Vai para os conteúdos

Passos N.87, Outubro 2007

CULTURA - São Paulo / Cultura e Ciência

Um encontro para expandir a razão

por Francisco Borba *

Cerca de mil pessoas, entre estudantes universitários, movimentos sociais e público em geral, refletiram junto com palestrantes de várias instituições universitárias como a USP, a Unifesp, a UFMG, a UFRJ e a PUC-SP, sobre os limites da racionalidade moderna e a necessidade de expandi-la


Nos dias 11 e 12 de agosto, no Centro Universitário da FEI, em São Paulo, aconteceu o evento “Cultura e Ciência: Expansão da Razão – Para a Melhoria da Educação Universitária”. Promovido por uma associação de professores universitários, a Companhia das Obras – Universidade, o encontro contou com mais de mil participantes, entre professores e estudantes universitários. Recuperava assim o espírito que deu origem à universidade: uma comunidade de pessoas unidas pelo desejo em comum da busca pelo saber.

Seu objetivo era refletir sobre a expansão do uso da razão diante dos limites e das contradições da sociedade moderna – um tema caro ao Papa Bento XVI, que tem falado sobre ele em vários de seus discursos. Durante dois dias belos e intensos, se realizou uma reflexão interdisciplinar sobre o papel da razão na ciência e no mundo contemporâneo, fazendo uma síntese entre beleza, conhecimento científico e valorização da cultura.



A abertura da razão e a beleza

Iniciando os trabalhos, o professor Francisco Borba, do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP, chamou a atenção para a necessidade de expandir a nossa capacidade de pensar. “O problema da nossa razão moderna é que não nos permite perceber o mundo na sua totalidade. Todas as coisas têm relação entre si e todas as coisas que acontecem são sinais. Os sinais, por sua vez, representam para nós uma tarefa, uma missão: eles nos conduzirão ao sentido último de nossa vida”.

Procurando explicitar melhor o significado dessa abertura da razão proposta por Bento XVI, se valeu de um poema do argentino Jorge Luis Borges, “As causas”, onde o autor mostra que toda a história do mundo e da humanidade foi necessária para o encontro entre dois amantes. “A racionalidade moderna é incapaz de perceber esse sentido da história e, com isso, também é incapaz de compreender o que é verdadeiramente o amor. Só uma razão assim aberta é capaz de procurar e encontrar a Deus e, ao mesmo tempo, reconhecer n’Ele sua origem”, disse.

Na primeira palestra o artista plástico Cláudio Pastro, responsável pelo projeto artístico da Basílica de Aparecida e criador da imagem do Cristo encomendada pelo Papa para as comemorações do Terceiro Milênio, ao sentar-se à mesa e, antes de falar, fez-nos ouvir um trecho da ópera “Tristão e Isolda”, de Wagner, interpretada pela grande soprano Maria Callas. “A beleza co-move”, explica Pastro, nos colocando na posição justa para ouvir todas as palestras do dia. Durante pouco mais de duas horas ele mostrou seu trabalho, contou sua história de vida, falou sobre o culto ao feio tão em voga atualmente e explicou porque a beleza nos fere.

Disse que “no fundo todo artista é cristão e todo cristão é artista, pois ambos buscam a beleza. Porém, nos ensinaram a ouvir, falar e escrever, mas não nos ensinaram a olhar. O olhar forma – é através dele que somos atraídos pela beleza. Levamos em conta só as necessidades básicas, mas o homem é um ser completo, tem direito à beleza. Em todas as culturas, a beleza serena a alma, purifica o ser, fere, nos permite o encontro com o Invisível. Os feridos pela beleza repousam em outra beleza: a Beleza”. Sobre o dom da arte, Pastro explica que, para ele, “as imagens que desenho não são feitas por mim, sou um pincel nas mãos do Espírito Santo” e conta que entendeu isso quando pintava uma Nossa Senhora na parede de uma maternidade: enquanto estava pendurado na escada viu uma mãe vir e oferecer seu filho à Virgem que tinha acabado de pintar e assim entendeu que ele era só um instrumento.



O cientista e o missionário mostram como expandir a razão

Na tarde do primeiro dia, as palestras continuaram com o geógrafo Aziz Nacib Ab’Saber, professor emérito da USP, membro titular da Academia Brasileira de Ciências, pesquisador engajado nas questões ambientais e sociais. O professor Aziz é um dos principais responsáveis pela compreensão da evolução dos ecossistemas brasileiros ao longo do tempo geológico. Pode-se dizer, sem exagero, que a ciência não veria a dinâmica ecológica brasileira como vê hoje sem a sua contribuição.

Num bate-papo com os professores Ana Lydia Sawaya, da Unifesp, e Dalton Luis de Paula Ramos, da USP, o professor Aziz mostrou como uma razão capaz de abarcar a realidade foi se estruturando ao longo de sua vida pessoal e profissional. De forma comovente, contou como, ainda criança, foi levado a cavalo, por seu pai, de sua cidade natal até o litoral, para conhecer o mar. O impacto com a diversidade de paisagens que encontrou naquela viagem o marcou para sempre, a ponto de transformar sua vida num esforço contínuo para compreendê-la. Além disso, contou como foram os encontros com seus mestres na ciência, como eles o ensinaram a observar os detalhes das paisagens, a percebê-los como sinais de fenômenos maiores e mais complexos. Assim, um cacto perdido num morro coberto por florestas, uma faixa de pedras visível num barranco na beira da estrada, se tornaram materiais para a confecção de uma teoria capaz de mudar nosso modo de ver a natureza no Brasil.

