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Passos N.94, Junho 2008

DOCUMENTO / PALAVRA DO PAPA

A verdade não é uma imposição. É a descoberta de Alguém que nunca nos trai

por Bento XVI

Trechos do discurso de Bento XVI no encontro com os membros da Assembleia Geral das Nações Unidas durante sua Viagem Apostólica aos Estados Unidos da América.
Nova York, 18 de abril de 2008


Por meio das Nações Unidas, os Estados deram vida a objetivos universais que, mesmo se não coincidem com o bem comum total da família humana, sem dúvida representam uma parte fundamental daquele próprio bem. Os princípios fundadores da Organização – o desejo da paz, a busca da justiça, o respeito da dignidade da pessoa, a cooperação humanitária e a assistência – expressam as justas aspirações do espírito humano e constituem os ideais que deveriam estar subjacentes às relações internacionais. Como os meus predecessores Paulo VI e João Paulo II observaram deste mesmo púlpito, trata-se de assuntos que a Igreja Católica e a Santa Sé seguem com atenção e com interesse, porque vêem na vossa atividade, como problemas e conflitos relativos à comunidade mundial podem ser submetidos a uma comum regulamentação. As Nações Unidas encarnam a aspiração a “um grau superior de orientação internacional” (João Paulo II, >Sollicitudo rei socialis>, 43), inspirado e governado pelo princípio de subsidiariedade e, portanto, capaz de responder às perguntas da família humana pelas regras internacionais vigentes e mediante estruturas capazes de harmonizar o desenvolvimento cotidiano da vida dos povos. Isto é ainda mais necessário numa época em que experimentamos o óbvio paradoxo de um consentimento multilateral que continua a estar em crise devido à sua subordinação às decisões de poucos, enquanto os problemas do mundo exigem intervenções em forma de ação coletiva da parte da comunidade internacional.
Sem dúvida, questões de segurança, objetivos de desenvolvimento, redução das desigualdades locais e globais, proteção do ambiente, dos recursos e do clima, exigem que todos os responsáveis internacionais ajam conjuntamente e demonstrem uma rapidez no agir em boa fé, no respeito da lei e na promoção da solidariedade em relação às regiões mais débeis do planeta. (...) No contexto das relações internacionais, é necessário reconhecer o papel superior desempenhado pelas regras e estruturas intrinsecamente ordenadas para promover o bem comum e, portanto, para defender a liberdade humana. Tais regras não limitam a liberdade; ao contrário, promovem-na, quando proíbem comportamentos e atos que vão contra o bem comum (...). Aqui o nosso pensamento dirige-se ao modo como os resultados das descobertas da pesquisa científica e tecnológica por vezes foram aplicados. Não obstante os enormes benefícios que a humanidade pode receber deles, alguns aspectos de tal aplicação representam uma clara violação da ordem da criação, até ao ponto em que não só é contrastado o caráter sagrado da vida, mas a própria pessoa humana e a família são privadas da sua identidade natural. De igual modo, a ação internacional destinada a preservar o ambiente e a proteger as várias formas de vida sobre a terra não deve garantir apenas um uso racional da tecnologia e da ciência, mas deve também redescobrir a imagem autêntica da criação. Isto nunca exige uma opção a ser feita entre ciência e ética: antes, trata-se de adotar um método científico que seja verdadeiramente respeitador dos imperativos éticos.
O reconhecimento da unidade da família humana e a atenção pela dignidade inata de cada homem e mulher encontram hoje uma renovada acentuação no princípio da responsabilidade de proteger. (...) Cada Estado tem o dever primário de proteger a própria população de violações graves e contínuas dos direitos humanos, assim como das consequências das crises humanitárias, provocadas quer pela natureza, quer pelo homem. Se os Estados não são capazes de garantir semelhante proteção, a comunidade internacional deve intervir com os meios jurídicos previstos pela Carta das Nações Unidas e por outros instrumentos internacionais. A ação da comunidade internacional e das suas instituições, suposto o respeito dos princípios que estão na base da ordem internacional, nunca deve ser interpretada como uma imposição indesejada e uma limitação de soberania. Ao contrário, é a indiferença ou a falta de intervenção que causam danos reais. Aquilo de que há necessidade é de uma pesquisa mais profunda de modos de prevenir e controlar os conflitos, explorando todas as possíveis vias diplomáticas e prestando atenção e encorajamento também aos mais débeis sinais de diálogo ou de desejo de reconciliação. (...)
