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Passos N.95, Julho 2008

IGREJA - O ANO PAULINO | A VIDA DO APÓSTOLO

Nas pegadas de São Paulo

José Miguel García

De fariseu que odiava os cristãos em nome da Lei a "Apóstolo dos gentios". Ao longo do ano jubilar que o Papa decidiu dedicar ao mais importante missionário da história, percorreremos sua vida e viagens, para entender o que moveu seu coração

O apóstolo Paulo é, indubitavelmente, um dos personagens mais conhecidos do cristianismo primitivo, graças aos relatos dos Atos dos Apóstolos e às cartas que ele próprio escreveu às comunidades que fundara durante suas viagens missionárias. Nelas, o Apóstolo oferece algumas notícias biográficas muito interessantes (Gl 1,13-17; 1Cor 15,8-9; 2Cor 11,22; Rm 11,1; Fl 3,4-6). Graças a essas rápidas indicações, sabemos que ele era membro da tribo de Benjamin, uma das tribos que permaneceram fiéis à aliança com Javé; foi circuncidado com oito dias, segundo a Lei de Moisés; seus pais eram originários da Palestina e provavelmente falavam aramaico; pertencia ao grupo dos fariseus.
Sua ligação com o farisaísmo não implicava somente uma estrita observância da Lei e o estudo constante da mesma, mas também a separação dos outros judeus, porque fazia parte da “verdadeira comunidade de Israel”. Pertencia, pois, a uma elite religiosa. Para ter acesso a ela, o candidato devia passar por um período de provação de mais de um ano, no qual aprendia a cumprir todas as prescrições rituais exclusivas da comunidade e ficava distante de qualquer relacionamento contagioso, dado que os fariseus eram leigos que se preocupavam com a santidade ritual da vida cotidiana. Segundo eles, viver num país pagão significava perder essa santidade ou pureza: só era possível ser verdadeiro judeu em Israel. Efetivamente, nas fontes históricas não há traços ou referências à presença de escolas explicitamente farisaicas fora da Palestina, no período do segundo Templo. Por isso, se Paulo foi educado segundo os princípios farisaicos, essa educação aconteceu na Palestina; concretamente, na cidade de Jerusalém.
Que Paulo, apesar de ter nascido em Tarso, na Cilícia, era mais vinculado à terra da Palestina e a Jerusalém, pode-se deduzir não apenas do seu pertencimento ao farisaísmo, mas também porque isso é afirmado por Lucas, ao relatar o discurso pronunciado pelo Apóstolo, da escadaria da Torre Antonia, ao povo reunido na esplanada do Templo: “Eu sou um judeu, nascido em Tarso da Cilícia, mas que cresceu nesta cidade [Jerusalém], foi formado na escola de Gamaliel nas mais rígidas normas da lei paterna, cheio de zelo por Deus, como hoje sois todos vós” (At 22,3; cf. 23,6).
Depois de estudo profundo dessa afirmação de Lucas, Willem Cornelis van Unnik conclui que Paulo, embora nascido em Tarso, desde a infância cresceu em Jerusalém e recebeu sua educação inteiramente nesta cidade, chegando a ser um discípulo do fariseu Gamaliel.
Embora alguns autores modernos insistam em colocar as raízes do cristianismo de Paulo no mundo grego e o considerem um judeu helenista da diáspora, sem qualquer “contaminação” da tradição judaica palestina, a descrição que o Apóstolo faz de si mesmo como membro da seita farisaica e as notícias fornecidas por Lucas nos obrigam a colocar na Palestina o seu crescimento e a sua formação. Na mesma direção nos leva o nome do Apóstolo antes da conversão ao cristianismo: Saulo. As referências nas fontes escritas e nos achados arqueológicos indicam que esse não era um nome comum na diáspora, mas muito comum na Palestina. Aliás, a existência de escolas judaicas na diáspora não é certa; as poucas informações que temos sobre essa atividade escolástica fora do território de Israel se concentram unicamente na cidade de Alexandria.

