Roteiro de leitura dos textos em que Bento XVI aponta com clareza os desafios culturais da presença da Igreja no mundo contemporâneo. Neste contexto, o significado
da presença no ambiente universitário
A leitura do documento Carta do Papa sobre tarefa urgente da educação nos ajuda a focalizar a questão central que constitui o ponto de partida e núcleo de todas as preocupações de quem vive no ambiente universitário: a questão educativa. Em primeiro lugar, o Papa reitera o ideal de todo trabalho educativo: “Devemos, portanto, preocupar-nos pela formação das futuras gerações, por sua capacidade de orientar-se na vida e de discernir o bem do mal, por sua saúde não só física, mas também moral”.
A seguir coloca que este trabalho sempre, mas especialmente no momento histórico atual, encontra muitas dificuldades e que “fala-se, por este motivo, de uma grande emergência educativa, confirmada pelos fracassos que encontram com muita frequência nossos esforços por formar pessoas sólidas, capazes de colaborar com os outros e de dar um sentido à própria vida”.
As causas deste fracasso foram analisadas de várias formas (o modo de ser das jovens gerações, a fratura entre estas, os adultos de hoje que já não são capazes de educar e que num certo sentido renunciam a esta tarefa), mas o Papa nos alerta que também precisamos olhar para o ambiente cultural em que vivemos.
Na verdade, não estão em jogo somente as responsabilidades pessoais dos adultos e dos jovens – que certamente existem e não se devem esconder –, mas também um ambiente difundido, uma mentalidade e uma forma de cultura que levam a duvidar do valor da pessoa humana, do próprio significado da verdade e do bem, em última instância, da bondade da vida. Torna-se difícil, então, transmitir de uma geração a outra algo válido e certo, regras de comportamento, objetivos confiáveis sobre os quais se pode construir a própria vida. Portanto, é necessário compreender os desafios culturais no mundo contemporâneo. Para entendê-los Bento XVI nos remete antes de tudo à consideração do macro contexto mundial.
Já em 2004, num riquíssimo diálogo travado com o filósofo alemão J. Habermas na Academia Católica de Baviera, Ratzinger delineava os aspetos mais significativos deste contexto.
a) O homem desceu até o fundo do poço do poder, até a fonte de sua própria existência.
“Temos o desenvolvimento das possibilidades do homem do poder, de fazer e destruir, que – para muito além de tudo com que se estava acostumado até agora – levanta a pergunta pelo controle jurídico e moral do poder.” As duas novas formas de poder que se desenvolveram na última metade do século passado colocam novos desafios:
1. Após o medo da guerra, agora temos o do terrorismo alimentado por meio do fanatismo religioso e isto coloca a questão sobre a natureza da religião: é um poder capaz de curar e salvar ou um poder arcaico e perigoso que instiga a intolerância e o terror?
2. O fato de que o homem é agora capaz de fabricar homens, produzi-los experimentalmente, acarreta o fato de que “o homem se torna produto, e com isso se altera a relação dos homens consigo mesmos no seu fundamento mesmo”.
Uma das consequências do desenvolvimento dessas ameaças derivadas das formas novas de poder é o questionamento da própria razão: emerge “a incerteza acerca da confiabilidade da razão. Afinal de contas, a bomba atômica também é um produto da razão; a criação e a seleção de seres humanos foram inventados pela razão”.
E também, diante das guerras e do terrorismo, o racionalismo da sociedade europeia e ocidental deparou-se com o seu limite e incapacidade de efetiva universalidade.
b) A formação de uma sociedade mundial, fruto de um processo de contato e interpenetração das culturas, onde as certeza éticas, que até aquele momento eram sustentadas, encontram-se amplamente despedaçadas. A pergunta, especialmente no contexto dado, acerca do que é, afinal, o bem e por que, mesmo que com prejuízo para nós próprios, devemos fazê-lo, permanece sem resposta.
