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Passos N.94, Junho 2008

DESTAQUE / OBRAS E POLÍTICAS PÚBLICAS

Caminhos de vida nova

por Francisco Borba Ribeiro Neto *

No Brasil, a realização de políticas públicas realmente eficazes nas mais diversas questões sociais é um enorme desafio. A Companhia das Obras é um exemplo de como obras sociais centradas na pessoa e numa amizade real têm mudado realidades locais. E, aos poucos, o seu método de trabalho vem sendo reconhecido e divulgado

O desafio mais evidente que se apresenta a todos os governos brasileiros, desde sempre, é a situação de pobreza, carência de recursos e exclusão em que tem vivido grande parte da população. Trata-se, em primeiro lugar, de um desafio ético e humano, pois não se pode aceitar que outros seres humanos vivam nessas condições. Mas também é um ciclo vicioso, onde a própria situação de pobreza, a falta de infraestrutura e de capacitação profissional dificultam o desenvolvimento econômico e social, agravando o problema. Trata-se de um desafio sempre aberto para que se criem políticas públicas verdadeiramente justas e capazes de encaminhar soluções para os problemas.
O custeio e a eficiência dessas políticas públicas são problemas constantes. Normalmente, no Brasil, as soluções têm se encaminhado na direção de sistemas altamente centralizados, entravados por uma burocracia cara e pouco eficiente. As decisões vêm de “órgãos superiores”, muitas vezes pouco conhecedores das questões locais, e ainda estão frequentemente comprometidas por interesses eleitorais, apadrinhamentos políticos e esquemas de corrupção.
Além disso, os programas não podem se limitar a políticas assistencialistas, que apenas procuram satisfazer necessidades urgentes, mas não ajudam a construir um caminho alternativo de construção da sociedade, onde as situações de pobreza e exclusão sejam superadas. Programas de renda mínima, por exemplo, são muito importantes na medida em que ajudam as famílias a terem acesso ao mínimo necessário para sua sobrevivência em determinado contexto; mas precisam ser complementados por outros programas que ajudem as pessoas a conquistar a autonomia (isto é, adquirirem, com o tempo, independência com relação a esse tipo de auxílio) e se tornarem cada vez mais protagonistas na própria vida. Trata-se, para usar uma linguagem comum na Doutrina Social da Igreja, de procurar o desenvolvimento humano integral, que atende a todas as pessoas e a todas as dimensões da humanidade de cada uma.
Em meio a todas as dificuldades inerentes a esse trabalho, um conjunto de obras sociais vem obtendo sucesso na realização de um desenvolvimento humano integral e, por essa causa, sendo reconhecidas em âmbito nacional e internacional. Elas estão reunidas em uma grande rede internacional, muito atuante no Brasil, denominada Companhia das Obras (CdO). As várias iniciativas estão interligadas por laços de amizade e colaboração recíproca, por meio de cursos, projetos integrados, colaborações técnicas, etc.
É interessante notar que essa rede não nasceu originalmente apenas para integrar obras sociais, mas também empresas privadas. A mesma lógica, de uma amizade e de um método de enfrentamento dos problemas concretos, ajuda os dois tipos de empreendimentos – aparentemente tão diferentes para o senso comum. Ao longo do tempo, esses dois fatores (amizade e método) se tornaram determinantes para o sucesso do trabalho das obras da CdO. Derivado das três premissas – apresentadas por Dom Luigi Giussani em O senso religioso – para que a realidade possa ser verdadeiramente conhecida (realismo, razoabilidade e moralidade), o método utilizado por esta companhia busca orientar uma intervenção que nasça das necessidades reais existentes e busque esse desenvolvimento pleno da pessoa humana.