A fundação das Nações Unidas, como sabemos, coincidiu com a profunda indignação sentida pela humanidade quando foi abandonada a referência ao significado da transcendência e da razão natural, e como consequência foram gravemente violadas a liberdade e a dignidade do homem. Quando isto acontece, estão ameaçados os fundamentos objetivos dos valores que inspiram e governam a ordem internacional e são minados na base aqueles princípios improrrogáveis e invioláveis formulados e consolidados pelas Nações Unidas. Quando se está diante de desafios novos e insistentes, é um erro retroceder a uma abordagem pragmática, limitada a determinar “um terreno comum”, mínimo nos conteúdos e frágil nos seus efeitos.
A referência à dignidade humana, que é o fundamento e o objetivo da responsabilidade de proteger, leva-nos ao tema sobre o qual somos convidados a concentrar-nos este ano, no qual se celebra o 60º aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem. O documento foi o resultado de uma convergência de tradições religiosas e culturais, todas motivadas pelo comum desejo de colocar a pessoa humana no centro das instituições, leis e intervenções da sociedade, e de considerar a pessoa humana essencial para o mundo da cultura, da religião e da ciência. Os direitos humanos estão cada vez mais presentes como linguagem comum e substrato ético das relações internacionais. Ao mesmo tempo, a universalidade, a indivisibilidade e a interdependência dos direitos humanos servem todas de garantias para a salvaguarda da dignidade humana. Contudo, é evidente que os direitos reconhecidos e traçados na Declaração se aplicam a todos em virtude da comum origem da pessoa, a qual permanece o ponto de referência mais alto do desígnio criador de Deus para o mundo e para a história. Tais direitos estão baseados na lei natural inscrita no coração do homem e presente nas diversas culturas e civilizações. Remover os direitos humanos deste contexto significaria limitar o seu âmbito e ceder a uma concepção relativista, segundo a qual o significado e a interpretação dos direitos poderia variar e a sua universalidade seria negada em nome de contextos culturais, políticos, sociais e até religiosos diferentes. (...)
A vida da comunidade, seja em âmbito interno como internacional, mostra claramente como o respeito dos direitos e as garantias que deles derivam sejam medidas do bem comum que servem para avaliar a relação entre justiça e injustiça, desenvolvimento e pobreza, segurança e conflito. A promoção dos direitos humanos permanece a estratégia mais eficaz para eliminar as desigualdades entre países e grupos sociais, assim como para um aumento da segurança. (...) O mérito da Declaração Universal consiste em ter permitido que diferentes culturas, expressões jurídicas e modelos institucionais convirjam em volta de um núcleo fundamental de valores e, portanto, de direitos. Contudo hoje é necessário duplicar os esforços face às pressões para reinterpretar os fundamentos da Declaração e de comprometer a sua unidade íntima, de modo a facilitar um afastamento da proteção da dignidade humana para satisfazer simples interesses, muitas vezes interesses particulares. (...)
A experiência ensina-nos que com frequência a legalidade prevalece sobre a justiça quando a insistência sobre os direitos humanos os faz sobressair como o resultado exclusivo de resoluções legislativas ou de decisões normativas tomadas pelas várias agências dos que estão no poder. Quando são apresentados simplesmente em termos de legalidade, os direitos correm o risco de se tornarem débeis proposições separadas da dimensão ética e racional, que é o seu fundamento e finalidade. Ao contrário, a Declaração Universal fortaleceu a convicção de que o respeito dos direitos humanos está radicado principalmente na justiça que não muda, sobre a qual se baseia também a força vinculante das proclamações internacionais. Este aspecto muitas vezes é desatendido quando se procura privar os direitos da sua verdadeira função em nome de uma mesquinha perspectiva utilitarista. Dado que os direitos e os consequentes deveres surgem naturalmente da interação humana, é fácil esquecer que eles são o fruto de um sentido comum da justiça, baseado primariamente na solidariedade entre os membros da sociedade e por isso válidos para todos os tempos e para todos os povos. (...) Por isso, os direitos humanos devem ser respeitados como expressão de justiça e não simplesmente porque podem ser feitos respeitar mediante a vontade dos legisladores.