Perseguidor da Igreja
Nos Atos dos Apóstolos, Lucas apresenta Paulo pela primeira vez por ocasião do martírio de Estêvão. Os primeiros dados que enfatiza são o seu envolvimento com a morte de Estêvão como delegado das autoridades judaicas para controlar o cumprimento legal da execução (7,58) e a sua clara aprovação à condenação de Estêvão (8,1). Pouco depois, descreve-o implicado oficialmente no cumprimento de uma sistemática perseguição aos cristãos (8,3; 9,1-2). O mesmo Lucas nos informa, em seguida, que essa perseguição não tinha como objetivo apenas a correção e o castigo dos erros dessa nova fé, mas também a pena de morte (At 22,4; 26,10). Paulo, nas cartas, reconhece que desejava destruir totalmente as comunidades cristãs (Gl 1,13; cf. também Gl 1,23; Fl 3,6; 1Cor 15,9). Seu comportamento, segundo suas próprias palavras, causou graves danos à Igreja nascente.
Na origem dessa feroz oposição – que chegou até à violência física – encontram-se o seu zelo pela Lei e a sua formação farisaica, mas, sobretudo, o escândalo da cruz. Jesus foi condenado a morrer desse assustador suplício como conseqüência de uma acusação do tribunal supremo judeu apresentada a Pilatos, prefeito da Judéia. Mas, antes de comparecer perante o tribunal romano, o sinédrio havia julgado Jesus merecedor da pena de morte por um crime contra a lei de Moisés: a blasfêmia. Esse grave pecado, que a lei divina determinava fosse punido com a morte, é atribuído a Jesus pela tradição rabínica. Basta, como exemplo, esta citação do Talmud da Babilônia: “Na vigília da Páscoa, prendeu-se Jesus o nazareno. Um porta-voz gritou durante quarenta dias referindo-se a ele: `Ele saiu para ser apedrejado porque praticou a magia e instigou e desviou Israel. Quem souber de alguma coisa que o desculpe, apareça e interceda por ele´. Mas não encontraram para ele nenhuma desculpa, e o prenderam na vigília da Páscoa. Ulla disse: Crês que ele é alguém para o qual exista alguma desculpa? Ele foi, ao invés, um mesît [alguém que promove a idolatria] e o Misericordioso disse: Tu não deves ter misericórdia e encobrir a sua culpa” (bSanh 43a).
Paulo, como fariseu zeloso, considerava Jesus um blasfemo, um transgressor da Lei, dado que se proclamava igual a Deus, atribuindo-se o poder de perdoar pecados ou declarando-se o verdadeiro intérprete da Lei mosaica; Jesus chegara, inclusive, a afirmar que o destino eterno dos homens dependia da posição que adotassem em relação a ele, de recusa ou aceitação. Seus seguidores, que admitiam essa pretensão sacrílega, eram culpados do mesmo crime. Deviam ser exterminados todos, se não se arrependessem. Mariano Herranz, exegeta espanhol, afirma: “O Jesus apresentado pelos Evangelhos, o único da realidade histórica, não está única e simplesmente diante de Deus como um homem qualquer; ele se coloca entre Deus e os homens. Perante esse Jesus, os zelosos protetores da ortodoxia judaica, quando não acolhiam com fé as suas palavras e a sua pessoa, deviam reagir como o fariseu Saulo diante daqueles que haviam acreditado nele”.
Mas a sua vida de fariseu zeloso, que chegou inclusive a perseguir a Igreja, mudou radicalmente graças à decisão de Deus, que na estrada de Damasco lhe manifesta o mistério do seu Filho e o chama a se tornar missionário entre os gentios. Aquele que Paulo considerava amaldiçoado por Deus, agora ele o vê alçado à direita de Deus, na glória divina. Jesus, portanto, manifesta-se como o verdadeiro Filho de Deus e redentor de todos os homens. E aquele que Paulo havia odiado, por causa do zelo religioso, torna-se o centro afetivo de toda a sua existência.

