Encontro com os professores de Comunhão e Libertação. Milão, 15 de março de 2009
Franco Nembrini.Bom dia a todos. Agradeço-lhes por seus testemunhos e pelas contribuições que nos enviaram por escrito – e foram muitas –, para dar corpo e carne ao nosso trabalho de hoje.
Quero cumprimentar também a todos os quase dois mil professores reunidos em diversos pontos da Itália e aos que se encontram em quarenta outros países do mundo, que nos acompanham por videoconferência ou nos verão em gravação.
Pela grande quantidade de contribuições escritas, foi, como sempre, embaraçoso escolher aquelas que nos pareceram mais capazes de sintetizar uma história, uma impressão, um juízo, um trabalho, uma preocupação, uma pergunta comum. Como eu dizia a Julián nestes dias, enquanto preparávamos juntos o dia e hoje, fiquei muito impressionado com a riqueza dessas contribuições, pois é evidente que foi percorrido um caminho. Começamos nosso percurso com Carrón em 14 de outubro de 2007 (Ver Educar: uma comunicação de si, ou seja, da própria maneira de se relacionar com a realidade, encarte de Passos nº 89, dez/2007) com um mal-estar, um peso, uma dificuldade até para encontrar as razões do nosso trabalho e da nossa profissão, da nossa tentativa de presença dentro da escola. Depois de um ano e meio, tenho a impressão de que posso dizer que muitos de nós – e nem sempre os mais “graduados” – levaram a sério o convite que padre Carrón nos fez, o desafio que nos lançou quando disse: “Será que ainda há entre nós alguém disposto a verificar a fé, a verificar sua relação com Cristo?” A impressão que tenho é de que posso dizer que, justamente nas situações mais urgentes, que abriram uma ferida, que despertaram uma dor, uma experiência de dor tão generalizada, tão imponente – quanta dor encontramos, quanta dor carregamos, quanta dor nossos amigos e colegas, nossos irmãos homens carregam! –, enfim, quando vêm à tona e se impõem essa dor e essa dificuldade, aparece também um testemunho cheio de certeza, de segurança, como nos mostrarão os primeiros depoimentos desta manhã, que vão falar de uma fé e de uma esperança reencontradas. Ou, então, diante da contestação, da confusão gerada, por exemplo, pela questão da Reforma Gelmini (Reforma do sistema escolar decretada em setembro de 2008 pelo Ministério da Educação, Universidade e Pesquisa italiano, que tem a ministra Mariastella Gelmini como titular), ou diante do caso da Eluana (Eluana Englaro (1970-2009), mulher italiana que permaneceu em coma durante dezessete anos, desde um acidente automobilístico. Com autorização da justiça italiana, sua alimentação e cuidados médicos foram suspensos em fevereiro de 2009, o que levou a sua morte), que espetáculo, que maravilha, que testemunhos, que coragem e que vontade de estarmos presentes para dizer a verdade, para dar testemunho da verdade, de toda a verdade, da verdade inteira, seja em nossas salas de aula, seja com nossos colegas; seja com nossos amigos, seja – eu quase diria – no meio da rua, com um panfleto na mão!
O que me parece, então, é que o primeiro passo desta manhã, até para nos confortarmos uns aos outros, pode e deve ser testemunhar isso. Eu não sei vocês, mas eu vim para cá mais uma vez com uma ferida aberta. No caminho para cá, eu vinha pensando: nós não conseguimos nos encontrar para fazer um trabalho como o desta manhã sem ter gravada no olhar e no coração a tragédia de Winnenden (11 de março de 2009), aquela escola em que todos aqueles jovens foram assassinados por um aluno, mas de onde também um amigo nosso, Thomas, que eu não conheço, nos escreveu algumas horas depois, com uma simplicidade que desarma: “Qualquer resposta que déssemos formalmente seria ideológica, não seria adequada. Quero uma ajuda de vocês. Thomas”. Repasso esse pedido a Julián, pois, para mim, o trabalho desta manhã tem de partir desta ferida: o que e como sustentará, sustenta já agora, a minha esperança e, portanto, a esperança de cada um de vocês, e por conseguinte das pessoas que vivem em Winnenden, dos nossos colegas, a esperança do mundo? Em que se apoia, o que pode manter de pé a esperança dos homens, em primeiro lugar a minha, mas também a dos meus amigos?
Anna. Meu nome é Anna, de Rímini. Há dois meses, morreu um aluno meu de dezenove anos; eu queria contar a vocês esse fato que mudou e ainda está mudando a minha vida.
O que aconteceu foi uma coisa especialmente dolorosa. Esse meu aluno sofria de uma séria distrofia muscular, mas a parte superior do seu corpo funcionava muito bem; na verdade, ele morreu em decorrência de uma pneumonia boba, por um descuido dos médicos. Mas o que tornou a dor da família ainda mais intensa foi que três meses antes a irmã dele, de trinta anos, tinha-se suicidado, deixando dois filhos. Eu me vi literalmente invadida por essa dor aparentemente injusta, sem fim e sem esperança. Quando encontrei seus pais pela primeira vez, eles me disseram que, se antes rezavam a Deus, a partir de agora não fariam mais isso, porque Deus, se existe, é mau e não deveria permitir uma coisa como essa. Para mim, ao contrário, quando esse fato aconteceu, foi como se o Mistério tivesse vindo me encontrar pessoalmente e me perguntasse: “Muito bem, e agora, no que é que você deposita a sua esperança?” Foi como se eu fosse Isabel e me visse diante de Maria. Para o que é que eu olhava: para a semente escondida no ventre daquela mulher ou para outra coisa? Então voltei a me encontrar com os pais do meu aluno. Eu não tinha nada para dizer a eles que pudesse consolá-los de alguma forma, nenhum discurso, nenhuma frase feita, nenhuma explicação minimamente lógica: fiquei com eles, e pronto. Mas que segurança inesperada, que intensidade surpreendente, que esperança cresceu em mim nesse meio-tempo! Foi só isto, nada mais do que isto, que me permitiu não fugir: não era em mim, mas n’Ele, que eu estava completamente apoiada. Nada mais poderia ter-me sustentado. Foi o início de uma relação com os pais do meu aluno, que – graças a Deus – continua até hoje; foi encontrar em mim uma força que não era minha e fazer a experiência de que, diante da dor e das contradições da vida, o cristão não foge, mas fica, fica porque se apoia n’Ele, que o sustenta.
Na escola, eu também não quis que aquilo passasse sem ser julgado, que Patrizio se fosse sem que todos nós nos sentíssemos interpelados; assim, ainda sem ter discursos que dessem conta da situação, mesmo em meio ao desânimo mais generalizado, eu me mexi: falei com todos os membros do conselho de classe e com os meus colegas e redigimos um panfleto em que dizíamos que o destino de Patrizio não era o nada, mas tinha-se cumprido nos braços do Mistério. Depois, escrevi também uma carta, que entreguei a todo o mundo e afixei na sala dos professores. Esses gestos simples foram instrumento de coisas grandes. Por vontade dos pais, eu li a carta no enterro e, também por vontade deles, ela foi publicada nos jornais no dia seguinte. Em alguns casos, essa foi a oportunidade para reatar relações com alguns colegas que não falavam comigo havia muito tempo, e vieram me agradecer. Como é verdade que todos esperam o que nós, por graça, encontramos! Um colega usou a carta no Dia da Memória (Data instituída pelo parlamento italiano para recordar os judeus vitimados pelo nazismo na Segunda Guerra Mundial. É celebrada a 27 de janeiro), para ajudar a entender o que era realmente a memória; outros a usaram em sala de aula, como ponto de partida para uma discussão e um juízo sobre a questão da Eluana.
Para terminar, quero contar a vocês dois fatos muito simples, breves, que me impressionaram de modo particular. Um dia, quando fui visitar a mãe do Patrizio, levei a ela um pequeno presente, um vasinho com uma planta; ela, então, pensando que a plantinha fosse para o Patrizio, pôs o vaso diante da foto dele. Mas eu lhe disse: “Não, Isella, a plantinha não é pra ele, é pra você”. Ela parou, olhou bem para mim e me fez um carinho no rosto, dizendo: “Uma pessoa como você, eu nunca tinha encontrado na vida”. Na missa de sétimo dia, eu a acompanhei e me sentei perto dela. Quando as irmãs e os parentes mais próximos chegaram, eu dei a entender que ia me levantar para deixar o lugar para eles, mas ela me disse: “Não, eu quero você aqui do meu lado”. Nessas duas ocasiões, foi como se um calafrio me atravessasse. Em nenhum momento eu disse a mim mesma: “Muito bem, garota, quem sabe agora você até a converte”. A única coisa que eu pensei foi: “A quem é que alguém pode dizer: ‘Quero você aqui do meu lado’, ou: ‘Uma pessoa assim, eu nunca tinha encontrado na vida’? A quem é que nós podemos dizer isso, a não ser a Jesus?”
Enfim, em tudo isso foi crescendo em mim uma exigência d’Ele e, ao mesmo tempo, a surpresa por vê-Lo agindo. Como os pais do meu aluno, eu também preciso d’Ele, eu também O quero por perto, também digo a Ele: “Alguém como você, eu nunca tinha encontrado na vida”. Hoje, quando entro naquela casa tão marcada pelo sofrimento, me surpreendo buscando e reconhecendo Jesus, e digo comigo: “E hoje, como será que Você vai ser capaz de consolá-los! Como será que vai me fazer ver hoje que em Você eu posso esperar tudo!”
Julián Carrón.Só isso já seria o suficiente, e poderíamos ir embora para casa; só para ouvir isso, já teria sido útil vir até aqui. É como tocar com as mãos o que foi que nos aconteceu, o que é que acontece na nossa vida e de que é que realmente precisamos. Pois, quando o Mistério nos desafia além da nossa medida, como pudemos ver, a primeira tentação é dizer: “Deus é mau”.
O que é que permite que essa não seja a última palavra, e que não sejamos os primeiros a serem derrotados diante disso? Uma esperança, que, com o tempo, foi crescendo nela. É isso que nos permite não fugir, é isso que nos permite encarar tudo e, misteriosamente, começar a estabelecer uma relação com tudo: primeiro com os pais, em seguida com os colegas. É disso, simplesmente, que precisamos para recomeçar, pois a nossa vida também é atingida pelo mal, como a de todo o mundo.
Agradeço à Anna por ter compartilhado tudo isso conosco, pois nós temos de ver como as coisas acontecem; afinal, tudo se torna claro, a realidade se faz transparente, na experiência, não nos pensamentos. Vejam só quantas vezes nós ficamos preocupados em como fazer, em como não fazer, em como começar, em como não começar... Mas basta olhar para o que acontece. Todos os nossos pensamentos são nada, quando vemos reacontecer a esperança que foi suscitada em nós. E quem é que pode fazer isso? A quem é que nós podemos dizer: “Uma pessoa assim, eu nunca tinha encontrado na vida”? A quem, senão a Jesus? Isto é a fé: esse reconhecimento de Cristo presente (nós pudemos ver isso, em relação ao caso da Eluana). O que leva a mudar essa mulher que, diante da dor imensa que sofreu, começou afirmando que Deus é mau e acaba por dizer: “Quero você aqui do meu lado”? O que é educar? O que é que introduz de verdade na realidade, a não ser um fato presente, uma presença que elimina a imagem de Deus que nós construímos abstratamente, o fato de uma presença a quem a pessoa diz: “Quero você aqui do meu lado”? Assim, o Mistério se introduz justamente ali, no meio da dor mais intensa, fica tão próximo, curva-se tanto à nossa necessidade, para nos fazer descobrir Seu rosto verdadeiro; um rosto que nos permite – na carne de alguém – ser introduzidos na natureza verdadeira do Mistério, que não corresponde à nossa imagem ou ao nosso medo. Sem essa contemporaneidade de Cristo – que não é abstrato, que não fica só nos nossos pensamentos, nos nossos sentimentos -, que nos toca e se torna próximo de nós dessa maneira, nós, como todo o mundo, ficaríamos sem chão. E isso nos mostra, meu amigos, o que significa educar: não é um discurso, não é uma frase, não é uma explicação, pois – como diz o Papa – a natureza do cristianismo é que os conceitos se tornaram carne e sangue, e com isso se abre um caminho. O que é que uma coisa como essa nos pede que mudemos? A nossa concepção do método. Misteriosamente, tudo se torna uma coisa só.
O que é que, disso, serve para todo o mundo, para que não paremos apenas na aparência das coisas, mas sejamos introduzidos no Mistério, no sentido, no significado de uma dor assim? Não é verdade que isso não tem nada a ver com a escola! Como vocês podem ver, tem a ver sim, pois, quando nós ensinamos alguma coisa, queremos ser capazes de introduzir à realidade, até à mais tenebrosa, que é a dor. Mas, se, quando ensinamos matemática ou literatura ou história, não temos isso, o que estamos ensinando? Fica evidente a nossa parcialidade quando, diante dessas coisas, não temos nada a dizer: é aí que verificamos que a nossa grande capacidade em certas matérias não é suficiente para introduzir à totalidade da realidade.
Barbara.Uma aluna minha do segundo ano do ensino médio, que tentou fugir de casa há duas semanas, decidiu sair da nossa escola e se matricular numa outra. Uma dia, ela foi até a escola com a mãe, mas, em vez de entrar, ficou esperando afastada; nós, que logo ficamos sabendo o que tinha acontecido, vivemos algumas horas de expectativa e receio (dá para imaginar a angústia dos pais). O pai e a mãe, depois de encontrá-la, nos contaram que essa menina tinha projetado toda a fuga e chegara a deixar um bilhete: “Odeio a escola de todo o meu coração”. Depois de alguns dias, em resposta a um pedido explícito dessa menina, tomamos a decisão, com os pais dela, de mudá-la de escola.
Esse fato me tocou profundamente (já que eu era sua professora de Italiano) e logo começou em mim um pouco aquela ciranda de perguntas, do tipo: em que foi que erramos, por que não a compreendemos, etc. Além de tudo, era uma menina com quem até tínhamos tido uma grande atenção, mas a realidade que se manifestava aos poucos era que nós podemos fazer de tudo pelos jovens e, ao mesmo tempo, ficar longe deles de uma forma abissal. Eu me escandalizei com a minha posição, pois descobri que não era capaz de olhar de jeito nenhum para esse fato, diante do qual a minha questão, em primeiro lugar, era me defender: eu tentava esclarecer, a mim e aos outros (aos meus colegas, ao diretor, aos próprios alunos), que tinha feito o possível, que não podiam me recriminar por nada; ou, comigo mesma, eu procurava, quase de um modo obsessivo, reviver cada instante, cada momento em que o mal-estar daquela menina pudesse ter ficado evidente. O mais impressionante para mim foi que, quanto mais analisava a situação e me deixava levar por esses sentimentos oscilantes, mais a imagem dessa menina sumia, evaporava; ou seja, eu estava mais interessada em mim mesma do que nela, queria muito mais ter certeza de que a minha posição tinha sido correta, para que eu me mantivesse irrepreensível. E ela, de certa forma, ia desaparecendo.
Fiquei vários dias nessa situação e, a certa altura, foi uma experiência de libertação para mim voltar a ler as suas palavras, o que você disse recentemente sobre o caso da Eluana: “Precisaríamos de um carinho do Nazareno”. Pois eu me dei conta de que é realmente deparar com alguém que testemunha uma humanidade diferente que me liberta dessa minha defesa a qualquer custo; ou seja, só o testemunho de alguém mudado, diferente, pode me libertar da redução em que eu sempre caio. Assim, eu me peguei desejando, por exemplo, que a relação com essa minha aluna não acabasse assim, ou seja, voltei a esperar que aquilo pudesse continuar e que ela pudesse encontrar o mesmo olhar que me faz viver. Nesse meio-tempo, na noite passada, fui à Companhia dos Cavaleiros, que é o nosso Graal (Iniciativa que reúne alunos do ensino médio ligados à experiência de Comunhão e Libertação em várias cidades da Itália, inspirada na companhia formada pelos cavaleiros medievais empenhados na busca do Santo Graal), e a encontrei ali, porque tinha sido convidada por ex-colegas dela: para mim, isso foi uma resposta.
Enfim, nessa situação se abre totalmente para mim a pergunta a respeito do que significa aprender com as coisas que acontecem, pois fiquei muito impressionada com algo que você disse recentemente: que a nossa contribuição original está em estarmos abertos a aprender com o que acontece. Eu gostaria de entender mais essa questão, pois normalmente oscilo entre duas posições: ou entro em crise, pois do jeito que eu sou eu não me suporto, ou analiso as faltas dos outros, por exemplo as das famílias (que é um hobby muito frequente entre os professores), como se os jovens fossem o resultado exclusivo de seus pais. Mas essas posições, evidentemente, me deixam insatisfeita e triste. Por isso, eu gostaria de lhe pedir um aprofundamento sobre esse tema.
Paola. Há cinco anos, depois de vinte anos de casamento, dois filhos naturais e um adotado, vivi uma crise muito séria com meu marido, e de repente parecia que tudo estava se desmanchando. Mas, no meio disso tudo, em vez de pensar em que estratégias deveria adotar para solucionar essa situação, me peguei percebendo que aquela crise punha a nu a minha vida de um jeito que nunca me havia acontecido antes. Sempre fui muito ativa, topo participar de qualquer iniciativa, estou com GS, a Diesse, participo do coral, adotei uma criança, acompanho as Famílias para a Acolhida; a qualquer coisa que o Movimento propusesse, eu procurava responder [Referência a várias iniciativas e experiências ligadas ao movimento de Comunhão e Libertação: GS (Gioventù Studentesca), como é chamada na Itália a comunidade de alunos do ensino médio; Diesse (Didattica e Innovazione Scolastica), associação dedicada à formação de professores; Associação Famílias para a Acolhida, rede de famílias presente em vários países do mundo que se apoiam em experiências de adoção e guarda de crianças e adolescentes]. De repente, diante desse fato, me dei conta de que todo o meu fazer não tinha significado nenhum, que Cristo não estava ali, que não tinha nada a ver com a minha vida.
Depois de trinta anos de Movimento, acho que é bem fácil compreender o desconforto, a angústia e a tristeza que eu senti. Escrevi a Dom Gius, pois não sabia a quem mais me dirigir, para contar a ele dessa dor que estava acabando comigo. Comecei a rezar como nunca tinha feito, entregando os meus dias, minuto a minuto, ao Senhor, a Nossa Senhora, ao Espírito Santo, pois “só o Espírito sabe o que convém pedir”. Eu não tinha nenhuma exigência, a não ser que o Senhor acolhesse a minha dor e indicasse o nosso destino, qualquer que fosse a implicação disso. Para minha grande surpresa, Dom Gius, que estava doente, mandou me telefonarem para que eu recebesse sua mensagem: “A sua tarefa é ser esposa e mãe. O Senhor lhe pede que o ame na sua vocação, não que faça coisas”. Que comoção e que ternura, quando recebi esse telefonema de Dom Gius, que pensava em mim, que me havia abraçado até esse ponto!
Deixei de lado todos os compromissos, comecei a me dedicar à minha casa e à minha família. O relacionamento com o meu marido começou a se recompor quase por milagre. Continuei a rezar. Foi uma descoberta me entregar a Jesus e perceber que, dia após dia, era Ele quem juntava os meus cacos, um de cada vez, com paciência: a relação com o meu marido, com os meus filhos, mas, em primeiro lugar, comigo mesma! É assim que eu entendo a frase “afeição a mim mesmo sem ter uma imagem de como se realizará o meu desejo”. Estes cinco anos foram difíceis, mas a presença boa de Jesus os tornou cheios de letícia. A oração, dar espaço para as coisas que aconteciam sem atrelá-las a um projeto meu, a presença dos meus amigos mais velhos da Fraternidade, tudo isso foi e é sinal do único desejo que eu tinha: de que Jesus me abraçasse.
Dom Gius fez seu milagre sobre a minha família e as coisas tomaram um caminho inesperado: uma amiga me chamou para participar dos primeiros passos da CdO Sport (Divisão da Companhia das Obras dedicada a indivíduos e entidades ligados ao esporte; a Companhia das Obras é uma associação voltada à promoção e proteção da dignidade da pessoa, do trabalho e das relações sociais, de acordo com a doutrina social da Igreja Católica). Entre outras pessoas, conheci o padre Eugenio, com quem nasceu uma relação de grande amizade, importante para julgar a minha vida de todos os dias: eu não procurei por isso, me foi dado. Continuo a lecionar, e o único outro compromisso que mantenho são as aulas de reforço que eu dou como “caritativa”, mas hoje vou à escola completamente mudada: já não tenho projetos sobre mim mesma, sobre meus alunos, sobre como envolvê-los, sobre as estratégias para trazê-los para o Movimento – essa é uma coisa que eu nunca consegui –, mas, olhando para os meus alunos com a mesma ternura com que fui olhada, entregando-os a Jesus – pois eu não sou capaz de ficar com eles, a não ser com o coração cheio de gratidão pela forma como sou amada, pela superabundância de graça que invadiu a nossa vida –, este ano aconteceu o milagre.
Provocada por uma amiga, que, depois de ter lido “A escuridão e o isqueiro” (encontro de padre Julián Carrón com os professores de Comunhão e Libertação; Milão, 18 de maio de 2008), me telefonou para me dizer que, enquanto lia, pensava em mim, lembrando o que eu lhe contava dos meus alunos, eu também retomei esse texto. Como estava distante daquela consciência! Só que aqueles relacionamentos existiam, aqueles jovens estavam lá todos os dias e precisavam ser levados a sério. Mas era claro que não seria uma estratégia que iria mudar a mim e a eles, e eu não parei de pedir ao Senhor que estivesse presente, para mim e para os meus alunos. Há vinte dias, um aluno me parou depois de uma aula e me fuzilou com uma série de perguntas sobre o Movimento, e depois me disse: “A senhora é feliz como outras pessoas de CL que eu conheci. Eu quero ser feliz assim”. Dois dias depois, começamos a Escola de Comunidade com alguns colegas dele; depois, lemos alguns textos sobre a Eluana, criamos um grupo de apoio aos estudos com os garotos da classe dele e da outra sala em que eu dou aula, um momento para dizermos uns aos outros – como disse um dos meninos – “o que o nosso coração grita”. Há quinze dias, levei a classe toda para a colação de grau de um colega no conservatório, e os meninos, principalmente os que não entendem de música, me agradeceram por eu lhes dar a oportunidade de participar de um gesto de uma beleza que eles não poderiam imaginar. Os fatos vão-se sucedendo dia após dia, com uma evidência inesperada. Minha disciplina é Educação Física. Sempre pensei que era a matéria que me impedia de chegar até os jovens, pois eu não tinha conteúdos fortes para propor. Hoje já não penso em mudar de estratégia na didática; quem mudou fui eu: eu é que tenho prazer em dar aulas, isso sim.
Concluo com a frase da assembleia que mais corresponde a esta minha experiência: “Que método, que ternura do Mistério, que se curva até nós, se inclina para nós para nos arrebatar ao conhecimento d’Ele por intermédio das coisas que faz acontecer na realidade”.
Nembrini.Obrigado, Barbara e Paola. Julián, esses dois episódios me parecem exemplificar bem uma postura que, mesmo partindo de algo negativo, mesmo sendo a tomada de consciência de um fracasso – no exemplo contado pela Barbara –, e, portanto, com todas as perguntas e o drama que são consequência disso, lentamente faz amadurecer uma certeza a respeito da própria tarefa e da própria consistência.
Quero acrescentar uma consideração, uma outra pergunta, que me parece ter muito a ver com o que você disse antes e com a pergunta feita pela Barbara. Muitos dos depoimentos de vocês falam de uma beleza que se impõe. É uma avalanche de bem, de verdade, de iniciativas, mas também de certeza. Muitos desses relatos, é verdade, falam de um milagre presente, e não como visionários; mas é como se, no fundo, sofressem de uma incerteza. No seguinte sentido: tendo constatado o milagre, tendo constatado a experiência de bem e de verdade que se impõe à vida nos fatos, nas coisas, é como se a pessoa tivesse medo de perder tudo isso. Muitos e muitos desses relatos terminam com uma mesma pergunta: como é que isso pode continuar? O que devemos fazer para que essa coisa continue? Como não traí-la? Como – para usar o chamado de atenção que você nos fez – não nos desviarmos do método? É quase como se, na manhã seguinte, pudéssemos nos levantar e a evidência da experiência que fizemos evaporasse, pudesse desaparecer no ar.
Tendo constatado uma beleza, tendo constatado uma verdade, tendo visto o milagre, como é que podemos continuar a estar de maneira correta, leal, diante dessa Presença que se impõe na vida?
Até porque na realidade é fácil, como dizem alguns depoimentos, usar as palavras que dizemos para trair o método. Podemos até pôr palavras na boca do Carrón, quando nos justificamos para um amigo...
Carrón. ...da série “foi o Carrón que me disse”...
Nembrini.Isso. Chega um amigo e diz a você: “Na sua escola tem um grupinho que conhecemos há pouco tempo, eles começaram a sair juntos e talvez gostassem de fazer Escola de Comunidade: dê uma olhadinha neles, dê uma mão para eles”. E você responde: “Mas o Carrón disse que o problema somos nós, não os jovens”. O que é verdade: nesse caso, evidentemente, o problema é quem diz isso! Vocês entendem como podemos usar até as palavras que o Carrón nos diz...
Carrón. ...para justificar o que já decidimos! Para isso, nem é preciso me citar: é uma coisa que vocês podem fazer sem me pedir licença... Falemos claramente.
Se a pessoa faz essa pergunta (“como isso continua?”), se tem medo de perdê-lo, diante – como dizia agora o Franco – de toda a beleza imponente que encontra à sua frente, isso significa que nós não entendemos o que é a beleza que temos à nossa frente, e por isso o nosso medo começa no instante em que interrompemos o percurso de conhecimento a que essa beleza dá início. Nossa pergunta aparece justamente porque já interrompemos esse percurso de conhecimento! E o que é que nos mostra que o interrompemos? O fato de termos medo de perder tudo isso. Isso significa que não conhecemos, não compreendemos que essa beleza que encontramos é tão diferente de tudo o que temos na cabeça, a ponto de existir, e que, se existe, não pode desaparecer.
Muitas vezes, nós não reconhecemos todo o alcance cognoscitivo dos fatos que encontramos à nossa frente; continuamos sempre na aparência. Em que sentido? Que tipo de pessoa pode ter medo de que essa beleza não continue, de que desapareça? A pessoa que não chegou à fé. Para dizer sinteticamente: a pessoa que não se dá conta de que aquilo de que estamos falando é o sinal da presença de Cristo, ou seja, o sinal mais forte de que Ele está presente, de que o Mistério está agindo, ou, dito com outras palavras, de que Cristo ressuscitou. Será que, se alguém experimentou que Cristo ressuscitou, pode passar pela sua cabeça que Ele talvez não esteja mais ressuscitado? Pode passar pela sua cabeça que Ele possa desaparecer? Se pensamos que Ele pode desaparecer, é porque paramos antes, ficamos presos na aparência, achamos óbvio que essa beleza tem uma origem diferente d’Ele, separada d’Ele. Não é a documentação da ação d’Ele entre nós. Nós sempre separamos o sinal da sua origem: então, os sinais não nos confirmam que Ele está agindo, mas, ao contrário, são sinais que depois podem sempre faltar. Mas Ele está agindo, e por isso Ele é que se preocupará em me dar outros sinais, em se mostrar de novo de outras formas, em aparecer, pois Ele foi o único que disse: “Estarei convosco todos os dias, até o fim do mundo”. Não é um problema nosso, entendem? É d’Ele. Relaxem: Cristo existe! Relaxem, amigos. Podemos dizer sem parar: “Cristo”, “o cristianismo é um evento”, mas quando dizemos isso, no fundo, pensamos que nós é que o produzimos. É a redução ética do cristianismo. Ou, dito de outra forma, ainda estamos no senso religioso reduzido ao que nós temos de manter em pé, como se tivéssemos de sustentar o mundo, entendem? É por isso que vocês estão sempre cansados: vocês têm de carregar o mundo nas costas! Relaxem, vão dormir em paz, que é Ele quem se encarrega de sustentar o mundo! Falo brincando, mas nessa brincadeira está toda a densidade que nos diz qual é o trabalho que devemos fazer.
Não é para menos que Dom Giussani insiste sempre em que o nosso problema é de conhecimento, pois nos enchemos de todas essas preocupações por falta de um conhecimento verdadeiro daquilo que acontece. Já que não chegamos nunca a esse reconhecimento da ação d’Ele, e, por conseguinte, não O reconhecemos vivo, não O reconhecemos como o Mistério presente que faz todas as coisas, pensamos que sempre pode vir a faltar. Mas Ele pode desaparecer? Não, não pode; tanto é, que toda essa beleza imponente que encontramos à nossa frente O documenta sem parar.
O que tudo isso nos leva a aprender? Que, quando interrompemos o percurso do conhecimento sem chegar a reconhecer a presença d’Ele, logo nos deixamos tomar por outras preocupações inúteis. Não se espantem com isso. Se vocês são assaltados por esses pensamentos, por esse medo, ao menos encarem-no. Se vocês ficam com medo de perdê-Lo, sintam isso como a urgência privilegiada com que Ele nos desafia neste instante. Que significa aprender com o que acontece? Significa que, se eu fico com medo, esse medo é o ponto de partida neste momento, no presente. Se é assim, nós olhamos para esse medo, nós o encaramos e vemos se é verdade ou não é que eu tenho de me preocupar, ou se existe Algo que permanece, que está na origem, que é diferente daquilo que nós temos na cabeça! Por que dizemos que algo pode não continuar? Porque o reduzimos ao fenômeno que aparece, e não vemos que é a origem, que é sempre a fonte desse fenômeno. Se, diante desse medo, dessas perguntas, paramos, nunca chegaremos à certeza, ou seja, nunca chegaremos à fé, pois a fé é o reconhecimento d’Ele presente agindo na história. A fé cristã, não a fé no desconhecido! A fé cristã é o reconhecimento d’Ele agindo entre nós, de que temos aqui uma montanha de testemunhos; mas é como se todos esses testemunhos não bastassem para reconhecê-Lo, e por isso ficamos cheios dessas questões.
Mas – como vocês podem ver – não é por falta de sinais: é por falta do eu! Em que sentido? Cristo pode se documentar, o faz diante de todos nós, mas falta alguém que esteja tão tomado pela Sua presença e tão facilitado por essa beleza a ponto de realizar todo o percurso da razão, todo o percurso da fé (do qual Jesus não poupou nem os seus discípulos), para passar do encontro com uma Presença – e do maravilhamento que suscita: “Quem és Tu, afinal?”, “quem é Este?” – ao Seu pleno reconhecimento. Como nós não fazemos isso, depois nos perdemos em devaneios. Por quê? Porque no fundo, não chegando a reconhecer a diversidade que Ele é, que o Mistério é, que Cristo ressuscitado é, não reconhecendo essa diversidade, tratamos Jesus como se fosse apenas mais uma coisa entre as outras, que, depois de um momento em que suscita uma certa atração, decai, como uma coisa que começa e no instante seguinte acabou. Mas, se Jesus for isso, seria melhor que fôssemos todos para casa. E então: Ele é diferente ou somos nós que O tornamos diferente? Está presente, e por isso continua presente, ou continua porque nós, com a nossa iniciativa, com os nossos pensamentos, o fazemos continuar? Está ou não está presente? Devemos chegar a uma conclusão sobre isso, pois, se Jesus não está presente, todas as nossas iniciativas são inúteis, e, se está, todas as nossas preocupações são igualmente inúteis.
Portanto, tudo o que acontece serve antes de mais nada para nós mesmos, e devemos agradecer ao Mistério por tudo isso acontecer, pois essa é justamente a forma pela qual Ele continua a nos desafiar a fazer este percurso. É assim que Ele nos educa ao que significa educar: educando-nos a nos introduzirmos na realidade em sua totalidade. Tanto é, que, se não chegamos a essa totalidade, a esse ponto último, começamos a complicar a vida e a fazer perguntas estúpidas a nós mesmos. Por quê? Porque educar, se não é introduzir à totalidade, não nos basta, e nós experimentamos isso na pele: não nos basta, não tem serventia para nós. Portanto, a primeira obra educativa é realizada pelo Mistério em nós, pois, se não nos deixamos amedrontar pelas perguntas, se não temos medo e, com a companhia da Sua presença, encaramos tudo, então podemos entrar cada vez mais na realidade a partir de qualquer coisa, para penetrar cada vez mais no Mistério da totalidade, ou seja, para educar, para introduzir ao significado do que acontece. E qual é o significado do que acontece? Que tudo isso me é dado para que eu possa entender cada vez mais o que é a realidade, chegando até a sua origem. Se não fizermos esse percurso em primeira pessoa, não poderemos educar. É inútil! Não poderemos educar, pois, diante do primeiro fato que nos desconcerta, caímos fora!
Nós só podemos educar quando somos os primeiros a participar da aventura do conhecimento. Eu reconheço que, se não tivesse levado a sério todas as provocações, todas as objeções, todas as dificuldades, não teria aprendido muitas coisas; e isso me estimulou a buscar formas e exemplos para poder falar dessas coisas de um modo cada vez mais adequado. É porque o meu eu foi gerado que eu posso olhar também para os alunos, e, quando ainda me fazem alguma objeção, meu eu continua a ser gerado agora, pois tudo faz parte dessa aventura para me introduzir no significado de cada pedaço da realidade que me acontece. Se não participamos disso, o que é a educação para nós? Dar aulas para os outros? Mas a educação, como nos disse Dom Giussani, é a comunicação de si, ou seja, da própria maneira de viver a realidade. E nós só podemos educar se somos os primeiros a aceitar o desafio da realidade em todas as coisas, mesmo naquelas pessoas que não concordam conosco, mesmo naquelas que fazem objeções, pois essas pessoas também nos são dadas. Para que lhe são dadas as pessoas que fazem objeções? Para que você possa tentar dizer as coisas que diz de uma outra forma, expressá-lo mais intensamente, torná-lo mais presente, testemunhá-lo com mais força. Se essa circunstância nos detém, a partida acabou. Se, ao contrário, eu a percebo como a contribuição que, mesmo fazendo objeções, essas pessoas dão à forma como eu posso entrar mais na relação com o Mistério, entrar mais em tudo, então tudo é amigo para mim: a realidade é minha, não porque digo isso de um modo meramente formal, mas é minha porque reconheço a contribuição que essa realidade me dá.
Queremos participar dessa maneira pela qual o Mistério introduz cada um de nós à realidade ou não? Ou estamos na atitude de quem já sabe e precisa explicar o que já sabe aos outros, em vez de entrar em relação com a realidade procurando aprender o que o Mistério lhe pretende comunicar por meio daquilo que faz acontecer? São duas formas de viver. A primeira, de quem pensa que já sabe, é um tédio invencível: eu já sei, e depois me aborreço com os outros porque, no fundo, eles são hostis e não me entendem. Será que não pensamos que, se eles não me entendem, é porque alguma coisa deve estar errada? Por acaso já imaginamos que talvez alguma coisa esteja errada, que deve haver ainda alguma coisa que eu preciso aprender para comunicar melhor? Esse é todo o testemunho que Dom Giussani nos deu durante anos, na sua tentativa de nos dizer melhor as coisas, de procurar entendê-las melhor para poder comunicá-las melhor. Será que nós pensamos que podemos ser poupados disso? Para mim, parece ser uma coisa impossível, se uma pessoa quer ensinar, quer aceitar esse desafio todos os dias: é só por isso que vale a pena recomeçar. Mas, se nós pensamos que já sabemos, a partida acabou. Se, ao contrário, vamos à escola todos os dias esperando ver qual será a forma pela qual o Mistério vai me chamar, então a partida está aberta. Por isso, cada um de nós precisa decidir com o que conta para viver esta aventura: com o que já sabe ou com a presença d’Ele, que não nos deixa ficar amedrontados com nada? A presença d’Ele não nos poupa do trabalho: é o que o torna possível (pois, do contrário, nos amedrontamos e nos defendemos).
Vocês se dão conta de que nós também precisamos do “carinho do Nazareno”? Não apenas os outros. Pois o Mistério não nos fez para nos esmagar sob o peso de uma doutrina sã, correta e limpa (e nós muitas vezes achamos que isso é comunicação da verdade!), mas para nos permitir fazer um encontro que fascinou a vida e nos introduziu no valor da vida. Nós pensamos que introduzimos os outros pela força da doutrina – uma doutrina justa: não é que dizemos algo que não seja verdadeiro, é extremamente verdadeiro -, mas o que foi que o Mistério fez conosco, para nos levar a aprender? Ele se tornou carne, se comunicou de um modo fascinante, e assim nos comunicou a vida. O que Dom Giussani fez? Criou um movimento pro-life ou nos comunicou sua febre de vida? E depois ainda dizemos que os outros é que não entendem... Talvez entendam bem demais! Tudo isso nos introduz a compreender o que é a verdade e o que é a comunicação da verdade. É um desafio impressionante, do qual a pessoa tem muito a aprender. Então, não fechemos a ferida dizendo: “São os outros que não nos entendem”, mas perguntemos a nós mesmos o que deve mudar em nós para que possamos comunicar aos outros uma febre de vida.
Nembrini. Paolo e Francesco. Estes dois últimos depoimentos tentam responder ao outro aspecto do desafio que você nos fez em maio do ano passado, a respeito do ensino, quando nos disse: “Vocês têm ideia do que significa ensinar?” Logo, é uma resposta à pergunta que você nos está fazendo hoje sobre a educação, sobre o ensino no sentido de dar aulas, e sobre a relação com aquilo que deve ser comunicado mediante o nosso ofício, no sentido mais específico do termo. Houve um florescimento incrível de tentativas “irônicas”, bem-sucedidas ou não, desde o âmbito mais particular até gestos de relevância nacional. Portanto, é toda uma riqueza, toda uma beleza, todo um caminho já iniciado, sobre o qual nós lhe pedimos um juízo e uma ajuda.
Paolo. Participei há algum tempo de uma reunião de professores que vinham de diversas escolas. O tema do encontro eram as relações entre professores e pais na escola. Os depoimentos foram uma sucessão de lamentos em torno das ingerências dos pais na vida da escola, ou de queixas pelo que poderíamos chamar de uma ausência das famílias na vida escolar. O único caminho que despontava de tudo o que as pessoas diziam era que deveríamos manter relações estritamente formais. Na minha vez de falar, eu enfrentei a questão partindo de alguns fatos e afirmando que os encontros entre pais e professores são encontros entre duas necessidades: a necessidade que as famílias têm de ser acompanhadas na aventura de educar os filhos e a necessidade dos professores de viver dentro da comunidade educadora, formada por pais e professores, não apenas por professores.
No que diz respeito ao problema das relações formais ou informais, eu apresentava a seguinte questão: quando um pai me para na porta da escola para me agradecer por uma palavra que eu disse a seu filho ou me perguntar uma coisa, e eu lhe respondo e converso com ele, estou num contexto formal ou informal? Não sei, nem me interessa saber: eu sou um eu, e como eu me relaciono com um outro eu. Quanto mais tiver consciência das minhas exigências humanas, mais saberei estar diante do outro sem ansiedades formais e preocupações ligadas à função que desempenho. O único elemento indispensável é que o coração esteja acordado; as exigências mais verdadeiras da minha natureza devem estar despertadas. Eu queria dizer apenas duas palavrinhas e acabei falando uns dez minutos. A pessoa que coordenava o encontro disse que na segunda parte do dia não trabalharíamos sobre a pauta que ela havia preparado, mas sobre o que eu disse.
A segunda coisa que me impressionou aconteceu logo depois. Um professor de uma outra escola disse sem grandes rodeios: “Eu acho que nada do que o colega disse pode se sustentar sem uma referência a um absoluto no qual a vida inteira e todo o eu se apoiem, para que a pessoa não se torne escrava do êxito”. Ele não usou exatamente essas palavras, mas o significado era esse. “Eu, por exemplo”, dizia, “levo meus filhos à missa todos os domingos. O problema é que o mundo pôs Deus de lado”, e citava, como exemplo, os ônibus patrocinados pelos ateus. O tema no grupo de trabalho passou a ser Deus. Eu não tinha falado d’Ele, e assim intuí uma questão: o testemunho passa por aquilo que nos é pedido. O que nos é pedido é que sejamos fiéis ao lugar que nos educa, que, misteriosamente, coincide com a própria pessoa d’Ele, por intermédio dos rostos das pessoas que Ele nos dá. O resto é Ele quem faz acontecer, e, quando acontece, nos surpreende sempre.
O terceiro fato – e foi o que mais me comoveu –, nesse mesmo dia, foi este: uma professora chegou para mim e me disse: “As coisas que você disse me puseram em crise, porque a nossa profissão é realmente a mais bonita do mundo, como você dizia, mas eu acabei de dar entrada na aposentadoria e você me deixou cheia de dúvidas”. Eu perguntei a ela: “Por que você deu entrada na aposentadoria?”, e ela me respondeu: “Porque estou com vontade de ir ajudar minha irmã, que ficou viúva e mora numa outra região, e eu não posso ir e vir o tempo todo”. Eu estaquei e disse: “Ela ficou viúva? Mas o seu cunhado morreu de quê?” E ela me falou daquele homem, um homem que trabalhava, que treinava um time de futebol juvenil, que era cheio de energia. E eu comecei a imaginar um homem como aquele, que era pau pra toda obra e, de repente, morreu, e insisti na pergunta: “E do que foi que ele morreu?”, e ela me respondeu: “De ELA, como o Welby (Doença caracterizada pela degeneração progressiva dos neurônios motores no cérebro e na medula espinhal, que resulta em atrofia muscular e fraqueza muscular crescente. O caso de Piergiorgio Welby (1945-2006), escritor e ativista político italiano, que sofria dessa doença, tornou-se conhecido em toda a Itália quando Welby solicitou a eutanásia e foi atendido). Fazia mais de um ano que estava entrevado na cama; já nem conseguia usar o computador para se comunicar”. Eu então comentei: “Talvez até tivesse sido bom você se aposentar antes, para ir lá ajudá-la”. Mas ela me respondeu: “Enquanto ele esteve ali, a minha irmã não precisava de nada. Só a presença dele já era suficiente para manter a casa inteira de pé. Agora que ela está sozinha, com os filhos, é que eu tenho de ajudá-la. Era uma família muito bonita, eles se amavam muito, até o último momento. A última frase que meu cunhado escreveu no computador foi: ‘Não fiquem tristes. Se Deus permitiu isto, significa que assim está bem’. Meu cunhado tinha muita fé. Quando as pessoas não têm fé, quando falta o amor, eu até entendo essas ideias estranhas de desligar os aparelhos e coisas desse gênero; mas, onde existe fé e amor, isso é impensável: é uma vida, esse homem foi um dom; foi alguém que ensinou a amar preso na sua cama. Mas eu não digo essas coisas pra ninguém; as pessoas me tomariam por louca. Só contei tudo isso a você porque, pelo que você disse antes a respeito da escola, parece que com certeza entende essas coisas”.
De que jeito uma pessoa pode se sentir sozinha depois de uma superabundância de fatos como essa? Contei essas coisas a vocês por uma gratidão. Se o meu eu estava acordado naquele dia (e eu quero e peço que isso aconteça sempre), eu o devo a esta companhia, que me provoca incansavelmente, a alguns “eus” que vivem a aventura da sua vida ardendo de paixão pelo homem e que me ensinam, assim, a me apaixonar realmente pelo meu eu. Eu intuo que o desafio seja viver uma amizade real, aquela em que o amigo ama o meu destino mais do que eu mesmo o amo, e, agindo assim, me educa, me põe de novo em movimento e permite que o meu eu também arda. Obrigado pelo ardor de vocês.
Francesco. Sou professor de Ciências. Em maio, ao responder a uma pergunta, o Julián nos dizia: “Será que nós, alguma vez, nos perguntamos o que é realmente ensinar? O que é realmente o conhecimento?” Essa questão me marcou e continua a me provocar, até porque, antes do encontro de maio, contando a você algumas dificuldades que eu tinha tido para que os jovens se apaixonassem pela química orgânica, você me perguntou a mesma coisa: “O que é que você quer ensinar a eles por intermédio da química orgânica?”, e depois acrescentou: “Porque entender a química orgânica é entender a relação dela com a totalidade”. Você me disse: “Trabalhe um pouco sobre isso; daqui a um ano, voltamos a conversar”. Esse desafio determinou totalmente a minha maneira de trabalhar. Vou tentar lhe dizer o que aconteceu.
Em primeiro lugar, desejei viver também essa predileção que senti tantas vezes em você e no Franco. Penso que essa foi a primeira coisa que me salvou e me permitiu olhar, abraçar meus amigos professores, desde os que dão aula no ensino básico até os do ensino médio, como nunca me havia acontecido antes. Mas depois vivi uma coisa com meus colegas da área científica, com quem participei da preparação e da realização de uma “Semana da Ciência” na escola em que trabalho.
Em outubro de 2007, você dizia que, sem significado, as coisas não têm força para nos interessar. Eu posso dizer com certeza que descobri que esse significado tem a ver com Algo que vem antes da matéria que eu ensino, e não está relacionado ao fato de estudar mais ou de aperfeiçoar mais uma técnica, mas é simplesmente, e também dramaticamente, dar espaço a uma relação precisa, a relação com Jesus, por meio da amizade com você e com o Franco (que ensina coisas diferentes das que eu ensino), enfim, com Deus feito homem, que me pôs outra vez em movimento e me faz ver com olhos novos as coisas de sempre.
O que aconteceu foi que meus colegas e eu começamos a trabalhar experimentando nos perguntar: afinal, o que significa ensinar ciências aos jovens? Onde é que nós queremos chegar propondo um dia dedicado ao evolucionismo ou ao aquecimento global? O que é que se mexe dentro de nós quando estamos diante dessas temáticas? O que esses temas têm a ver com a nossa vida? Bem, o que eu vi acontecer, em primeiro lugar em mim mesmo, foi que tentar estar dessa forma diante dos mínimos detalhes, com aqueles colegas, alguns de quem eu ainda não sabia nada ou muito pouco, me abriu ao Mistério, e posso dizer que tenho certeza disso, porque, diante deles, eu sentia a minha razão provocada ao máximo. E o ponto mais alto de tudo isso é que eu podia falar da realidade sem deixar de lado o Mistério; e, além de tudo, desejei como nunca a felicidade deles. Um colega meu, que trabalhou na preparação daqueles dias e que eu fui conhecendo melhor, no final da semana me disse: “Eu nunca tinha trabalhado assim. Mas, sobretudo, foi a primeira vez na minha vida que eu vim à escola sem ter de esquecer nada de mim mesmo: o meu medo de errar, os meus problemas em casa, e até a minha vontade de fazer a diferença no trabalho”.
Carrón. Vocês estão vendo? Nós precisamos entender que o encontro não é o fim, mas o início que nos permite um percurso de conhecimento, e, portanto, que o encontro não nos poupa do trabalho que temos de fazer. Não é que devamos ensinar como todo o mundo e depois colar Cristo por cima, porque esse dualismo, no fim, não nos faz diferentes, pelo contrário, os outros nos julgam simplesmente ideológicos, e têm toda a razão. A questão é que nós fomos introduzidos a algo que não nos poupa do trabalho. Ao contrário, pelo fato de ser acompanhado eu posso me arriscar mais nesse trabalho, e essa é a tentativa que devemos fazer. Se não for assim, por que a nossa posição ideológica deveria valer mais que a dos outros? Nós temos de poder mostrar que a nossa maneira de enfrentar a realidade dá mais conta de todos os fatores, e isso é algo que devemos aprender (não somos poupados disso: damos a nossa aulinha como todo o mundo e depois dizemos alguma coisa da Escola de Comunidade... nada disso!). Só quando procuramos conhecer realmente, ou seja, usar de verdade a razão, segundo todos os seus fatores, é que podemos mostrar, de dentro da nossa maneira de agir, o que essa postura significa para o conhecimento.
Esse é um percurso que nós nem sempre fazemos, pois é mais cômodo repetir uma frase. Muitas vezes, nós reduzimos Dom Giussani a pílulas para as várias ocasiões, em vez de nos identificarmos com a forma como ele nos introduz na realidade. É preciso que aqui fique claro, em primeiro lugar para mim mesmo, que a fé, ou seja, o reconhecimento do encontro que eu fiz, introduz uma capacidade de usar a razão, uma capacidade de ter um olhar aguçado e aprofundado na relação com a realidade, como nunca tivemos antes. Se não for assim, como é que eu posso verificar o que é essa novidade que Cristo introduziu no mundo como significado de tudo? Para nós, é mais cômodo colar isso por cima: damos nossas aulas como todo o mundo e depois colamos Cristo por cima. Mas isso, além de muito chato, não tem valor nenhum, só nos faz perder o melhor daquele input que o encontro produz como desafio a entrar na realidade.
Ao contrário – vocês percebem? –, quando a pessoa aceita esse desafio, a primeira coisa é que isso começa a ser realmente interessante. A última frase do Francesco, em relação ao seu colega, é sintomática: “Eu nunca tinha trabalhado assim. Mas, sobretudo, pela primeira vez na vida vim para a escola sem ter de esquecer nada”. Ou seja, ir à escola não é uma desgraça, uma coisa da qual a pessoa gostaria de se libertar. E vocês pensam que as pessoas não leem isso nas suas caras, independentemente de todas as citações sobre Jesus que vocês possam fazer? Esse peso é uma coisa que os alunos, os colegas, todos veem. Que significado nós podemos transmitir, se esse significado não tem a ver conosco? Só se aceitamos a verificação da fé – na maneira como nos posicionamos diante do ensino, na maneira como enfrentamos as matérias que temos de explicar, na maneira como usamos a razão nessas matérias, na maneira como isso nos desafia a nunca nos cansarmos de ser leais com esse aguilhão que nos pede para entrar cada vez mais na realidade -, podemos testemunhar aos outros o que significa a novidade que Cristo introduz.
Essa novidade é para nós. E sobre esse ponto ainda temos muito que trabalhar, pois é como reconstruir, em meio a um conceito de razão completamente reduzido a medida, as condições para poder viver o que o Papa disse: “Ampliar a razão”. O Papa disse isso em primeiro lugar a vocês, que têm como tarefa justamente ajudar os estudantes a ampliar a razão. Mas isso, mais uma vez, pode ser apenas um slogan colado por cima de um uso da razão como medida. Vocês percebem o tipo de desafio que nos é feito? E como é que podemos demonstrá-lo diante de nós mesmos, diante dos colegas? Como podemos nos educar a isso, se não sentimos pessoalmente urgente esse aguilhão a ampliar a razão? É verdade ou não é aquilo que o Papa diz, ou o que Dom Giussani nos testemunhou, ou seja, que a razão, reduzida a simples medida, não dá conta de sua natureza verdadeira? E como é que podemos mostrar isso aos outros? Não repetindo pela enésima vez a definição de razão (eles já sabem disso), mas tornando evidente, na experiência, um uso da razão diferente, mais verdadeiro. Isso é apaixonante para alguém que se interessa pelo ensino. E nós – falemos a verdade – muitas vezes renunciamos a essa busca: é mais fácil repetir. Mas, assim, ninguém se fascina, ao passo que o verdadeiro testemunho provoca os outros, obriga-os a sair do esconderijo ideológico. E aí começamos um verdadeiro caminho humano, sem contraposições inúteis.
Nembrini. Temos ainda uma última pergunta. Eu a destaquei porque me pareceu que atravessava muitas das nossas conversas e das contribuições escritas que vocês enviaram. Em parte, você já a respondeu, ao menos a um aspecto, pois o que você disse agora corta o problema pela raiz. Muitos de vocês perguntavam algo deste tipo – eu formulo assim por uma questão de brevidade e simplicidade -: eu tento, eu gostaria de ir a fundo em todos os aspectos da realidade e em todos os aspectos do nosso trabalho, do nosso ofício, com tudo o que uma tentativa de presença implica, como o aspecto cultural, didático, de disciplina, enfim, este trabalho que você chamou da busca do professor, o trabalho do qual o encontro não nos poupa, mas dentro do qual nos lança; só que eu me vejo sozinho, como se o fato de me ocupar da realidade em trezentos e sessenta graus, chegando até as consequências culturais, educativas, didáticas e, por outro lado, sociais, políticas, etc., pudesse ser apenas um luxo ou uma mania particular.
Dentro dessa pergunta, existe uma outra, a última, que é a seguinte. Mesmo quando a pessoa faz a sua tentativa, muitas vezes experimenta um mal-estar por não sentir que as outras pessoas do Movimento, presentes na mesma escola ou no mesmo âmbito educativo, estão juntas nisso. Surge uma espécie de pergunta, do tipo: eu até tentei, mas será que é realmente tão difícil podermos expressar isto juntos, caminhar juntos, nos apoiar neste trabalho? Pois existem as duas coisas: de um lado, as pessoas entendem (e vocês dizem isso) que a comunhão, ficar juntos, é indispensável, pois uma pessoa não dá conta dessa tentativa sozinha, não consegue fazer isso sozinha; de outro lado, tão logo entra em questão a unidade ou a comunidade, enquanto sujeito, o risco que corremos é de logo escorregar para uma organização.
Você pode nos ajudar a respeito dessa questão, para que possamos justamente percorrer melhor o caminho?
Carrón. Temos uma dificuldade para entender o método de Deus. Qual é o método de Deus, tal como Dom Giussani sempre nos ensinou? Que Ele chama a um para chegar a todos, que dá a graça a um, move alguém, dá um impulso a alguém para que, por meio da carne desse um, possa chegar a todos, possa estender-se a todos. Isso significa que o Mistério não nos pede permissão. Não pediu permissão a ninguém para chamar Abraão, depois Francisco, depois Bento, depois Dom Giussani. Não pediu permissão eclesiástica.
Nós entendemos isso muito bem quando falamos dos outros. Mas pensamos que para nós deve ser diferente, que o método de Deus em nós deveria ser diferente, que precisamos dar o nosso consentimento, ou seja, reduzir a comunhão a estarmos todos de acordo. E o que isso produz como consequência? Que ninguém se mexe enquanto não chegamos a um acordo. É uma coisa insuportável! Se a pessoa recebe uma graça como essa, e os outros não entendem, ela pode se sentir sozinha. Quando Dom Giussani entrou no Berchet, de certa forma estava sozinho, de certa forma; mas tinha toda aquela história nas costas, ou seja, não estava realmente sozinho. Quem teria imaginado que ali pudesse acontecer alguma coisa? Foi ele quem gerou tudo aquilo, pouco a pouco, justamente por essa lealdade, por essa sua resposta a Alguém que o chamava. Foi ele quem respondeu em primeira pessoa. Todos os outros colegas ficaram lá, sendo professores como antes. Dom Giussani respondeu. De certa forma, podemos dizer que esteve sozinho. E o que foi que isso gerou? Se tivesse tido de esperar que todos os colegas entrassem num acordo, nunca teria começado. Ao contrário, sua resposta aparentemente solitária foi a graça para todos nós, gerou um lugar como o que estamos vivendo agora, uma comunhão diferente. Não porque nos pediu permissão, mas porque pôs diante de nós algo que nos entusiasmou a todos.
Esse é o método de Deus, como Dom Giussani sempre nos ensinou, e nos ensinou porque isso é o que contam a Bíblia e toda a história da Igreja. E nós pensamos que para nós é diferente, hoje? Não, é igual. É por isso que eu digo: se a pessoa sente uma urgência, tem de responder em primeira pessoa, mesmo que os outros não entendam, mesmo que as outras pessoas da comunidade não entendam. Depois, no que isso suscita, elas verão o quanto de verdade existe dentro dessa iniciativa. Do contrário, em nome de uma organização – como se tivéssemos de nos sincronizar –, nós pomos um impedimento à forma como o Mistério age no meio de nós.
Mas nós vemos tudo isso no que a Anna contava: uma graça dada a uma pessoa é uma graça para todos, primeiro para os familiares, para os parentes, depois para os alunos, até para os colegas que nem lhe dirigiam a palavra. Eu me pergunto: como é que se gera essa comunhão? Vejam, não é que essa iniciativa seja contrária à comunhão: é justamente isso que a gera! Não devemos ter a pretensão de que as nossas tentativas sejam sempre justas; se a tentativa “irônica” que fazemos é capaz de fascinar os outros, isso vai ficar evidente. Mas certamente não podemos nos imobilizar uns aos outros, meus amigos. Que cada um de nós responda pessoalmente, e depois nos veremos unidos no reconhecimento do que esse movimento pessoal, sugerido pelo Mistério em cada um de nós, gerou de belo e bom.
Lembrem-se do que Dom Giussani nos disse (eu já citei isso a vocês em outubro do ano passado): o Movimento nasceu de uma Presença que se impunha e trazia para a vida a provocação de uma promessa que tinha de ser seguida, mas, depois, nós acabamos delegando a continuidade desse início aos discursos, às iniciativas, às reuniões, às coisas a fazer, e não à nossa vida, e, assim, em muito pouco tempo o início deixou de ser uma verdade oferecida à nossa pessoa e se transformou na deixa para uma organização, para uma realidade sobre a qual descarregar a responsabilidade do nosso trabalho e da qual pretender a solução das coisas. Aquilo que deveria ser a acolhida de uma provocação, e por conseguinte um seguimento vivo, se transformou em homologação a uma organização.
Se a pessoa não acolhe esse início, mas procura sufocá-lo na organização, é claro que esse início em pouco tempo deixa de existir. Agora, se nós estamos realmente voltados por inteiro a reconhecer esse início – que é o recurso que o Mistério nos dá para a continuação -, Ele reacontece, e então é possível que isso gere a comunhão, que não é estarmos todos de acordo, mas, sim, todos fascinados por Alguém.
Desejo, a mim mesmo e a cada um de vocês, que obedeçamos à forma absolutamente imprevisível com que Ele continua a estar presente. Que significa estarmos disponíveis ao que Ele faz? Significa estarmos disponíveis a reconhecer qualquer pontinha de novidade, de movimento, de verdade que encontrarmos na carne de quem quer que tenhamos ao nosso lado. Isso não é abstração, mas a forma mais poderosa pela qual o Mistério nos chama à conversão, a reconhecê-Lo. É o bem que Ele me dá neste momento.
Termino contando um episódio que me foi relatado por um padre que foi convidado por alguns amigos nossos a acompanhá-los à Terra Santa; é um estudioso do Antigo Testamento, por isso era o especialista que acompanhava a peregrinação. No entanto, enquanto desempenhava essa tarefa, ele foi vendo como os outros ficavam comovidos com o que acontecia diante dos lugares santos que visitavam, e ficava maravilhado com isso. E eu pensava: veja só o rosto que o Mistério, a graça do Mistério, assume para esse especialista em textos bíblicos: ele dá o seu saber aos outros e o Mistério lhe devolve cem vezes mais no rosto, na carne daqueles que tem à sua frente. Vocês podem imaginar um outro tipo de concretude da graça, maior do que ter à frente rostos desconcertados e comovidos? Que outra humanidade, que outro método, que outra coisa mais consoante, mais adequada pode existir para tornar o Mistério presente para nós, que ter esses rostos comovidos à nossa frente?
Esse é e será sempre o método, essa é a contemporaneidade de Cristo, pois a contemporaneidade de Cristo não significa uma coisa abstrata (como muitas vezes pensamos), a-histórica, sem rosto, não: são aqueles rostos comovidos que O tornam presente para mim, muito mais que a minha explicação de especialista. É como eu já lhes disse muitas vezes: eu digo as coisas e depois as ouço retornarem para mim, pela Cleuza, multiplicadas cem vezes mais, e assim aprendo a entender o que eu digo. Se nós, em nome do que já sabemos, não estamos disponíveis a isso, perdemos essa graça que o Senhor nos dá. Afinal, essa é ou não é a forma que a graça adquire para nós agora? Ou temos de nos defender, porque nos falta o bem-estar da organização? Que maluquice... Como aqueles que no tempo de Jesus já sabiam: os escribas e os fariseus já sabiam, e usavam seu saber como álibi para não se deixar provocar por aquela Presença que tinham à sua frente. Eles já sabiam, e não podiam imaginar que o Mistério quisesse se tornar carne, pois não podiam conceber uma coisa dessas. Da mesma forma, nós não podemos imaginar, muitas vezes, que aquele colega ou aquele amigo do Movimento (de quem sempre tivemos determinada imagem) possa ser invadido pela presença do Mistério e começar a se mexer de um modo que nos desconcerta. Será razoável, então, que nós, em nome do que já sabemos, ponhamos um obstáculo a isso? Cada um de nós pode responder.
Nembrini. Obrigado, Julián. Ao trabalho!
(traduzido por Durval Cordas)
Credits /
© Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón