Da carta aos católicos chineses ao documento sobre o Conclave, passando pelo missal tridentino e a nota sobre as confissões cristãs, há um fio condutor que liga os recentes passos do Pontífice. E marcará os próximos
Três documentos assinados por ele, mais um que passou por sua aprovação: as semanas que precederam a partida de Bento XVI para as férias de agosto foram marcadas por uma aceleração de decisões importantes, como a belíssima Carta aos católicos chineses, o documento que liberaliza o missal tridentino de 1962, o Motu proprio que restabelece a necessidade de maioria de dois terços dos votos para a eleição do Papa e a nota da Congregação para a doutrina da fé sobre a Igreja católica em relação às demais confissões cristãs. Os textos, destinados a marcar o pontificado do Papa Ratzinger, tiveram, na verdade, histórias diferentes e sua publicação a poucos dias um do outro é uma circunstância casual. Mas é possível encontrar um fio unitário que os atravessa, e que, provavelmente, será retomado também nos próximos meses: é a vontade de reconciliação e de diálogo, que Bento XVI já manifestou em várias ocasiões. Vontade de reconciliação, isto é, de não deixar passar nenhuma tentativa de costurar alguns rasgos do passado e favorecer a unidade da Igreja.
Ratzinger é um Papa pastor, que estende a mão em muitas direções tendo no coração apenas o essencial. Durante a missa para o início do ministério como Bispo de Roma, ele afirmou: “O meu verdadeiro programa de governo é não fazer a minha vontade, não perseguir idéias minhas, pondo-me contudo à escuta, com a Igreja inteira, da palavra e da vontade do Senhor e deixar-me guiar por Ele, de forma que seja Ele mesmo quem guia a Igreja nesta hora da nossa história”. Na carta de apresentação do Motu proprio, carta enviada a todos os Bispos, em que ele liberaliza o antigo missal, está contida exatamente essa chave de leitura, que vai além do próprio documento e que também permite acolher indicações para uma perspectiva do futuro do pontificado: “Trata-se de chegar a uma reconciliação interna no seio da Igreja. Olhando para o passado, para as divisões que no decurso dos séculos dilaceraram o Corpo de Cristo, tem-se continuamente a impressão de que, em momentos críticos quando a divisão estava nascendo, não fora feito o suficiente por parte dos responsáveis da Igreja para manter ou reconquistar a reconciliação e a unidade; fica-se com a impressão de que as omissões na Igreja tenham a sua parte de culpa no fato de tais divisões terem se consolidado. Este olhar ao passado impõe-nos hoje uma obrigação: realizar todos os esforços para que todos aqueles que nutrem verdadeiramente o desejo da unidade tenham possibilidades de permanecer nesta unidade ou de encontrá-la de novo”.
Litterae communionis na China
A esperada carta de Bento XVI à Igreja católica na China foi publicada no dia 30 de junho. Representa um apelo em favor da unidade da Igreja chinesa – que é uma só e não está dividida, como continua a afirmar a mídia ocidental – e também uma mão estendida às autoridades de Pequim, junto com a apresentação de indicações concretas para resolver alguns problemas existentes, sem criar novas fraturas ou tensões. O Papa declarou o fim da validade das “faculdades especiais” concedidas, há vinte anos, pela Santa Sé, que permitiam a ordenação de novos bispos “clandestinos”, e convidou as duas comunidades – a chamada “oficial” e a “subterrânea” – à plena reconciliação. Explicou que a finalidade da Associação Patriótica, o organismo governamental que pretende controlar a Igreja, tornando-a autônoma, autogestiva e independente de Roma, “é inconciliável com a doutrina católica”; convidou os bispos “oficiais” (quase todos reconhecidos por Roma, ainda que inicialmente consagrados sem a aprovação papal) a tornarem público o seu reconhecimento do Papa; explicou aos chamados “clandestinos” que a Igreja não foi feita para a clandestinidade. Também esclareceu que a Igreja “não está ligada a nenhum sistema político” e, portanto, também na China “tem a missão não de mudar a estrutura ou a administração do Estado”, mas de anunciar Jesus Cristo. Essa é uma passagem fundamental, por garantir a Pequim que de fato os católicos, enquanto tais, exigem o respeito à liberdade religiosa e não trabalham, sob o impulso do Vaticano, para derrubar o regime. De fato, “a Igreja não pode e não deve tomar a frente da luta política para realizar a sociedade mais justa possível”, embora também “não possa e não deva ficar à margem da luta pela justiça”. E é claro que a Igreja “pede ao Estado que garanta aos cidadãos católicos o pleno exercício da sua fé, respeitando a autêntica liberdade religiosa”.