Paulo missionário
As três viagens missionárias de Paulo entre os anos 45 e 57 são bem conhecidas. Durante a primeira, acompanhado por Barnabé, embarca no porto de Selêucia e desce em Chipre; aí, percorre toda a ilha pregando nas sinagogas dos judeus. Embarca de novo na direção de Anatólia, atual Turquia; visita as principais cidades das regiões da Panfília, da Pisídia e da Licaônia. Faz o caminho de volta e chega ao porto de Atália, de onde se dirige para Antioquia, na Síria, que fora o ponto de partida. Segundo cálculo dos estudiosos, Paulo, nessa viagem, percorreu mais de mil quilômetros, a maior parte provavelmente a pé.
A segunda viagem também começa por Antioquia, na Síria. Paulo decide ir por terra rumo ao norte, para alcançar a estrada imperial e visitar as comunidades fundadas durante a primeira viagem. Depois de um certo tempo, chega à costa ocidental da Turquia, no porto de Trôade. Decide ir a Filipos, cidade da província macedônica. Percorre a estrada que leva para o sul da Grécia, chegando a Atenas e Corinto, onde permanece por um ano e meio. Volta para a Palestina pelo mar, parando em Éfeso; desembarca em Cesaréia, de onde parte para Antioquia a pé, concluindo, assim, a sua segunda viagem missionária. Percorreu cerca de 1.400 quilômetros.
A terceira viagem segue o mesmo itinerário da segunda: por terra alcança a estrada imperial que atravessava a Anatólia e passa para o território da Frígia e da Galácia, visitando as comunidades fundadas durante as duas viagens anteriores. Vai depois a Éfeso, capital da província romana da Ásia, e aí se estabelece por mais de dois anos. Depois, costeando o mar Egeu, chega à Macedônia e à Acaia, onde se fixa por três meses. Durante esse período, por causa da coleta em favor dos necessitados de Jerusalém e da Judéia, visita novamente Filipos e Corinto. Informado das maquinações que os judeus estão tramando contra ele, decide alterar seu programa e volta imediatamente para a Síria. De Filipos embarca para Trôade, onde fica por uma semana. Retorna por mar a Cesaréia. Daí sobe a Jerusalém, onde a comunidade cristã o recebe festivamente. O trajeto dessa terceira viagem supera os 1.700 quilômetros.
É fácil imaginar que essas viagens foram realizadas em condições duras e perigosas. É o que diz o próprio Paulo na segunda carta aos Coríntios: “... três vezes fui flagelado; uma vez, apedrejado; três vezes naufraguei; passei um dia e uma noite vagando em alto-mar. Fiz numerosas viagens, enfrentei perigos nos rios, perigos dos ladrões, perigos dos meus conterrâneos, perigos dos pagãos, perigos na cidade, perigos no deserto, perigos no mar, perigos da parte de falsos irmãos. Fadigas e duros trabalhos, inúmeras vigílias, fome e sede, vários jejuns, frio e nudez. E, mais do que tudo isso, a minha preocupação diária com todas as Igrejas” (11,25-28).
Ainda graças ao seu testemunho, sabemos que para pregar escolhia as sinagogas das principais cidades. Escolher importantes centros políticos e comerciais facilitava a difusão do cristianismo pelos povoados vizinhos, que mantinham estreito contato com essas cidades. Além disso, as comunidades cristãs que havia fundado demonstram, desde o início, serem verdadeiramente missionárias. Basta recordar que as Igrejas de Colossos, Laodicéia e Hierápolis foram fundadas, enquanto o Apóstolo ainda estava vivo, por alguns membros das comunidades paulinas. “Crer no Evangelho significa difundir o Evangelho. Parece que o Apóstolo dava como evidente, como um fato absolutamente natural, que cada convertido à fé em Jesus Cristo nascia contextualmente – como acontecera com ele próprio no caminho de Damasco – como crente e como apóstolo”, sublinha Mariano Herranz.
Certamente uma das características do cristianismo que mais exerciam atração sobre as pessoas era a fraternidade entre seus membros: homens de nível social, raça e cultura diferentes, amavam-se e ajudavam-se mutuamente. Entre os cristãos existia um efetivo e concreto senso de caridade, tanto que desde o início instituiu-se uma ajuda sistemática aos marginalizados sociais, aos mais necessitados, como os órfãos e as viúvas, e também os peregrinos e os viajantes. Um exemplo disso era a ajuda sistemática promovida pelas comunidades eclesiais em favor dos cristãos da Judéia (Gl 2,10; 1Cor 16,1-2; 2Cor 8-9).
Essa caridade mútua demonstra também a unidade vivida pelos cristãos, gerada pelo batismo. Em Gl 3,27-28, Paulo fala dessa unidade utilizando-se das categorias que em seu tempo eram usadas para distinguir os homens: “Pois todos os que fostes batizados em Cristo vos revestistes de Cristo. Não há mais judeu nem grego; não há mais escravo nem livre; não há mais homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus”. A uma sociedade que promovia sistematicamente a divisão, Paulo anuncia a grande novidade introduzida por Cristo na vida dos homens: faz de todos os homens um único ser. Assim, põe fim à separação que os judeus estabeleciam em relação aos pagãos, faz desaparecer o desprezo do homem livre romano pelo escravo, e anula a marginalização que o homem impunha à mulher. Essa experiência de uma humanidade nova, determinada pela caridade e pela compaixão, que correspondia aos anseios mais profundos do coração, exercia um grande fascínio sobre as pessoas mais simples.

A última viagem
Paulo é levado como prisioneiro a Roma; essa viagem é narrada nos dois últimos capítulos dos Atos (27-28). Lucas relata o caso com muita vivacidade, com muitos detalhes, pois estava entre os que acompanharam o Apóstolo. Partiram nos últimos meses do ano 60. A embarcação navegou de Cesaréia até o porto de Sidônia, onde fizeram escala; saindo de lá, margearam a ilha de Chipre, a Cilícia e a Panfília, depois chegaram a Mira, na Lícia, onde trocaram de embarcação. Navegaram lentamente da costa de Cnide até a ilha de Creta, onde atracaram numa localidade chamada Bons Portos. O inverno estava próximo e a navegação tornava-se perigosa, e por isso decidiram buscar um porto mais adequado para passar o inverno; escolheram um outro porto de Creta, chamado Fênix. Todavia, uma violenta tempestade arrastou-os para o alto-mar. Durante quatorze dias andaram à deriva, depois a tempestade levou-os até a ilha de Malta. Acolhidos com grande humanidade pelos habitantes da ilha, ali permaneceram por três meses. No início da primavera do ano 61, embarcaram num navio que vinha de Alexandria e aportaram em Siracusa, cidade siciliana, onde permaneceram durante três dias. Depois de passarem por Reggio, chegaram a Putéoli, onde foram acolhidos por alguns irmãos, que lhes rogaram que ficassem com eles por uma semana. Dali voltaram para Roma, atravessando o Foro de Ápio e Três Tabernas.
Na capital do Império, foi concedido a Paulo alugar uma casa, onde viveu por dois anos sob custódia militar, mas livre para acolher todos os que quisessem encontrá-lo e para anunciar a fé no Senhor Jesus. Muito provavelmente no ano 63, obteve de novo a liberdade e pôde realizar outras viagens. Segundo uma antiga tradição, teve a oportunidade de realizar o seu grande desejo de ir à Espanha (cf. Rm 15,28).

Fora dos muros
Depois de um segundo período de detenção, Paulo foi decapitado em Roma, na via Laurentina, num lugar chamado Aquas Salvias, em 67. O túmulo de Paulo encontra-se na basílica de São Paulo fora dos Muros. No início, os cristãos construíram um pequeno monumento sepulcral, ao qual Gaio também se refere. Analogamente ao que fez com o sepulcro de Pedro, Constantino ordenou a construção no local de uma basílica, um pouco menor, no início do século IV. Mas no final desse mesmo século os imperadores Valentiniano II, Teodósio e Arcádio a ampliaram e modificaram a sua posição original. Por ocasião da restauração da basílica, efetuada depois de um terrível incêndio (26 de julho de 1823), descobriu-se que sob a basílica havia um cemitério, formado provavelmente entre os séculos I e IV. Portanto, a veneração daquele lugar já existia pouco depois dos acontecimentos que o monumento recordava.

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Há um ano, durante a festa de São Pedro e São Paulo na Basílica de São Paulo fora dos Muros, em Roma, Bento XVI anunciou a celebração de um Ano Paulino, para comemorar, de 28 de junho de 2008 a 29 de junho de 2009, o segundo milênio do nascimento do Apóstolo dos gentios, que contribuiu de maneira extraordinária para o anúncio e difusão do cristianismo nos primórdios de sua história. O Papa sublinhou o valor ecumênico da celebração, lembrando que Paulo "doou-se totalmente pela unidade e concórdia de todos os cristãos", mas também afirmou que a Igreja precisa, hoje como há dois mil anos, de "apóstolos prontos a sacrificar a si mesmos..., de testemunhas e de mártires como São Paulo". As recentes escavações promovidas pelo Cardeal Andrea Cordero Lanza, de Montezemolo, permitiram tornar visível uma parte do grande sarcófago de mármore, conservado há vinte séculos sob o altar papal de São Paulo fora dos Muros, que guarda os restos do Apóstolo. "Cooptado" ao colégio dos apóstolos pelo próprio Jesus, que apareceu a ele no caminho de Damasco, depois de ter sido um perseguidor da primeira comunidade cristã Paulo tornou-se o maior missionário de todos os tempos, aquele que contribuiu para levar o anúncio evangélico ao mundo pagão, realizando a primeira fundamental inculturação do Evangelho na história. E, nos últimos decênios, multiplicaram-se os livros que buscam apresentar Paulo como o verdadeiro "inventor" do cristianismo: transformou Jesus de "Messias político falido" em Messias exclusivamente espiritual e salvador universal. Um tendência da moda, que casa bem com uma idéia de cristianismo reduzido a pura sofia espiritual avulsa da gratuita historicidade da encarnação, morte e ressurreição de Jesus. O Ano Paulino também é uma ocasião para fazer justiça a essa posição.
Andrea Tornielli

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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