, realizando o grande sonho de Xavier. No ano seguinte, Ricci imprime o Catecismo, o primeiro livro produzido por europeus na China. O método do jesuíta era o de se aprofundar no conhecimento da cultura chinesa, em especial do confucionismo, construindo uma ponte através da qual comunicava o conteúdo da verdadeira fé. Respeitado pela sua sabedoria, Ricci é considerado, na China, um mestre das ciências matemáticas e da astronomia, e traduziu para o chinês alguns textos fundamentais, como os seis primeiros livros de Euclides. Morre a 11 de maio de 1609. Os cristãos, na China, não passam então de 2.500 pessoas. Ele está sepultado no prédio onde funciona hoje uma escola para os funcionários do Partido Comunista, em Pequim.

Século XVIII. A presença cristã em Pequim conta com aproximadamente cem mil almas. Começa um período de declínio para a vida da comunidade, que culmina, em 1773, com a supressão da ordem dos jesuítas por parte de Roma, que entrega as missões aos dominicanos.

Século XIX. Logo após a derrota para os ocidentais nas guerras do ópio, a China é obrigada a permitir a evangelização. Algumas ordens de freiras fundam escolas femininas, orfanatos e hospitais. Nascem também as primeiras universidades católicas.

Século XX. No início do século, o movimento xenófobo dos Boxers desencadeia o massacre dos católicos (fala-se em trinta mil mortos).

1949. Nasce a República Popular da China; em 1951, é expulso o núncio apostólico, com a cumplicidade do arcebispo de Nanquim (excomungado em 1955), que queria uma Igreja independente de Roma. Em 1957, nasce a Associação Patriótica Católica Chinesa, diretamente controlada pelo partido. A Igreja Católica Romana entra na clandestinidade.

2000. Dia 1º de outubro, João Paulo II canoniza um grupo de 120 homens e mulheres que sofreram o martírio em diversas localidades de Tonquim (Vietnã) e da China. Entre eles, um grupo de religiosos e leigos trucidados pelos Boxers em 1900.

2007. Dia 27 de maio, Bento XVI escreve uma carta aos católicos chineses: “A solução dos problemas existentes não pode ser perseguida por meio de um permanente conflito com as legítimas autoridades civis; ao mesmo tempo, porém, não é aceitável a rendição às mesmas quando elas interferem indevidamente em matérias que se referem à fé e à disciplina da Igreja. As autoridades civis estão bem conscientes de que a Igreja, em seu ensinamento, convida os fiéis a serem bons cidadãos, colaboradores respeitosos e ativos do bem comum em seu país, mas está igualmente claro que ela pede ao Estado que garanta aos mesmos cidadãos católicos o pleno exercício da sua fé, no respeito a uma autêntica liberdade religiosa”.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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