Desse modo, segundo Bento XVI, a interculturalidade compõe hoje uma dimensão indispensável para a discussão acerca dos fundamentos do ato de ser humano, que não pode ser conduzida nem unicamente dentro do universo cristão nem totalmente dentro de uma tradição racional ocidental.
A seguir, examina os diferentes espaços culturais disponíveis hoje na sociedade global: a) o universo cristão e a tradição racional do Ocidente; b) o espaço cultural islâmico; c) o espaço cultural hinduísta e budista; d) o espaço cultural das culturas tribais africanas e da América Latina. No seio de todos eles não há mais unidade, mas todos “são moldados por tensões profundamente arraigadas em sua própria tradição cultural”.
O que decorre de tudo isso? Em primeiro lugar, afirma Ratzinger, “a não-universalidade factual das duas grandes culturas do Ocidente: a cultura da fé cristã assim como a cultura da racionalidade secular”.
Nossa racionalização secular, por mais que ilumine nossa razão formada no Ocidente, não é sensata para qualquer "ratio"; ela, como racionalidade, em sua tentativa de se fazer evidente, se depara com limites. Sua evidência está factualmente vinculada a determinados contextos culturais e precisa reconhecer que, como tal, não pode ser compreendida por toda a humanidade e, por isso, nela, não pode operar nem mesmo de modo geral. Em outras palavras, a fórmula mundial, seja ela racional, ética ou religiosa, com a qual todos concordam e que poderia então sustentar o todo, não existe.
Este panorama evidencia um duplo tipo de patologias: as patologias da religião, e as patologias da razão: “há patologias na religião que são extremamente perigosas” e há “uma hybris da razão, a qual não é menos perigosa, ao contrário, devido à sua potencial eficiência, muito mais ameaçadora”.
Uma mais ampla análise da patologia da razão na cultura ocidental é desenvolvida na Aula Magna da Universidade de Regensburg, 12 de Setembro de 2006 cujo título é Fé, razão e universidade: Recordações e reflexões. Aqui, Bento XVI fala em “autolimitação moderna da razão”, que se expressa, sobretudo, no fato de que só o tipo de certeza que deriva da sinergia entre matemática e experiência nos permite falar de cientificidade. Tudo o que pretenda ser ciência deve confrontar-se com este critério. E, assim, as ciências que dizem respeito à realidade humana, como a história, a psicologia, a sociologia e a filosofia, procuravam também aproximar-se deste cânone da cientificidade. Entretanto, para as nossas reflexões, é ainda importante o fato de o método como tal excluir o problema de Deus, apresentando-o como problema acientífico ou pré-científico. Mas, aqui estamos perante uma redução do espaço próprio da ciência e da razão, fato este que é obrigatório por em questão.
Várias são as consequências desta redução: a mais importante é que então o próprio homem sofre uma redução. Porque nesse caso as questões propriamente humanas, isto é, “de onde venho” e “para onde vou”, as questões da religião e do ethos não podem ter lugar no espaço da razão comum, tal como a descreve uma “ciência” assim entendida, devendo ser transferidas para o âmbito do subjetivo. O sujeito decide, com base nas suas experiências, o que lhe parece religiosamente sustentável, e a “consciência” subjetiva torna-se, em última análise, a única instância ética. Desta forma, porém, o ethos e a religião perdem a sua força de criar uma comunidade e caem no âmbito da discricionariedade pessoal.
Em segundo lugar, a autolimitação da razão leva à incapacidade de diálogo: “Uma razão, que diante do divino é surda e repele a religião para o âmbito das subculturas, é incapaz de inserir-se no diálogo das culturas”.
