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Passos N.90, Fevereiro 2008

IGREJA / BRASIL - CAMPANHA DA FRATERNIDADE 2008

As exigências do coração,
a defesa da vida e a acolhida

por Francisco Borba Ribeiro Neto

Notas para uma melhor compreensão da Campanha da Fraternidade deste ano

A Campanha da Fraternidade de 2008 tem como tema “Fraternidade e defesa da vida”, retomando uma preocupação básica de João Paulo II, em sua encíclica Evangelium Vitae. Nessa encíclica, o papa apontava para o fato de que ameaças à vida, como o aborto e a eutanásia, quando aprovados socialmente e permitidos por lei, significam a vitória de uma “cultura da morte”, onde os próprios valores se invertem. A morte passa a ser considerada um bem e a vida, um mal. É melhor que a criança indesejada nem chegue a nascer, que o idoso e o doente incômodos morram logo, de modo que não atrapalhem a vida dos demais.
Mas, se a vida se tornou um mal, algo indesejável, com quais critérios poderemos descobrir o que realmente é bom? A “cultura da morte” não significa apenas a dolorosa eliminação de crianças abortadas, de velhos e doentes, mas a subversão dos valores que orientam a vida da sociedade, e a construção de um mundo onde a dignidade da pessoa humana tende a ser cada vez menos reconhecida.
Por isso, o tema da defesa da vida é tão valorizado pela Igreja. Não se trata de uma opção ideológica que procura disfarçar a necessidade de superar a pobreza e as desigualdades sociais, ou de uma insensibilidade que coloca um princípio abstrato acima da situação objetiva das pessoas que sofrem (como as jovens grávidas que querem abortar). Trata-se de reconhecer que o valor da vida humana está acima de qualquer outro na sociedade, que o esforço para superar a pobreza e as desigualdades acabará sendo instrumentalizado se a dignidade de cada ser humano não for reconhecida como o bem maior, que a vida daquela criança que está por nascer é um fato carregado de esperança e que a felicidade da mãe não poderá ser construída a partir da morte do filho.

Olhar para a própria experiência
Hoje em dia, existe um intenso debate na sociedade sobre os chamados temas bioéticos, como a legalização do aborto. Ainda que até os partidários do aborto às vezes tenham dificuldade de reconhecer, existe subjacente a ideia de que – em certas condições – o aborto seria a solução que deixaria a mulher mais feliz e realizada. Pois se não fosse assim, não teria sentido legalizar um procedimento que só traz infelicidade e morte.
Quais são as causas dessa situação, em que até pessoas com boa intenção pensam que a morte seja um bem? De onde vem essa inversão de valores? O texto-base dessa Campanha da Fraternidade apresenta como primeiro problema a redução da razão, na qual a busca por um significado para a vida, de um sentido para o amar e o sofrer, é deixada de lado, dando lugar ao imediatismo e ao pragmatismo. Essa razão reduzida cria uma visão parcial e insuficiente da realidade, na qual o ser humano busca apenas fugir da dor e buscar o prazer instintivo. Mas esse comportamento trará consequências trágicas para sua própria busca de felicidade, pois a realização de nossa humanidade implica em mais do que fugir da dor e buscar o prazer.
Essa racionalidade limitada não permite, também, reconhecer o que é, verdadeiramente, o amor e qual é a sua dinâmica. Como Bento XVI descreveu muito bem na encíclica Deus caritas est, o amor é formado por desejo pelo outro (eros), mas também por doação de si ao outro (ágape). Entretanto a razão limitada só vê a instintividade do sujeito; e o amor só aparece em sua dinâmica de uso e posse do outro – excluindo seu aspecto de doação. Essa razão limitada e esse amor desnorteado não são capazes de perceber a sacralidade da vida humana e a dignidade da pessoa. A vida cotidiana se amesquinha, as pessoas passam a ser usadas e instrumentalizadas, permitindo toda a sorte de ataques àqueles que são mais fracos e indefesos.
Quase como que ecoando a insistência com que padre Julian Carrón (presidente da Fraternidade de Comunhão e Libertação) tem sugerido para que tudo seja comparado com aquelas exigências fundamentais que se encontram em nosso coração (exigências de felicidade, de beleza, de justiça, de bem), o texto-base dessa Campanha da Fraternidade – que trabalha com o método Ver-Julgar-Agir – coloca, no início de seu Ver, a necessidade de que cada um olhe para si mesmo, para sua experiência de ser pessoa. Quando olha para a sua própria experiência, ela percebe o que realmente deseja no fundo de seu coração e também a falsidade que se esconde por trás das respostas aparentemente fáceis, porém fundamentalmente desumanas, da mentalidade dominante.
O que as pessoas desejam não é acabar com a vida dos outros, porque essas vidas lhes atrapalham, e sim que toda a vida seja cheia de sentido, de valor. Por isso, propostas como as do aborto e da eutanásia não podem ser adequadas para ninguém: além de matarem pessoas concretas, frustram o verdadeiro desejo de realização que está no coração dos que continuam vivendo.

