É ao mesmo tempo teólogo e pastor. Atrai as pessoas e as faz refletir. “Mas, sobretudo, sabe que é Jesus a questão de vida ou morte para a Igreja”
Sandro Magister é um dos mais abalizados e competentes vaticanistas. Em seu trabalho como jornalista escreve para a revista L´Espresso e é autor do site chiesa (igreja), ligado ao grupo editorial responsável pelo jornal Repubblica, que conta com mais de cem mil leitores, metade dos quais fora da Itália. Enfim, o homem certo para se fazer um balanço dos três anos de pontificado de Bento XVI.
Então, dia 19 de abril de 2005 entrou em cena Bento XVI...
Embora o Cardeal Ratzinger não aparecesse entre os favoritos da mídia mundial, nos altos níveis da Igreja a sua candidatura à sucessão de João Paulo II crescia de modo muito marcante. E no último período alguns fatos relevantes haviam caracterizado a vigília da passagem de pontificado. Como a conferência feita na noite do dia primeiro de abril de 2005, em Subiaco, sobre a Europa e o cristianismo. João Paulo II agonizava, mas Ratzinger não cancelou o compromisso, evidentemente porque considerou que se tratava de uma mensagem de grande importância naquele momento crucial. Anteriormente houve a meditação, por ele escrita, para a Via-Sacra, um texto fortíssimo. Enfim, acrescento a presidência, como decano do colégio cardinalício, das reuniões dos cardeais antes do Conclave: a competência com que conduziu os trabalhos causou muito boa impressão entre os colegas. A confirmação de tudo veio com a eleição, rápida e substancialmente sem adversários. Mas isso não significou automaticamente um apoio com a mesma força, com a mesma intensidade de antes: observo, na Igreja, um consenso mais ou menos tênue, mas hoje ligeiramente maior do que no início.
Quais são as passagens fundamentais desses três anos?
Bento XVI logo se apresentou ao mundo com um perfil particular: não procurou imitar as formas de expressão do predecessor; antes, usou um código seu, que o caracteriza como o que sempre foi: um teólogo que se tornou Papa. Na história da Igreja, isso é um tanto inusitado. Creio que o primeiro Papa que poderia ser definido assim (o próprio Bento XVI se expressou nesses termos, numa recente audiência de quarta-feira) foi Leão Magno. Bento XVI usa a sua extraordinária competência teológica não para ser ouvido nas academias ou entre os especialistas em teologia, mas para dizer aos simples as grandes verdades da fé cristã – claro, sem simplificá-las. É o seu traço fundamental. Clara, sob esse ponto de vista, é a forma de pergunta provocativa e resposta seca, que ele adotou no encontro com os padres, com os jovens ou com as crianças da primeira comunhão, na praça de São Pedro: perguntas nada simples, às quais deu respostas nada banais, muito eficazes e com argumentos muito desenvolvidos. É um Papa que diz coisas de grande alcance e leva o povo comum a pensar. A verificação disso é fácil, basta misturar-se à multidão quando ele faz suas pregações – eu o faço com frequência. Uma atenção impressionante, as palavras ecoam em meio a um silêncio marcante, pois além da sua voz só se ouve o barulho das águas jorrando na fonte. As pessoas prestam atenção ao que ele diz, sempre esperam algo importante. É o dado surpreendente de um Papa avaliado como frio; aliás, as presenças em seus encontros públicos são muito altas, superiores até às de João Paulo II.
Como se explica essa popularidade tão espetacular?
Há um elemento autobiográfico. Penso na catequese de Santo Agostinho. Bento XVI traçou um perfil desse santo que reproduz a sua própria aventura espiritual. Destacou que Agostinho, depois de se converter ao cristianismo, sonhava retirar-se com alguns amigos para uma espécie de mosteiro, para se dedicarem integralmente aos estudos e à contemplação, mas não pôde fazê-lo porque se tornou bispo de Hipona..., essa me parece justamente a autobiografia de Ratzinger! O professor que gostaria de concluir seus dias com anos de estudo tranquilo é chamado a guiar a Igreja universal. Mas, tal como Agostinho, teólogo e pastor, procurou e procura transmitir toda a sua riqueza interior e de estudos às pessoas simples. Sabe perfeitamente que há uma demanda fortíssima no meio do povo, tomado atualmente por uma grande desorientação cultural: a cultura de massa, hoje, que derruba as certezas e induz a confusão.
Estão aí as razões de tanta hostilidade em relação a ele?