O missal tridentino
Uma semana depois, no sábado 7 de julho, foi publicado o Motu proprio “Summorum Pontificum”, com o qual Bento XVI liberaliza o missal pré-conciliar em latim, que nunca foi oficialmente abolido ou proibido, tornando efetiva uma vontade que já havia sido expressa por João Paulo II, que concedeu especial indulto aos fiéis ligados ao velho rito. O documento, que entrou em vigor no dia 14 deste mês de setembro, festa da Exaltação da Santa Cruz, estabelece que os “fiéis aderentes à precedente tradição litúrgica” se dirijam diretamente ao pároco para pedir a missa tridentina e para que possam ser celebrados, além da liturgia dominical, também os sacramentos. O Motu proprio veio acompanhado de uma carta do Papa aos bispos: Bento XVI explica que a missa da reforma litúrgica “é e continua sendo a forma normal” do rito romano, enquanto que a forma tridentina é considerada “extraordinária”. E recorda também que alguns fiéis se aproximaram da antiga liturgia “porque em muitos lugares não se celebrava de um modo fiel às prescrições do novo missal, sendo ele entendido inclusive como uma autorização ou até mesmo um incentivo à criatividade, a qual acabou levando a deformações da liturgia, a um ponto quase insuportável”. Falando por “experiência direta”, Ratzinger recorda que “viu o quanto foram feridas, pelas deformações arbitrárias da liturgia, pessoas que estavam totalmente enraizadas na fé da Igreja”.
Esse documento papal, que já vinha sendo preparado há muito tempo, provocou muitas reações e muitas polêmicas. Na realidade, não significa um retrocesso, nem é “uma ofensa” ao Concílio. Desde sempre a unidade da Igreja católica expressou-se numa pluralidade de ritos e a decisão papal é uma outra mão estendida visando à reconciliação com o mundo tradicionalista. Um gesto de liberalidade no sulco da justa interpretação do próprio evento conciliar, que não pode ser considerado como uma ruptura com a tradição.
A reforma do conclave
No último dia 26 de junho, o Papa decretou uma mini-reforma eleitoral, cancelando um dos pontos mais inovadores (e contestados) da lei sobre o conclave promulgada por João Paulo II em 1996, com a Constituição apostólica Universi Dominicis gregis: na futura eleição papal não será mais possível designar um Pontífice por maioria absoluta de votos (metade mais um dos sufrágios), sendo sempre necessária maioria de dois terços dos consensos, tal como sempre existiu desde que se instituiu o conclave. Bento XVI não quis reescrever as normas da eleição, limitando-se a modificar o parágrafo 75 do texto do predecessor, no qual se previa que depois de um certo número de escrutínios (33 ou 34) e de dez a treze dias de votações, os purpurados podiam abandonar a maioria de dois terços e passar para a maioria absoluta. Também pode parecer remota a hipótese de um conclave que se prolongue por mais de dez dias (jamais ocorreu isso nos últimos 150 anos). A decisão de excluir a eleição por maioria absoluta restaura uma regra que sempre acompanhou a eleição: o novo Papa devia ser expressão de uma ampla maioria. Com os 50% + 1, podia-se correr o risco, eventualmente, de uma eleição apertada, com contestação de votos e, sobretudo, com a imagem de um corpo eleitoral dividido. Ratzinger aboliu, pois, a novidade instaurada em 1996, introduzindo a obrigação, depois de 33-34 escrutínios, de as votações subseqüentes girarem apenas em torno dos dois nomes mais votados no último escrutínio: também aí, para que a eleição seja válida, são necessários os dois terços. Um modo de garantir que o Papa seja sempre a expressão de uma ampla maioria.
Onde “subsiste” a Igreja de Cristo?
O último texto, publicado no dia 10 de julho, não é um documento papal, mas uma nota do ex-Santo Ofício, aprovada por Bento XVI, que aborda de novo um assunto já várias vezes tratado, estudado e aprofundado. A única Igreja de Cristo – explica-se nele –, “comunidade visível e espiritual”, “subsiste”, isto é, continua e permanece na Igreja católica. A interpretação desse “subsiste” – que na Constituição conciliar Lumen gentium substituiu o anterior “é”, utilizado por Pio XII – deu origem a muitas interpretações, ciclicamente repropostas, apesar dos abalizados esclarecimentos contidos no texto pontifício. Algumas dessas interpretações teológicas consideram a Igreja de Cristo como algo que ainda não existe, o que aconteceria quando da reunificação das Igrejas cristãs, como um objetivo ecumênico a ser alcançado por parte das comunidades que se separaram. Em vez disso, essa “subsistência” – explica novamente a Congregação para a doutrina da fé, representa a “perene continuidade histórica e a permanência de todos os elementos instituídos por Cristo na Igreja católica, na qual concretamente se encontra a Igreja de Cristo nesta Terra”.
Por que, então, o Concílio usou o verbo “subsiste”? Tratou-se de uma expressão utilizada para sublinhar melhor que “numerosos elementos de santificação e de verdade” se encontram também fora das fileiras da Igreja católica, nas outras confissões cristãs, as quais, porém, não têm a completude dos elementos da Igreja de Cristo. Embora não havendo aí nenhuma novidade doutrinal, o esclarecimento do ex-Santo Ofício, que respondia a alguns quesitos apresentados nos últimos anos, foi recebida em meio a muitas polêmicas. Também nesse caso, porém, há uma indicação precisa da atitude de Bento XVI: o diálogo ecumênico não pode ocorrer esquecendo-se das diferenças, ou colocando-as entre parênteses, mas abordando-as de frente. Dialoga-se a partir daquilo que se é, e a Igreja católica não pode deixar de partir do que foi definido pelo Concílio Vaticano II.
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