Uma terceira e grave consequência foi apontada por Bento XVI mais recentemente, no discurso que deveria ser proferido na Universidade de Roma La Sapienza (prevista para dia 17 de janeiro de 2008): “O perigo do mundo ocidental – para falar somente dele – é que hoje o homem, justamente em consideração da grandeza do seu saber e poder, se renda diante da questão da verdade. E isso significa ao mesmo tempo que a razão, no final, sucumbe ante as pressões dos interesses e do atrativo da utilidade, obrigada a reconhecê-la como critério último. (...) Perde a coragem para a verdade e deste modo não se torna maior, mas pequena”.
Razão e religião
O que há então para ser feito? A proposta de Bento XVI, parte de uma questão de método. Com efeito, ainda no diálogo ocorrido na Academia da Baviera em 2004, Ratzinger tinha colocado que uma relação e diálogo mútuo entre razão e religião pode ser um corretivo excelente: por um lado, “a luz divina da razão pode ser, por assim dizer, órgão de controle, a partir do qual a religião sempre deve se deixar purificar e organizar novamente”; por outro, “a razão também deve ser lembrada em seus limites e aprender a disposição de ouvir as grandes tradições religiosas da humanidade”. De fato, “quando ela se emancipa completamente e coloca de lado essa disposição de ouvir, essa capacidade de correlação, ela se torna destruidora”. Naquela ocasião dizia: “Eu falaria de uma necessária correlação entre razão e fé, entre razão e religião, as quais são convocadas para uma purificação e salvação recíproca, que se carecem mutuamente e que precisam reconhecer isso”. Trata-se de uma tentativa de uma correlação polifônica, na qual elas próprias se abram para uma complementaridade essencial entre razão e fé, de modo que um processo universal de purificação possa se desenvolver, no qual as normas e os valores essenciais de alguma forma conhecidos ou pressentidos por todos os homens possam adquirir uma nova intensidade luminosa, de sorte que novamente possa vigorar na humanidade aquilo que segura o mundo.
Neste sentido, conforme Regensburg, “a intenção não é retirada, nem crítica negativa; pelo contrário, trata-se de um alargamento do nosso conceito de razão e do seu uso”. Possível na medida em que “razão e fé voltarem a estar unidas de uma forma nova; se superarmos a limitação autodecretada da razão ao que é verificável na experiência, e lhe abrirmos de novo toda a sua amplitude”. Disto também derivará a capacidade de “um verdadeiro diálogo das culturas e das religiões – um diálogo de que temos necessidade muito urgente”. Com efeito, “no mundo ocidental, é largamente dominante a opinião de que são universais apenas a razão positivista e as formas de filosofia dela derivadas. Mas, as culturas profundamente religiosas do mundo vêem, precisamente nesta exclusão do divino da universalidade da razão, um ataque às suas convicções mais íntimas”.
Na perspectiva desta retomada, é que o Papa coloca a função da Universidade. Dissera em Regensburg, em 2007: “Não agir segundo razão, não agir com o logos, é contrário à natureza de Deus, disse Manuel II, partindo da sua imagem cristã de Deus, ao interlocutor persa. É a este grande logos, a esta vastidão da razão que convidamos os nossos interlocutores no diálogo das culturas. Reencontrá-la nós mesmos sempre de novo, é a grande tarefa da universidade”.
No discurso de La Sapienza, Bento XVI define explicitamente a função e o espírito originário da universidade: “Mas agora é preciso perguntar: O que é a universidade? Qual é o seu papel? É uma pergunta gigantesca, à qual, mais uma vez, posso procurar responder somente num estilo quase telegráfico, com algumas observações. Penso que é possível dizer que a verdadeira, íntima origem da universidade esteja na fome de conhecimento que é própria do homem. Ele quer saber o que é tudo o que o circunda. Neste sentido, podemos ver no interrogar-se de Sócrates o impulso do qual nasceu a universidade ocidental”.