Contestam-no, mesmo sem discutir as coisas que eles diz. Intuem que ele diz coisas muito difíceis de fazer e, então, rejeitam discuti-las, e até mesmo se negam a repeti-las. E se fecham num rejeição preconceituosa do Papa “antimoderno”. Bento XVI não só expõe grandes temas que João Paulo II havia antecipado (e lembro que também ele foi contestado por muito tempo e que só na última parte da sua vida foi “adotado” pela mídia), mas mostra como eles são essenciais e enraizados nas questões capitais da história do nosso tempo. Ele está analisando tudo, está fazendo ver que tudo se mantém, que tudo está interligado. Fala de Deus e da morte – o que há de mais decisivo? Só com um artifício se pode evitar a discussão dessas coisas, e o artifício é justamente ignorá-las, não reproduzi-las, não levá-las em conta. Mas é ele quem garante o sucesso comercial dos seus inimigos, basta ir às livrarias. Um paradoxo!
O Papa e os grandes da Terra... Como é o diálogo dele com os poderosos?
Certamente a imensa autoridade adquirida pela Igreja com João Paulo II não se enfraqueceu, ainda que Bento XVI não faça da “geopolítica religiosa” um dos pontos cardeais do seu pontificado. Os discursos mais importantes não são aqueles ao corpo diplomático, nem quando recebe os embaixadores ou mesmo quando viaja. A visão de que se faz porta-voz é um pouco diferente, é mais de teologia da história do que de geopolítica. Desse ponto de vista, é mais agostiniano que tomista; é a visão do De Civitate Dei. A cidade de Deus interliga-se com a cidade terrena de um modo indivisível, indistinguível, durante a caminhada da Igreja peregrina. Nesse mundo em que tudo está interligado e confuso, ele desperta as consciências para que sejam capazes de discernir. A relação com o mundo externo é, sobretudo, de tipo religioso e cultural, não de tipo político. Pensemos no relacionamento com os países islâmicos. Sua tese é de que entre as religiões, em particular entre cristianismo e islã, o problema não é tentar uma impossível e insensata mediação teológica; toda religião tem a sua fé, precisa mantê-la e dizê-la de modo claro e sem hesitações. O entendimento deve acontecer no terreno que é comum a todos, qualquer que seja a fé que professem: os grandes princípios que estão inscritos no coração de cada homem e que são a lei natural, os dez mandamentos, os direitos humanos. Podem ter vários nomes, mas para ele é aí que pode acontecer um fecundo entendimento.
Duas encíclicas, sobre a caridade e a esperança. Em breve, a terceira. Como elas marcam esse pontificado?
As duas encíclicas são certamente os grandes pilares da sua arquitetura magisterial. A elas eu juntaria alguns grandes discursos. Aquele à Cúria Romana de dezembro de 2005, sobre o tema da tradição na Igreja; o de Regensburg; o famoso discurso de La Sapienza. Essas cinco passagens representam o núcleo essencial do pensamento de Bento XVI (devo também dizer que considero a Spe salvi uma obra-prima). O itinerário, porém, não ficará completo se não colocarmos na lista também o livro Jesus de Nazaré. Escrever uma obra sobre Jesus significa dizer que a questão de Jesus é, de fato, uma questão de vida ou morte para a Igreja, que aquele Homem é o centro de tudo. Significa saber que a figura de Jesus está em perigo, no sentido de que, de um lado, há uma fé que tende a ofuscar a verdadeira identidade dele (pensemos nos protestos que acolheram a Dominus Iesus, e não fora, mas dentro da Igreja); do outro, há uma rejeição ostensiva. O Papa sentiu a urgência dramática dessas atitudes. E quis enfrentá-las de peito aberto, apresentando Jesus em sua essencialidade. O fez por meio de um livro, instrumento universal que pode chegar a todos, sem filtros e mediações. Ele bem sabe que o seu ensinamento não chega assim tão facilmente às pessoas comuns. Tomemos as catequeses das audiências de quarta-feira ou suas homilias: são discursos de uma beleza impressionante, mas que só alcançam, de fato, um pequeno círculo de destinatários.
Um dos grandes temas de Bento XVI é a liberdade religiosa: é preciso dizer que em grande parte do mundo de maioria muçulmana não se veem progressos nesse campo. Aliás, se pensarmos no Iraque, devemos mesmo falar abertamente de perseguição...
