O coração e a pessoa. A legalidade e a justiça. A liberdade religiosa e o papel da Igreja. Ao fim da viagem do Pontífice aos Estados Unidos, pedimos ao “Ministro das Relações Exteriores” da Santa Sé que traçasse um balanço da visita. Ele aceitou, explicando-nos porque se encarna no Sucessor de Pedro “a mensagem que leva: Cristo é a nossa esperança”
Com 56 anos de idade, nascido no Marrocos, de pais franceses, ele já foi Núncio Apostólico no Sudão e na Eritréia, entre outros. Dom Dominique Mamberti é Secretário para as Relações com os Estados desde setembro de 2006; na prática, é o “Ministro das Relações Exteriores” da Santa Sé. Acompanhou o Papa na viagem aos Estados Unidos. E logo em seguida aceitou responder às perguntas enviadas por Passos, sinal de uma atenção e de uma disponibilidade que nos deixam agradecidos.
A impressão geral – reforçada também pelas reações da mídia internacional – é que a viagem foi de fato uma etapa fundamental do Pontificado. Qual é a sua avaliação pessoal? É possível, de seu ponto de vista, fazer um balanço da visita?
Do ponto de vista da vida da Igreja nos Estados Unidos, pode-se verdadeiramente dizer que a viagem representou uma etapa fundamental. Como destacaram muitos bispos americanos, foi um momento de intensa espiritualidade para toda a Igreja; eu até diria, no sentido mais pleno, um momento de efusão do Espírito Santo. Foi uma injeção de identidade e de coragem, que reforçou nos católicos a alegria de pertencer à Igreja Católica, Apostólica e Romana e renovou neles o compromisso de servir aos seus concidadãos e ao mundo inteiro, especialmente àqueles que não têm voz ou que vivem marginalizados.
Deve ser sublinhado, também, a relação que o Papa conseguiu estabelecer com os meios de comunicação de massa e, por meio deles, com o povo americano em geral (protestantes, judeus e membros de outras religiões). Numa civilização que privilegia a comunicação pela imagem, o Santo Padre recebeu uma cobertura midiática sem precedentes. Seus gestos e suas palavras foram focalizados e levados para todos os cantos dos Estados Unidos. Isso contribuiu decisivamente para apagar, no povo americano, velhas desconfianças e preconceitos em relação à Igreja Católica, frutos de uma determinada impostação cultural histórica. Sublinha, em especial, os gestos e as palavras relativos ao dolorosíssimo problema do escândalo dos padres pedófilos, que tanta repercussão teve nos corações; o gesto do Papa representou uma decisiva contribuição para a cura das feridas abertas e a abertura de uma nova etapa para a Igreja nos Estados Unidos. Todos puderam ver o sucessor de Pedro como ponto de união e de convergência para todos os cristãos – centro de comunhão, diríamos nós. Não um monarca distante nem um severo guardião do dogma e da disciplina, desconhecidos e ininteligíveis para muitos, mas um sacerdote e um pastor humilde e compassivo, que encarna em sua pessoa a mensagem que carrega: Cristo é a nossa vida e a nossa esperança.
Também do ponto de vista “político” pode-se dizer que a viagem foi muito importante, pois o Santo Padre Bento XVI teve a ótima oportunidade de repetir para o mundo, especialmente em seu discurso nas Nações Unidas, a sua mensagem sobre a reta razão humana, capaz de se abrir ao transcendente e de encontrar nessa transcendência os princípios-guia do agir dos homens e de toda a vida social.
Retomando os conceitos já expressos pelo diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé, padre Federico Lombardi, poder-se-ia dizer, a título de balanço, que o Santo Padre privilegiou o anúncio da esperança. Anúncio de esperança para uma grande nação, que deve estar à altura da sua peculiar vocação no mundo de hoje; anúncio de esperança a uma Igreja que viveu um período particularmente difícil nos anos recentes; anúncio de esperança a todos os povos do mundo, representados nas Nações Unidas, mostrando que o serviço à dignidade do homem é o fundamento sólido sobre o qual se deve construir o futuro.
Nos discursos do Santo Padre, sobretudo naquele dirigido à Assembleia Geral da ONU, impressionou muito a constante referência à pessoa humana e a capacidade de ir à raiz dos chamados “direitos naturais”. O Papa falou dos desejos de paz e justiça e do respeito à pessoa como “princípios fundadores da organização”, que “exprimem as justas aspirações do espírito humano”: de certo modo, é como se o coração do homem fosse também o coração das relações entre povos e nações. Quer dizer que não se pode fazer política, menos ainda num contexto de relações internacionais, sem partir desses “desejos”?
O pensamento do Papa a respeito do agir político fundado no primado da dignidade da pessoa humana não é uma novidade. Antes, é um pensamento comum e caro à tradição católica. No último século, os papas, cada um ao seu estilo, se dirigiram à comunidade internacional com o mesmo discurso “político” (político no sentido mais alto do termo), que se pode resumir com as palavras de Bento XVI às Organizações Não-Governamentais de inspiração católica, dia 1º de dezembro de 2007: “frequentemente o debate internacional está marcado por uma lógica relativista que parece considerar como única garantia de uma convivência pacífica entre os povos a negação do direito de cidadania à verdade a respeito do homem e sua dignidade, bem como à possibilidade de um agir ético fundado no reconhecimento da lei moral natural. Impõe-se, assim, uma concepção do direito e da política em que o consenso entre os Estados – obtido às vezes em função de interesses de curto alcance ou manipulado por pressões ideológicas – é erigido como a única e última fonte das normas internacionais. Os amargos frutos de tal lógica relativista na vida internacional são, infelizmente, evidentes: pense-se, por exemplo, na tentativa de se considerar como direitos do homem as consequências de certos estilos egoístas de vida, ou no desinteresse pelas necessidades econômicas e sociais dos povos mais frágeis, ou no desprezo ao direito humanitário e na defesa seletiva dos direitos humanos.
Outro tema decisivo: a liberdade. “Em seu nome”, disse Bento XVI, “deve haver uma correlação entre direitos e deveres, com a qual toda pessoa é chamada a assumir a responsabilidade das próprias escolhas, feitas em consequência do estabelecimento de relações com os outros”. Poderia explicar melhor essa “correlação entre direitos e deveres em nome da liberdade”?
Em seu discurso, o próprio Papa explica a correlação entre direitos e deveres. Ela é “consequência do estabelecimento de relações com os outros” (parágrafo 3). De fato, ninguém dá a existência a si próprio, ninguém existe sozinho, ninguém existe por si mesmo. Toda afirmação de um direito, a começar pelo direito à vida, comporta a afirmação de duas obrigações: a obrigação de todos os outros de respeitar tal direito do sujeito, e a obrigação do sujeito de respeitar o direito de todos os outros. Sem isso, a pessoa corre o risco de reivindicar para si uma posição de superioridade, que pode ser o início da afirmação da legitimidade da força bruta. A possibilidade de se formular um elenco de direitos e deveres nasce da dignidade da pessoa humana e apoia-se no universal senso de justiça, baseado, por sua vez, “primariamente na solidariedade entre os membros da sociedade”. Segue-se que tais direitos e deveres são válidos sempre e em qualquer lugar, isto é, em todos os tempos e para todos os povos, intuição essa que, como lembra o Papa, “foi expressa já no quinto século por Agostinho de Hipona, um dos mestres da nossa herança intelectual, o qual, referindo-se à máxima Não fazer aos outros o que você não gostaria que fizessem a você”, disse que ela “não pode de maneira nenhuma variar conforme as diversas compreensões presentes no mundo”.
Também a crítica ao relativismo e o apelo constante à verdade como fundamento da liberdade (um exemplo para todos: o discurso aos jovens e aos seminaristas) vai claramente contra a corrente do pensamento comum, que interpreta a busca da verdade como um fator de conflito. Sem a tensão para a verdade há a possibilidade de uma convivência verdadeiramente humana entre os povos?
É verdade que há alguns círculos intelectuais que identificam a busca da verdade, especialmente no campo religioso, como um fator de conflito. Tal ideia, que, aliás, não é nova, costuma ser retomada e amplificada pelos meios de comunicação. Todavia, se as pessoas são interpeladas por uma mensagem que lhes toque o coração, respondem positivamente ao convite para buscarem a verdade. Prova disso é também a acolhida que as multidões reservaram ao Santo Padre nos Estados Unidos. Por isso, não me parece de todo correto afirmar que o relativismo é uma corrente dominante. Os fatos demonstram que, quando se oferecem valores firmes e certezas fundadas, o povo reage com entusiasmo. No relativismo e em sua rejeição à busca da verdade pode-se encontrar o desejo de uma afirmação prometéica do homem. Mas, como Bento XVI destacou em seu discurso, “a recusa de se reconhecer a contribuição à sociedade que está enraizada na dimensão religiosa e na busca do Absoluto – por sua própria natureza, expressão da comunhão entre pessoas – privilegiaria indubitavelmente uma abordagem individualista e fragmentaria a unidade da pessoa”.
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