Ao acenar as origens história da instituição universitária no século XII, na Idade Média, e, portanto dentro de um universo cultural moldado pelo cristianismo, Bento XVI explica que, de fato, os cristãos não precisavam, portanto, dissolver ou deixar de lado o questionamento socrático, mas podiam, ou melhor, deviam acolhê-lo e reconhecer como parte da própria identidade a busca afanosa da razão, para chegar ao conhecimento da verdade por inteiro. Deste modo, a universidade podia, até mesmo devia, nascer no âmbito da fé cristã, no mundo cristão.
Cabe neste ponto definir a essência da verdade: “o homem quer conhecer – quer verdade. Verdade é, primeiramente, algo ligado ao ver, ao compreender, à theoria, como é chamada pela razão grega. Mas a verdade nunca é somente teórica. Agostinho, ao fazer a correlação entre as Bem-Aventuranças no Sermão da Montanha e os dons do Espírito mencionados em Isaías 11, afirmou uma reciprocidade entre a scientia e a tristitia: o mero saber, diz ele, nos deixa tristes. E de fato, quem se limita a ver e apreender tudo o que acontece no mundo, termina por ficar triste. Mas verdade significa mais do que saber: o conhecimento da verdade tem como meta o conhecimento do bem. Este é também o sentido do questionamento socrático: Qual é o bem que nos torna verdadeiros? A verdade nos torna bons, e a bondade é verdadeira: é este o otimismo que vive na fé cristã, dado que a ela foi concedida a visão do Logos, da Razão criadora que, na encarnação de Deus, revelou-se ao mesmo tempo como o Bem, como a própria Bondade”.
O desafio da educação
Um último passo: neste ambiente universitário e diante do desafio da educação hoje, o próprio Bento XVI nos propõe o método para se colocar construtivamente dentro da perspectiva e do horizonte que descrevemos acima.
Em primeiro lugar, não tendo medo, como frisa na carta sobre a educação de 29 de janeiro de 2008. “Com efeito, todas estas dificuldades, de fato, não são insuperáveis. São mais, por assim dizer, o outro lado da moeda desse dom grave e precioso que é nossa liberdade, com a responsabilidade que justamente implica. (...) Pois a liberdade do homem sempre é nova e, portanto, cada pessoa e cada geração têm de tomar nova e pessoalmente suas decisões. Inclusive os maiores valores do passado não podem ser simplesmente herdados, têm de ser assumidos e renovados por meio de uma opção pessoal, que com frequência custa”.
Em segundo lugar, é preciso ter como ponto de partida uma experiência real de universidade, como o próprio Bento XVI testemunhou na introdução de seu discurso em Regensburg: “Havia um contato muito direto com os estudantes e, sobretudo entre os professores. Antes e depois das aulas, nos encontrávamos nas salas dos professores. Os contatos com historiadores, filósofos, filólogos e naturalmente entre as duas faculdades teológicas eram muito estreitos. Uma vez por semestre havia o chamado dies academicus, no qual se apresentavam diante dos estudantes de toda a universidade professores de todas as faculdades, tornando assim possível uma experiência de universitas (...) isto é, a experiência de que, não obstante as múltiplas especializações, que por vezes nos tornam incapazes de comunicar entre nós, formamos um todo e trabalhamos no todo da única razão com as suas várias dimensões, encontrando-nos assim unidos também na responsabilidade comum pelo reto uso da razão – esta realidade tornava-se uma experiência viva”.
Em terceiro lugar, se trata de aprender e praticar um uso da razão segundo o método socrático: se colocando do lado de dentro e não externamente ao mundo; aberto à positividade e não defensivo, como Bento XVI afirma no discurso de La Sapienza e coloca para si, de seguindo o exemplo socrático, assumir a tarefa de “manter desperta a sensibilidade pela verdade; convidar sempre de novo a razão a pôr-se em busca do que é verdadeiro, do bem, de Deus, e, neste caminho, solicitar que ela aproveite as luzes tão úteis surgidas ao longo da história da fé cristã”.
A esta tarefa também somos chamados cada um de nós, dentro de nossos ambientes universitários.
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