Em um passo que não deixa de ser surpreendente para a mentalidade moderna, a professora Marina Massimi, da USP, conversou com os professores Miguel Mahfoud e Raquel Martins, da UFMG, sobre a racionalidade em José de Anchieta. O que tem a razão a ver com um personagem histórico como ele? Marina mostrou que, por traz de uma vida que definiu os rumos da história de São Paulo, se esconde uma razão adequada, capaz de criar laços construtivos entre os diversos elementos da realidade, como o patrimônio cultural europeu, que Anchieta trazia, e o patrimônio cultural das tribos indígenas encontradas por ele.



Na trilha de Bruno Tolentino

A manhã do dia seguinte foi inteiramente dedicada a uma homenagem ao poeta Bruno Tolentino, recentemente falecido. Conhecido por seu caráter polêmico, Tolentino foi o poeta brasileiro mais premiado dos últimos 20 anos, considerado por alguns o maior poeta em língua portuguesa desde Camões.

A riqueza da obra de Tolentino reside na qualidade de seus versos, dotados de ritmo e musicalidade raros na literatura de língua portuguesa, mas também na complexidade das questões por ele abordadas. Ele colocou como alvo de sua arte não apenas a crítica a uma estética destituída de sentido, mas sim uma reflexão profunda sobre os limites da racionalidade moderna e a tendência de nossos tempos em substituir o real por uma idéia abstrata. Se, por um lado, essa substituição cria um aparente conforto, pois podemos manipular essa idéia conforme pareça mais oportuno para nós, por outro lado leva à dolorosa incapacidade de viver o mundo tal qual ele é, de compreender o que é a verdade e vivê-la em toda a sua beleza.

A sessão de homenagem foi constituída pela apresentação de um audiovisual com obras de arte e músicas que Bruno Tolentino considerava particularmente importantes para a compreensão tanto da cultura moderna quanto de sua obra, seguida por uma leitura de algumas de suas poesias e, por fim, de uma análise de suas obras feitas pelo jornalista Martim Vasques da Cunha e pela professora da UFRJ Juliana Pasquarelli Perez.

Por meio das várias sessões, o encontro mostrou como é necessário expandir a razão – ultrapassando sua dimensão formal e instrumental – para vê-la como inteligência que busca as relações e o significado de todas as coisas. Mostrou que o meio universitário deve oferecer uma proposta educativa digna desta expansão, mas para isso deve aceitar essa possibilidade de um olhar mais amplo sobre a realidade. Foi desse olhar e dessa razão que deram testemunho os mestres convidados para o evento.

* Colaboraram Carolina Oliveira e Rafael Marcoccia

 


MOSTRAS ROSA BRANCA E MOVIMENTO “EDUCAR PARA A VIDA”


A DIMENSÃO COMUNITÁRIA

A redescoberta da razão não é só intelectual e pessoal, por mais bela e essencial que esta atividade possa se revelar. Ela implica também uma dimensão comunitária, na geração de um povo que vive a partir dessa razão. Isso foi testemunhado no encontro a partir do trabalho de dois movimentos de universitários que organizaram mostras monitoradas.

No hall de entrada da FEI, universitários de Comunhão e Libertação apresentaram a mostra Rosa Branca que conta a história de cinco universitários alemães e alguns professores que iniciaram um movimento contra Hitler e o nazismo, em plena guerra. Eram jovens que se reuniam para escutar música, ler poesias e livros e que ao poucos foram percebendo a falsidade da proposta nazista – até que decidiram panfletar na universidade contra o regime, e assim foram presos e mortos. É impressionante encontrar nos relatos escritos o desejo de beleza, de justiça, de liberdade que viveram – como um deles escreveu: “Nós sabemos que eles estão errados e nós queremos ficar do lado dos vencedores”.

A outra mostra expunha a história do Movimento Faculdades: “Educar para a Vida”, da Associação dos Trabalhadores Sem Terra de São Paulo. Foi preparada por jovens participantes deste movimento, especialmente para o encontro. A história dessa comunidade é bastante peculiar. Surgiu na periferia de São Paulo, onde famílias se organizaram para conseguir construir suas casas e criaram verdadeiros bairros estruturados a partir de uma experiência de amizade e lutas em comum. Quando os jovens criados nesse ambiente começaram a sentir a necessidade de realizar estudos universitários, diante da dificuldade de acesso às faculdades públicas e do alto custo das escolas privadas, se reuniram para viabilizar seu ingresso em algumas universidades. Hoje, são milhares de estudantes universitários que estudam com bolsas de estudo, vivem uma realidade de solidariedade e fazem a experiência de poder construir seu futuro quando lutam juntos.

Curiosamente, esse movimento recapitula, no contexto da periferia urbana paulista, o espírito das universidades medievais, pois também essas se constituíam como associações de estudantes que, desejosos de estudar, se organizavam para buscar seus professores e conseguir bolsas para estudar e se manter. Assim, esses jovens – ao preparar sua mostra – perceberam como sua luta e seu esforço estão inseridos numa luta pela verdade e pela realização da vida de cada pessoa que constrói, ao longo das gerações, as mais belas e complexas criações da inteligência humana.

 

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

Volta ao início da página