Enquanto a história procede, surgem novas situações e tenta-se relacioná-las com novos direitos. O discernimento, isto é, a capacidade de distinguir o bem do mal, torna-se ainda mais fundamental no contexto de exigências que se referem às próprias vidas e aos comportamentos das pessoas, das comunidades e dos povos. (...) Por outro lado, uma visão da vida firmemente ancorada na dimensão religiosa pode ajudar a obter tais finalidades, dado que o reconhecimento do valor transcendente de cada homem e mulher favorece a conversão do coração, que leva depois a um compromisso de resistir à violência, ao terrorismo e à guerra e de promover a justiça e a paz. Isto fornece ainda o contexto próprio para o diálogo inter-religioso que as Nações Unidas estão chamadas a defender, do mesmo modo com que defendem o diálogo noutros campos da atividade humana. O diálogo deveria ser reconhecido como meio mediante o qual as várias componentes da sociedade podem articular o próprio ponto de vista e construir o consenso em volta da verdade relativa aos valores e objetivos particulares. É característico da natureza das religiões, livremente praticadas, o fato que possam autonomamente conduzir um diálogo de pensamento e de vida. Se também a este nível a esfera religiosa é mantida separada da ação política, obtêm-se grandes benefícios para os indivíduos e para as comunidades. Por outro lado, as Nações Unidas podem contar com os resultados do diálogo entre religiões e tirar frutos da disponibilidade dos crentes de colocarem as próprias experiências ao serviço do bem comum. Compete-lhes propor uma visão da fé não em termos de intolerância, de discriminação e de conflito, mas em termos de respeito total da verdade, da coexistência, dos direitos e da reconciliação.
Obviamente os direitos humanos devem incluir o direito de liberdade religiosa, compreendido como expressão de uma dimensão que é ao mesmo tempo individual e comunitária, uma visão que manifesta a unidade da pessoa, mesmo distinguindo claramente entre a dimensão de cidadão e a de crente. A atividade das Nações Unidas nos anos recentes garantiu que o debate público ofereça espaço a pontos de vista inspirados numa visão religiosa em todas as suas dimensões, incluída a ritual, de culto, de educação, de difusão de informações, assim como a liberdade de professar ou de escolher uma religião. Por isso é inconcebível que crentes devam suprimir uma parte de si mesmos – a sua fé – para serem cidadãos ativos; nunca deveria ser necessário renegar Deus para poder gozar dos próprios direitos. (...) Não se pode limitar a plena garantia da liberdade religiosa à prática livre de culto; ao contrário, deve ser tida em justa consideração a dimensão pública da religião e, portanto, a possibilidade dos crentes desempenharem a sua parte na construção da ordem social. Na verdade, já o fazem, por exemplo, por meio do seu envolvimento influente e generoso numa vasta rede de iniciativas, que vão das universidades às instituições científicas, às escolas, às agências de assistência médica e a organizações caritativas ao serviço dos mais pobres e dos mais marginalizados. A recusa de reconhecer a contribuição à sociedade que está radicada na dimensão religiosa e na busca do Absoluto – por sua própria natureza, expressão da comunhão entre pessoas – privilegiaria indubitavelmente uma abordagem individualista e fragmentaria a unidade da pessoa.
A minha presença nesta Assembleia é um sinal de estima pelas Nações Unidas e é entendida como expressão da esperança de que a Organização possa servir cada vez mais como sinal de unidade entre Estados e como instrumento de serviço para toda a família humana. Ela mostra também a vontade da Igreja Católica de oferecer a contribuição que lhe é própria para a construção de relações internacionais de uma forma que permita que cada pessoa e a cada povo sinta que pode diferenciar-se. A Igreja também trabalha para a realização de tais objetivos por meio da atividade internacional da Santa Sé, de modo coerente com a própria contribuição na esfera ética e moral e com a livre atividade dos próprios fiéis. (...) As Nações Unidas permanecem um lugar privilegiado no qual a Igreja está comprometida a levar a própria experiência “em humanidade”, desenvolvida ao longo dos séculos entre povos de todas as raças e culturas, e a pô-la à disposição de todos os membros da comunidade internacional. Esta experiência e atividade, destinadas a obter a liberdade para cada crente, procuram, além disso, aumentar a proteção oferecida aos direitos da pessoa. Tais direitos estão baseados e modelados sobre a natureza transcendente da pessoa, que permite a homens e mulheres percorrerem o seu caminho de fé e a sua busca de Deus neste mundo. O reconhecimento desta dimensão deve ser fortalecido se quisermos apoiar a esperança da humanidade num mundo melhor, e se quisermos criar as condições para a paz, o desenvolvimento, a cooperação e a garantia dos direitos das gerações futuras. Na minha recente Encíclica Spe salvi, ressaltei “que é tarefa de todas as gerações a sempre nova fadigosa busca de ordenamentos retos para as coisas humanas” (n. 25). Para os cristãos esta tarefa é motivada pela esperança que brota da obra salvífica de Jesus Cristo. Eis por que a Igreja se sente feliz por estar associada à atividade desta ilustre Organização, à qual está confiada a responsabilidade de promover a paz e a boa vontade em todo o mundo. Muito obrigado!

Copyright 2008 - Libreria Editrice Vaticana

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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