A questão é muito séria, porque nós podemos nos fixar otimisticamente apenas naquilo que acontece entre estudiosos e líderes religiosos (por exemplo, com a carta dos 138), mas no campo a situação é muito mais preocupante hoje do que em períodos anteriores. Durante séculos os cristãos conseguiram sobreviver no mundo islâmico e justamente hoje, em certos países, estão ameaçados de extinção. Nem a própria Igreja parece estar muito consciente disso, muitos continuam distraídos e indiferentes. Para não falar da mídia e dos governos: há uma grande mobilização pela causa budista, o que é correto. Mas quem está defendendo os cristãos?
O seu trabalho na vinha do Senhor por Paolo Perego 19 de abril de 2005. O colégio cardinalício reunido na Capela Sistina para o Conclave elege, em terceira votação, o novo Papa: Joseph Ratzinger, que aparece na sacada pontifícia com o nome de Bento XVI. 18 - 21 de agosto de 2005. Primeira viagem: Colônia, na Alemanha. Por ocasião da XX Jornada Mundial da Juventude, o Papa encontra mais de um milhão de jovens. 25 de dezembro de 2005. A primeira encíclica, Deus caritas est. 25 - 28 de maio de 2006. Bento XVI vai à Polônia. Na terra de seu predecessor, João Paulo II, o Pontífice visita também o campo de concentração de Auschwitz-Birkenau onde se reúne em oração: “Atrás destas lápides está selado o destino de incontáveis seres humanos. Eles agitam nossa memória e nosso coração. Desejam levar a razão a reconhecer o mal como mal e a negá-lo: querem suscitar em nós a coragem do bem”. 8 - 9 de julho de 2006. Valência. O Papa encontra as famílias em seu Encontro Mundial. 9 - 14 de setembro de 2006. Baviera. O retorno à terra natal não acontece sem causar polêmica. “Expandir a razão”: é o convite que o Papa lança em seu discurso na Universidade de Regensburg, mas é contestado por grupos islâmicos tanto quanto ignorado por grande parte do mundo intelectual ocidental. Nas palavras de Bento XVI, um corajoso ato de estima pela razão, há muito tempo “encarcerada”, e o apelo a recuperar um uso correto dela. 28 de novembro-1o de dezembro de 2006. Visita à Turquia. Para Bento XVI “não é uma viagem política mas uma viagem pastoral”, e ocasião para consolidar o diálogo com ortodoxos e muçulmanos. O Papa participa da celebração da Divina Liturgia em rito ortodoxo celebrada pelo patriarca Bartolomeu I. Depois, visita a Mesquita Azul, acompanhado pelo Gran Muftì. 27 de fevereiro de 2007. Exortação apostólica pós-sinodal Sacramentum caritatis. 24 de março de 2007. Encontra o movimento Comunhão e Libertação na praça de São Pedro. Por ocasião dos 25 anos do reconhecimento pontifício da Fraternidade de CL, o Papa se dirige aos 100 mil presentes: “Convido-os a continuarem neste caminho, com uma fé profunda, personalizada e firmemente radicada no Corpo de Cristo vivo, a Igreja, que garante a contemporaneidade de Jesus conosco”. 9 - 14 de maio de 2007. Viagem ao Brasil por ocasião da V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe (Celam). No dia 13 de maio, celebra a missa a céu aberto na esplanada do Santuário de Aparecida, diante de centena de milhares de fiéis. 7 - 9 de outubro de 2007. O Papa vai à Áustria para uma peregrinação por ocasião dos 850 anos da fundação do Santuário de Mariazell. 30 de novembro de 2007. Encíclica Spe salvi. 1o. de dezembro de 2007. Encontro com os participantes do Fórum das ONGs de inspiração católica. 15 de janeiro de 2008. Roma. Uma vez mais, o tema é a razão. Torna-se público o discurso que Bento XVI pronunciaria na inauguração do ano acadêmico da Universidade La Sapienza dois dias depois. Constrangido por algumas polêmicas a cancelar sua participação, o Papa fecha seu discurso dizendo que “é sua missão manter desperta a sensibilidade pela verdade; convidar sempre de novo razão a pôr-se à procura da verdade, do bem, de Deus e, neste caminho, estimulá-la a entrever as luzes úteis que foram surgindo ao longo da história da fé cristã e, assim, sentir Jesus Cristo como a Luz que ilumina a história e ajuda a encontrar o caminho rumo ao futuro”. 29 de fevereiro de 2008. Encontro com os participantes da assembleia plenária do Pontifício Conselho Cor Unum pela promoção humana e cristã. O Papa se dirige aos presentes, convidando-os a serem testemunhas do valor da vida, do amor e de Deus. |
Credits /
© Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón