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Passos N.86, Setembro 2007

EXPERIÊNCIA - Giussani / O encontro no monte Koya

Dom Luigi Giussani é uma parte de mim

por Shôdô Habukawa

Em 28 de junho de 1987 convidou Dom Giussani para falar a seus monges, no Japão. Vinte anos depois, o professor Habukawa, hoje hoin, isto é, supremo chefe espiritual do budismo shingon, recorda aquele primeiro abraço, as palavras de dom Giussani e a história que nasceu


Enquanto eu viver, não esquecerei aquele dia extraordinário, 28 de junho de 1987, às 13 horas, quando Dom Luigi Giussani compareceu diante de meus olhos, numa luz clara e deslumbrante, a típica luz do início do verão.

Ficamos abraçados em silêncio, por alguns instantes, sem necessidade de dizer uma palavra. A profunda emoção daquele primeiro encontro permanece inesquecível.

Após breve pausa, fomos visitar o museu Reihokan (“sala dos tesouros”), onde, dentre numerosas obras expostas, um pormenor da figura do bodhisattva Kannon, com mil braços, prendeu a atenção de Dom Giussani. Enquanto explicava o significado dos mil braços – os inumeráveis modos de libertar os seres de seus sofrimentos – percebi que Dom Giussani tinha sempre consigo uma reprodução desse bodhisattva que recebera de presente.

Na noite daquele mesmo dia, fomos à universidade de Koyasan, onde leciono, e ali nos encontramos para dialogar com o reitor de então, Takagi Shingen, o ex-reitor Matsunaga Yukei, o pesquisador Riva e o jornalista Roberto Fontolan.


Como velhos amigos

Dom Giussani conhecia muito bem os fatos históricos relativos à transmissão do ensinamento esotérico budista por parte de Kukai Kobo Daishi: o budismo Shingon Mikkyo nasceu na Índia e foi levado ao Japão de Kukai, que o tinha aprendido na China. Dom Giussani sabia também que Kukai havia fundado uma universidade pública para as artes e as ciências, há 1200 anos, aproximadamente.

No início do período Heian – por volta de 800 d.C. – a universidade era reservada para os membros da aristocracia. Kukai fundou, ao contrário, uma escola aberta, em que, além dos membros da aristocracia, todos os cidadãos recebiam uma instrução completa e uma ajuda pecuniária para sobreviver. Na visão holística de Kukai, particularmente aberta, os estudantes deveriam ler textos nacionais e estrangeiros.

No período Heian, a universidade nacional estava reservada à formação dos funcionários. Ao contrário, a escola religiosa de Kobo Daishi oferecia às pessoas comuns a possibilidade de receber uma educação.

Este foi o argumento discutido durante aquele primeiro encontro e que contribuiu para fazer crescer uma sensibilidade comum, a ponto de se ter a impressão de encontrar velhos amigos, esquecidos do tempo que passou.

Depois do retorno de Dom Giussani à Itália, em 19 de setembro chegou uma carta contendo o convite para participar do Meeting de Rimini. Dom Giussani queria dar a oportunidade de estudar diferentes culturas para ajudar na evolução pessoal e conseguir um conhecimento melhor das diferenças culturais, além de favorecer e desenvolver a amizade entre os povos. O Meeting de Rimini acontece todo ano, ao final de agosto, e é a demonstração de como essa idéia se realizou concretamente. Mais de 700.000 jovens se reúnem durante esse gigantesco encontro.

O então reitor Takagi e o ex-reitor Matsunaga da universidade de Koyasan aceitaram o convite e, no ano seguinte, 1988, durante a conferência de Rimini, recitei uma antiga poesia como metáfora de nossa troca cultural: “Quando chega a borboleta, a flor se abre; quando a flor se abre, a borboleta chega”. Usei essa citação por ocasião do encontro cultural entre o cristianismo e sua cultura e o budismo e a cultura do budismo shingon. Expressei a nossa alegria por se ter iniciado a amizade entre o povo italiano e o povo japonês.

Em 1989, foi-me pedido para que expusesse algumas idéias a respeito da educação à experiência mística na tradição do Shingon Mikkyo. O local da reunião, com capacidade para 10.000 pessoas, estava lotado de jovens e adultos transbordantes de entusiasmo.

Participamos do Meeting todos os anos até 2001. A partir de 2001, dom Ambrogio Pisoni, colaborador muito ligado a Dom Giussani, tem prosseguido o relacionamento com a universidade de Koyasan no ensino de um espírito de grande partilha e unidade.


Último encontro

Em 1999, 23 de agosto, encontrei-me com dom Giussani em sua casa, em Milão. Esse foi nosso último encontro. Três dias depois, falei novamente no Meeting de Rimini a respeito da experiência mística e da amizade.

Nesse discurso, referi-me à idéia de unidade de Dom Giussani e à idéia de experiência a ela ligada.

Todos os dias, em nosso templo em Koyasan, durante a meditação, a imagem de Dom Giussani e de padre Francesco Ricci – agora no paraíso, e com o qual tive apenas breves encontros – atravessam meu coração e nosso diálogo continua sem limite algum. As maravilhosas paisagens italianas e todos os que têm contribuído constantantemente para a nossa amizade, comparecem com alegria em minha mente. Essas imagens luminosas e resplendentes estão impressas para sempre em meu coração.

Em 23 de fevereiro de 2005 recebi, inesperadamente, de Milão, a triste notícia da morte de Dom Luigi Giussani. Desde então, tenho sempre comigo uma foto sua para orar por ele e pedir-lhe que me guie.

 


Luigi Giussani

Uma clareza de fé em diálogo com o budismo


Um trecho da conferência proferida por Dom Giussani em 27 de junho de 1987, durante a semana cultural dedicada à Itália organizada pelo Centro Cultural Internacional de Nagoya, no Japão


Sinto-me muito honrado por estar com vocês, que representam um dos maiores, mais ativos e mais gentis povos do mundo. [...]

Permitam-me também agradecer pela surpresa do coral, pois o que eles cantaram (Povera voce; nde.) é a primeira canção criada pelo movimento dos meus amigos, há mais de trinta anos; ela resume toda a paixão da nossa atividade: ajudar todos os homens que encontramos a terem positividade de vida, positividade no sentido da vida. A nossa voz canta com um porquê, a nossa vida tem um sentido.

Eu hoje gostaria de dar testemunho disso, não de fazer um discurso.

Por mais estranhas entre si que sejam as nossas origens, do ponto de vista geográfico, mas também histórico, não há distância, não há diversidade que possa criar entre nós uma estranheza total: somos todos homens.

Há entre nós uma unidade de existência humana. A expressão “existência humana” implica que temos em comum um conhecimento e um juízo, um uso, uma fruição da realidade e do mundo, mas, sobretudo, que temos um destino em comum. Assim, tomo a liberdade de não ler, mas dizer o que sinto no coração, pois estou muito comovido com a humanidade de vocês. A primeira coisa, quando olhamos para o céu, para a terra e para tudo, a primeira coisa que nos impressiona é que nenhum homem existe isolado. Não é possível conceber a existência como algo sozinho, isolado: é possível conceber uma coisa sozinha, mas não a existência de uma coisa sozinha.

Pelo pouco que sei da história cultural de vocês, parece-me que esse seja um valor muito vivo. Estou me referindo à harmonia total, à unidade entre todas as coisas graças à qual cada coisa tem a possibilidade de viver. Esse é um dos aspectos mais agudos da sensibilidade da estirpe de vocês. Como nesta poesia de Baciò. É uma sensibilidade que nós não encontramos em outros lugares: “A fragrância de uma árvore em flor desconhecida enche a minha alma”.

É impossível encontrar uma expressão tão perfeita da relação que existe entre todas as coisas, mesmo quando são desconhecidas. Mas é como se essa grande e total harmonia, essa unidade entre todas as coisas possuísse um sentido misterioso para a minha vida. Eu não sei o que todo esse mar significa para a gota que eu sou. A tradição espiritual em que eu cresci me disse que essa grande e misteriosa harmonia tem uma voz. Esse é o ponto mais importante do pensamento humano, pois a relação com essa harmonia total é o meu destino. Essa totalidade, essa harmonia tem uma voz: que voz é essa? É uma voz que é igual para mim e para um japonês, para o homem de vinte mil anos atrás e para o homem que existirá dentro de um milhão de séculos: é igual. [...]

Vendo as estrelas ou o mar, apaixonando-se por uma mulher, olhando com ternura para os filhos, procurando audaciosamente conhecer a natureza e usufruir dela, o homem de todos os tempos, de todas as raças busca a felicidade: busca aquilo que é verdadeiro, justo, belo. Nossos filósofos antigos diziam: “Busca o ser”. Não importa o que o homem veja no universo, na realidade, tudo lhe suscita o desejo da beleza, da bondade, da justiça, da felicidade. Essa é a voz que o universo, a totalidade realiza: ela se chama “coração” do homem.

Se é assim, a grande alternativa cultural e existencial é clara: ou essa voz é sem sentido, sem realidade, e o coração do homem não existe, ou tudo tem sentido para o coração do homem. A nossa voz canta por um porquê e a nossa luta, se podemos dizer assim, é para despertar e sustentar nos homens o sentido da positividade última da vida e do coração. É por essa relação última, é por esse destino último de felicidade que o homem, conscientemente ou não, vive.

[...] Perdão, mas, na minha tradição, ou seja, vindo do meu passado, chegou até a mim a notícia de que essa voz do universo, essa voz da realidade inteira, que eu disse que aparece e se faz sentir no coração do homem, se fez ela mesma um homem, de forma tal que essa Presença que é companhia do coração está aqui. Eu devo admitir, eu devo reconhecer que o fato de a totalidade, de o mistério da totalidade ter-se tornado alguém como eu, e de que me acompanhe e o coração nele se apóie, é uma coisa comovente e grandiosa. Parece-me que, como fruto da imaginação ou como hipótese, é a maior em que se possa pensar. Perdoem-me este último testemunho, mas devo dizer que não importa o caminho, desde que seja um caminho, e que o percorramos juntos com sinceridade de coração.

(traduzido por Durval Cordas)

 

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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