Uma questão de natureza
A defesa da vida, vista a partir das exigências mais profundas do coração de cada um de nós, não é uma opção de obediência a alguns princípios de fé abstratos e que se sobrepõem à própria vida. Trata-se de uma opção racional e que nasce de um olhar sincero à própria natureza humana, ao modo de ser próprio do homem.
O relativismo dos valores justifica as ameaças à vida sob a alegação de que não podemos saber o que é bom para os outros (e nem mesmo para nós próprios!). Porém, quando olhamos para as exigências de felicidade, de beleza, de justiça, de bem que estão no coração de cada um de nós, percebemos que essas exigências não podem ser só de alguns e não de outros. Pode ser que nem todos formulem esse desejo profundo de realização da mesma maneira, mas todos o têm e podem reconhecer essa natureza comum aos demais.
Ainda que não fale no senso religioso, o texto ajuda a entender a relação tão mal compreendida entre religião e defesa da vida. Perceber que o valor da vida e da pessoa humana está acima de qualquer outra coisa não depende de uma opção de fé, mas apenas de um olhar sincero à própria natureza humana. Contudo, quem olha com sinceridade para sua natureza não pode deixar de encontrar, em seu coração, o desejo por um totalmente Outro que corresponda integralmente a nossos anseios.
Por isso, quando alguém opta pelos valores de uma “cultura da morte”, tem que esquecer, que negar, alguma coisa de sua própria humanidade – e , por isso, não pode aceitar verdadeiramente seu próprio senso religioso. Mas alguém que olhe sinceramente para si e descubra seu próprio senso religioso, imediatamente tenderá a reconhecer também o valor da vida e da pessoa humana.
O texto-base irá recuperar a história da Igreja e os documentos do magistério para mostrar como os cristãos sempre lutaram pelo reconhecimento de uma dignidade da pessoa e no reconhecimento dos direitos que nascem dessa natureza comum a todos os seres humanos. Nesse sentido, olhar para as exigências do próprio coração não aparece como fazer um caminho individualista, mas como fazer parte de toda a história do povo cristão.

A resposta está na acolhida
Contudo, se as pessoas não querem que se pratique a eutanásia com seus doentes, se o maior desejo das grávidas não é abortar, o que fazer naquelas situações dolorosas, em que a gravidade da doença, a pobreza, ou até mesmo as condições psicológicas parecem não permitir que os bebês, os doentes ou os velhos sejam aceitos?
A resposta está na acolhida. A opção por uma “cultura da morte” acontece não simplesmente porque a pessoa se encontra em uma situação difícil, até mesmo desesperadora. Essa opção acontece porque a pessoa se sente sozinha, não faz uma experiência de ser acolhida e, não sendo acolhida, também não se descobre capaz de acolher o outro.
Por isso, experiências como as das Famílias para a Acolhida (associação de famílias que se ajudam na experiência de adoção e guarda de crianças, hospedagem de doentes, idosos ou adolescentes com dificuldades diversas) são o grande modelo de como se defender a vida. Nesse caminho, somos convidados a acolher o outro tal qual ele é, de forma gratuita, sem esperar nada dele. Esse acolhimento desperta uma positividade diante do real que é capaz de mudar as situações mais difíceis, não porque a dificuldade acabe, mas porque uma novidade positiva passa a determinar a dinâmica da vida.
Certo, num clima de acolhimento, as dificuldades sempre serão menores, porém o mais importante é que a pessoa descobre que a sua vida tem valor, e que, portanto, a vida do outro também tem valor. A expansão da razão, que se torna capaz de olhar integralmente a realidade, não nasce de um exercício intelectual, mas dessa postura de acolhida gratuita ao outro.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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