Centralidade da pessoa
O método parte, portanto, da centralidade da pessoa. Ela é o ponto para o qual convergem as intervenções sociais e as políticas públicas, mas também é o ponto de onde partem as ações afirmativas de construção do bem comum – a pessoa é o sujeito, o protagonista, das ações. Mas essa pessoa deve ser entendida tal qual ela realmente é, e não a partir de esquemas ideológicos ou pré-concebidos a seu respeito. Dois aspectos se evidenciam quando procuramos olhar a pessoa tal qual ela é:
Em primeiro lugar, a sua profunda unidade. Todas as suas dimensões biológicas, psíquicas, sociais e espirituais se combinam para defini-la. A pessoa somatiza (isto é, apresenta sintomas orgânicos) em resposta a distúrbios psíquicos e ao estresse. Ela sacrifica objetivos individuais pelo bem de sua família. Ela interpreta os acontecimentos de seu cotidiano a partir de suas crenças religiosas. Todas as dimensões se combinam nessa unidade. Por isso, respostas parciais tendem a não ser satisfatórias nem serem construtivas em longo prazo.
Em segundo lugar, a unidade desse “eu” é dada por um desejo de realização, um anseio de felicidade para si e para os que ama, que pode ser denominado de experiência elementar. Nessa perspectiva, as necessidades imediatas não se esgotam em si mesmas, mas são sempre manifestações parciais de um desejo maior que tende a orientar toda a vida. Esse desejo maior é o ponto de partida de toda ação humana, de todo movimento pessoal e social que realiza e transforma a vida de pessoas e sociedades.
Se as necessidades imediatas são sinal de um desejo maior, o protagonismo da pessoa se dá justamente na busca pela realização desse desejo – e não na satisfação das necessidades em si. Só desse modo podemos compreender e valorizar os sacrifícios pessoais de cada um ou entender porque uma aparente melhoria da qualidade de vida nem sempre leva a um compromisso maior com a realidade e com o bem da família – como acontece, por exemplo, em muitos casos de alcoolismo.
É por meio do senso religioso que essa experiência elementar vai se tornando consciente de si e vai se estruturando na vida da pessoa. O senso religioso é a raiz da qual brotam os valores. O valor não é um princípio moral abstrato, mas a relação entre cada coisa, cada ação, cada pessoa, e esse desejo de totalidade, de satisfação integral, que está no coração de todos os seres humanos.
A responsabilidade da pessoa, mediante todos os tipos de solicitações que lhe vêm do impacto com o real, compromete-se com a resposta às perguntas que o senso religioso exprime. Nesse sentido, uma política pública que quer criar uma cultura de responsabilidade e não apenas deseje agir “sobre” as estruturas carentes, podendo inevitavelmente cair numa certa violência para com o outro, deve manter vivo esse desejo original da pessoa do qual brotam desejos e valores: a relação com o infinito (o significado último da vida), que torna a pessoa sujeito verdadeiro e ativo da história.

Valorização do outro
Sem dúvida, na realização de uma obra social ou na elaboração de políticas públicas, é necessário partir não dos interesses e do projeto de quem detém o poder, mas do conhecimento das reais necessidades e do sentido da vida de quem será atendido. Mas só isso não basta. É necessário que as populações atendidas se tornem protagonistas das ações implementadas, que essas ações reflitam aquele desejo de realização e aqueles valores que são inerentes a elas, que vivenciam o trabalho com uma responsabilidade autêntica e pessoal.
Para isso, é preciso também conhecer o que já existe de recursos positivos naquela realidade, pois cada pessoa, cada comunidade, ainda que pobre, representa uma riqueza Isso significa que a política pública deve procurar valorizar e fortalecer aquilo que as pessoas têm construído, isto é, aquele tecido social e o conjunto de experiências que constituem o seu patrimônio de vida. Esses fatores influenciam diretamente o sucesso em longo prazo da política pública e a efetividade da intervenção.
Um projeto “caído do céu” é violento porque não é participado (não conta com a participação de quem deve ser o sujeito da ação e não mero objeto); ou é ineficaz na medida em que fica restrito somente ao assistencial. Por isso, a realização de políticas públicas que não partam do compartilhar desejos comuns, “fazendo com” e não apenas “para” a pessoa atendida, ajudando-a a reconhecer e tornar mais fácil a realização do seu desejo, tenderá a ser ineficaz.
Mas não existe real movimento ou mudança da pessoa sem que uma afeição tenha sido despertada. Por isso, “fazer com” não é apenas uma questão de planejamento ou administração. Trata-se de um envolvimento pessoal que permite que as ações aconteçam e sejam efetivas, sem se perder em aparências ou ficções políticas e burocráticas.

Corpos intermediários e subsidiariedade
A sociedade nasce da livre agregação das pessoas e das famílias. Realizar um projeto de desenvolvimento significa favorecer as possibilidades de agregação, reconhecer e valorizar a constituição de corpos sociais intermediários, como também de um tecido social rico de participação e de co-responsabilidade.
O conceito de corpos sociais intermediários, muito valorizado na Doutrina Social da Igreja, é pouco trabalhado no Brasil, mas tem uma importância fundamental na sociedade atual. Esses corpos intermediários são todas as formas de agregação que se situam entre a pessoa e o Estado: família, escola, sindicato, sociedades de bairro, organizações não governamentais, etc.
Quando se olha para a pessoa, em sua integralidade e unidade, se percebe que os corpos intermediários não são instâncias dispersas, partes desconexas de um tecido social, mas que estão interligadas, que são todas elas – em sua riqueza e variedade – tentativas humanas de responder àquele desejo último que se encontra em seus corações. Assim, não terá sucesso uma organização da área da saúde que não valorizar a família e a escola; ou um projeto de renda mínima para famílias que não leva em consideração as condições do mercado de trabalho na região.
Se o governo, por meio das políticas públicas, quer realmente favorecer o bem comum, ser eficientes e resolver os problemas locais, não pode sobrepor-se à ação desses corpos intermediários – pois são eles, os corpos intermediários, que melhor refletem os desejos, valores e afinidades das pessoas. A ação do Estado, ao elaborar as políticas públicas, deve ser apoiar, colaborar, fornecer condições, subsidiar esses corpos intermediários para que, a partir deles e por meio deles, nasçam as melhores soluções para os problemas. Apenas naquelas situações em que as iniciativas do grupo social não podem encontrar uma solução por si mesmas (como no caso de um problema ambiental que envolve várias comunidades, ou de uma obra de infraestrutura que atende a uma grande região) é que o Estado deve assumir o papel de protagonista da ação. Esse é o princípio da subsidiariedade, tal como defendido pela Doutrina Social da Igreja.
É no primado da sociedade diante do Estado que se preserva a cultura de responsabilidade. Primado da sociedade, portanto: como tecido criado por relações dinâmicas entre movimentos sociais que criando obras e agregações, constituem comunidades intermediárias, e assim exprimem a liberdade das pessoas. Um partido que sufoca, que não favorece ou que não defende essa rica criatividade social, contribui para criar ou manter um Estado prepotente sobre a sociedade. Tal Estado reduz-se a ser funcional apenas para os programas de quem está no poder, e a responsabilidade é evocada simplesmente para suscitar consenso para as coisas já programadas.
Nos projetos de desenvolvimento é fundamental estabelecer uma real parceria entre as entidades públicas e privadas envolvidas, colocando em ação grandes quantidades de recursos, favorecendo sinergias. O princípio de subsidiariedade e a facilitação para a criação e fortalecimento de corpos intermediários colocam o Estado na posição de serviço à pessoa e à sociedade. Se esses dois princípios regem as políticas públicas centradas na pessoa, então, necessariamente, esse Estado buscará parcerias não apenas para garantir ou aumentar a quantidade de recursos, mas como garantia do bem comum e da democracia.

* Colaboraram Ana Lydia Sawaya e Gisela Solymos

Experiências premiadas

Ao longo dos últimos anos, vários trabalhados filiados à Companhia das Obras têm sido premiados no Brasil e no exterior. Essas premiações mostram o reconhecimento da qualidade do trabalho e do valor da metodologia empregada, desde pequenas obras de ação local, até grandes intervenções de caráter regional.
Assim, por exemplo, em 2008, entre as organizações que receberam o Prêmio Objetivos do Milênio, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, estava o Centro de Recuperação e Educação Nutricional (CREN), de São Paulo. Fruto do trabalho realizado inicialmente em favelas de São Paulo por profissionais da área de saúde e nutrição da Universidade Federal de São Paulo, a instituição atende, hoje, em duas unidades na capital paulista (Vila Mariana e Vila Jacuí) e possui um serviço para atendimento diretamente na comunidade em Jundiaí (SP). Anualmente, mais de 2500 crianças são atendidas.
Nesse mesmo ano, o fundo Itaú de Excelência Social premiou o Centro Virgílio Resi, de Belo Horizonte, e mais uma vez o CREN. O Centro Virgílio Resi tem apenas dois anos de funcionamento e busca ampliar os conhecimentos e as competências dos jovens para o trabalho na busca de seu primeiro emprego. O Centro atende dois setores do mercado – o comércio e a prestação de serviço – e já está se tornando referência no Estado de Minas Gerais, sendo procurado por diversas empresas para fazer a capacitação dos novos funcionários.
Em Brasília, a Creche Nossa Senhora Mãe dos Homens foi um dos trabalhos apoiados pelo Projeto Criança Esperança, em 2007. Ali são atendidas crianças de 1 a 6 anos de idade, com serviço gratuito mantido pela parceria com a Secretaria de Estado e Ação Social (SEAS-DF) e por doações. A creche funciona de segunda à sexta, oferece complementação alimentar para as crianças desnutridas, trabalho de estimulação pedagógica e atividades lúdicas, além de acompanhar e orientar as famílias das crianças.
Já a Fundação Casa Novella, de Belo Horizonte, recebeu o Prêmio Criança, da Fundação ABRINQ, em 2004. A instituição tem por finalidade acolher crianças de 0 a 6 anos em situação de risco pessoal e/ou social, vítimas de violência doméstica e suas famílias. Atende no máximo dez crianças por vez, que recebem cuidados médicos e psicológicos, reforço alimentar e tratamentos para higiene, além de acompanhamento pedagógico. As crianças contam com monitores dia e noite e, durante a semana frequentam uma creche. Durante todo o período de acolhida desenvolve-se também um trabalho de resgate do vínculo familiar, visando à volta da criança para casa.
Todas essas obras mostram a riqueza e o potencial dessa metodologia e desse modo de trabalhar. Não se trata de uma coisa particular, que pode ser usada em algumas situações ou por algumas pessoas, mas sim de uma proposta de metodologia para as políticas públicas, chegando até o âmbito de políticas de governo e de Estado.

 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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