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Passos N.104, Maio 2009

CAMARÕES - DEPOIS DA VISITA DO PAPA

Como uma só pessoa

por Marco Pagani

Um país com mais de duzentas etnias, onde barreiras e preconceitos dificultam a convivência. Mas onde uma presença desafia todos os dias a mentalidade dominante. Da acolhida aos meninos de rua ao “fundo comum”, como vive uma pequena comunidade do Movimento que acabou de receber um grande presente

São oito horas de quinta-feira, 19 de março, festa de São José. Bento XVI quis passar a festa de seu santo padroeiro em Camarões. As pessoas estão em fila desde as quatro horas da manhã para entrar no estádio de Yaoundé, a capital, e assistir a missa que começará às 10h. Uma multidão multicor que o acompanhou como pôde, saudando-o no decorrer do caminho do aeroporto ao centro; ou nos percursos, dentro da cidade, com muito militar deixando-o sempre a uma certa distância deles. Mas hoje, no estádio, estão todos os afortunados que puderam adquirir os cinquenta mil ingressos. Poucos, na verdade, em relação àqueles que desejariam estar lá. E mesmo esses poucos precisam sujeitar-se à Guarda Presidencial que protege Paul Biya e sua família.
Nós, de CL, também estamos lá, com os ingressos que, com dificuldade, conseguimos adquirir. Somos 25 dos mais de 60 membros da comunidade de Yaoundé que queriam participar. Inclusive os nossos amigos da parte inglesa de Kumbo precisaram renunciar. Representando-os estava padre Giuseppe Panzeri, frade capuchinho italiano. Os outros ficaram em casa assistindo à transmissão ao vivo pela televisão. Vestíamos camisetas brancas, cada uma com uma letra. Juntos, fazíamos “Comunhão e Libertação”. Nada de faixas, por medo de que as confiscassem.

As lágrimas de Casimiro. Nossa comunidade existe desde 1992. Uma semente, como Bento XVI descreveu o encontro com Cristo falando aos jovens de Angola. Pequena, mas que carrega um fruto. Totalmente confiada à nossa liberdade. “A todos os jovens que estão aqui, envio palavras de amizade e encorajamento: diante das dificuldades da vida, mantenham a coragem! A vossa existência tem um valor infinito aos olhos de Deus.”
Que a vida tenha um valor infinito aos olhos de Deus, é possível ver no Centro Social, um lugar que nasceu no início dos anos 2000 da experiência de partilha que, há vários anos, padre Maurizio Bezzi vivia com meninos de rua, ajudado pelos amigos da comunidade que viviam esta experiência de caritativa. Os jovens que vêm ao Centro podem testemunhar isso. Uma dezena de amigos do Movimento, entre os quais protestantes e muçulmanos, vêem chegar ao Centro todos esses jovens marcados pelo sofrimento. Em um país onde há mais de 230 grupos étnicos, onde a convivência nem sempre é fácil, existe uma unidade que aparentemente seria impossível.
O Centro acolhe diariamente entre 150 e 200 jovens que vivem e dormem na rua. Como Casimiro, um jovenzinho órfão, muito inteligente. Tentou recuperar o relacionamento com os tios e tias, quer dizer, com o que sobrou de sua família. Retomou os estudos, mas sua família o expulsou novamente. Assim, voltou para o Centro, onde frequenta a escola e trabalha carregando as sacolas do supermercado. Mas há alguém que o olha, que o leva a sério, que lhe diz: “Não chore”.
“Vossa existência tem um valor infinito aos olhos de Deus. Deixai-vos tomar por Cristo. Aceitai doar-Lhe vosso amor (...). Gostaria de dizer às crianças que não têm pai ou que vivem abandonadas na miséria das ruas: Deus as ama, não as esquece e São José as protege! Invocai-O com confiança”, concluiu o Papa em sua homilia.

Quebra-cabeça. O Movimento de Yaoundé é um quebra-cabeça de etnias diversas. Claro que existem diferenças, porque esta é a fantasia de Deus, que é o contrário do tédio mortal que seria se fôssemos todos idênticos. As diferenças dentro da comunidade, em vez de serem um obstáculo, assumem seu valor e riqueza, porque Cristo está presente. Juntas, as pessoas da comunidade derrubaram barreiras e preconceitos que pareciam intransponíveis. Como aquela vez em que fui à vila natal de Marta, uma jovem de etnia Bassa’a que não pôde assistir o funeral de seu pai por medo de ser morta (e, aqui, isso realmente acontece). Depois de 11 anos, voltou para lá, para descobrir onde seu pai tinha sido sepultado. Quantas objeções por parte da mãe: por que voltar à vila para colher as maldições e as desgraças? Além do mais, é uma filha que não se casou, que não tem filhos, que segue mais estes amigos que nem mesmo são de sua etnia do que a família... Escândalo!
Ou a experiência de Tontine. Uma vez por mês eles se reúnem, cada um coloca uma quantia estabelecida numa caixa e, cada vez, um deles pega tudo. Desse modo, pode-se ter uma quantidade de dinheiro razoável à disposição, que se pode recuperar pouco a pouco e sem o medo de que, guardando as economias em casa, um ladrão possa roubá-las. É uma maneira de economizar o dinheiro, sugerida pelas pessoas que vivem a nossa experiência, e de ter uma caixinha de mútuo socorro que é usada também nos momentos de alegria, quando se quer dar uma festa, ou quando alguém nasce ou se casa.
Mireille conta: “Olhando de perto, a educação que recebemos no Movimento ajuda-nos a não cairmos na tentação étnica. Isso torna-se concreto na maneira de sustentarmo-nos mutuamente, como se fôssemos uma pessoa só, diante das situações de alegria ou de dor”. Deste modo de conceber-se, nasceu a associação Reunião dos Amigos Sem Fronteiras (RASAF). Reúne os amigos adultos do Movimento e os amigos que se identificam com o nosso carisma, com o nosso modo de viver. “O objetivo é que a experiência de CL nos ajude a mudar concretamente nosso cotidiano em todos os seus aspectos, inclusive o do dinheiro. Mas nós, como disse Paulo VI falando da Igreja, somos, com efeito, uma etnia sui generis!”

Se a vida muda. Também aqui, o ambiente, a mentalidade comum dentro da qual vive a comunidade, é contra Cristo. Os relacionamentos são marcados pelo ceticismo, pela dúvida, pela suspeita. Olhando os anos transcorridos, vê-se o caminho feito. Quanta impenetrabilidade, quanta intriga, quanta falta de confiança recíproca. Mas aquela semente que Giussani plantou no Berchet dá fruto também aqui, em terras africanas.
Marthe conta: “Nós considerávamos certos aspectos da nossa vida como privados (os filhos, um bom emprego ...). Faltava a coragem de julgá-los a partir do nosso pertencer ao Movimento: isto nos fez compreender como éramos escravos da mentalidade comum. Agora não é mais assim. O milagre é que a companhia nos sustenta nesse desafio cotidiano.”
Assim, algumas pessoas aderiram à Fraternidade São José (uma das formas vocacionais da experiência de CL). Dois homens e duas mulheres. Por causa de uma presença humana excepcional, na qual descobriram que Cristo é o suficiente para a vida. “São José acolheu o mistério que estava nela e o mistério que ela própria era (Maria). Ele a amou com aquele grande respeito que é o segredo do amor autêntico. São José nos ensina que é possível amar sem possuir.” Sem possuir e, no entanto, tendo tudo. Sem medo de ir contra as tradições, o ceticismo dos amigos, os insultos dos membros da família. Uma novidade absoluta, então.
Falando à comunidade muçulmana, Bento XVI voltou à questão da relação fé-razão. “Religião e razão sustentam-se alternadamente.” Bem, na realidade em que vivemos, ainda permeada de magia, superstições, bruxaria, compreender que a fé sem razão não pode ser algo que diz respeito ao homem, é tarefa irrenunciável também para os cristãos.

Os frutos do trabalho. A visita do Papa foi ocasião para olhar para nossa comunidade, e para descobrir os fatos que testemunham aquilo em que estamos nos tornando dentro da nossa sociedade por causa do trabalho de Escola de Comunidade. Trabalho semanal, quinta-feira depois da missa. Um momento que se torna cada vez menos um discurso e mais o testemunho de um acontecimento em ação.
“Duas coisas impressionam quem nos encontra. A maneira de viver o trabalho e a maneira de viver a família, que são dois momentos típicos que expressam a concepção que se tem da vida. Dou aulas em um colégio, em Yaoundé. Tinha um relacionamento de colaboração muito estreito com o diretor. Ele gostava de mim e me encarregava de tarefas importantes. Quando mudou o diretor, meus colegas procuraram falar mal de mim, para ‘ocuparem’ o meu cargo. Mas, depois de algum tempo, o novo diretor teve que reconhecer que podia confiar em mim. E que eu não estava tentando me mostrar para fazer carreira, mas tinha uma paixão pela minha vida e pela vida dos meninos. Se não tivesse paixão pela minha vida não poderia ter pela vida deles. Eu aprendo isso às quintas-feiras, na Escola de Comunidade”, conta Pascal.
Ou o que aconteceu à sua mulher Hélène. Ela e Pascal casaram-se na igreja bastante jovens. Um padre que os conhecia lhes disse: “Mas vocês são muito jovens, esperem um pouco, nunca se sabe...”. Hoje, Hélène conta: “No bairro onde moramos há dois anos, uma vizinha, olhando a maneira de estarmos juntos e de educar nossos quatro filhos, disse: ‘Quando vejo vocês, penso na Sagrada Família’. Mas nós não fazemos nada de extraordinário. Simplesmente vivemos aquilo que encontramos, aquilo que aprendemos da Escola de Comunidade!”.
“A semente da sua presença está enterrada na profundidade do coração deste amado continente e germina pouco a pouco além e através das vicissitudes da sua história humana.” Palavra de Papa.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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