Com mais de sete milhões de usuários, trata-se de um dos fenômenos de massa produzidos pela rede mundial. Chama-se Second Life, e é um mundo virtual no qual se projetam (mediante pagamento) nossas vontades. Promete a satisfação de todos os desejos, mesmo (e sobretudo) aqueles que a vida cotidiana parece negar. Uma realidade produzida pela nossa mente – asseguram – onde tudo acontece como desejamos. Claro, rigorosamente dentro do espaço de uma conexão via internet. Depois, a realidade, a verdadeira, com a sua inexorável presença – embora dentro de mil limites e dificuldades – volta a invadir os olhos e os desejos do usuário.
Esse era um sonho do adolescente Philip Rosedale, hoje físico e fundador da Linden Lab, um laboratório de informática situado em São Francisco (EUA). “Para ver o mundo transformar-se de acordo com as idéias que eu tinha na cabeça”, explica ele. E assim, em 1991, começou a projetar um mundo virtual onde se pudesse realizar esse sonho de um lugar onde fosse possível fazer qualquer coisa, sem nenhuma limitação. Em 2002, o sonho se realiza e em 2003 esse novo mundo virtual é aberto ao público. Chama-se Second Life e é o fenômeno de massa mais em voga no momento. É uma realidade virtual onde, com o auxílio de um personagem com aspecto perfeitamente humano, é possível dar vida... a uma segunda vida.
“O teu mundo. A tua imaginação”. É o cativante slogan que domina a parte superior da home page do site Second Life. Baixa-se o programa e... voilà, somos catapultados para o Help Island, o ponto de partida do jogo, onde o nosso “avatar” – assim é chamado o alter ego criado segundo o gosto pessoal de cada usuário – pode aprender a administrar os próprios movimentos, conversar com outros avatares, voar, usar objetos, etc. Um jogo como outros? Pode ser. Mas com apenas cinco anos desde sua criação, com incremento relativo, sobretudo nos últimos meses, o número de usuários já passou de sete milhões de pessoas.
A realidade na mente
“Second Life é um mundo virtual concebido e criado todos os dias por seres humanos, e estes tendem a fazer as coisas de um certo modo, não importa se o mundo em que se encontram seja virtual ou real. Real é o que existe na mente. E embora possamos ser muito diferentes uns dos outros em nosso aspecto exterior, por dentro somos todos iguais, sangue, vísceras e uma montanha de sonhos. Até os sonhos são os mesmos: todos querem amor, sucesso e felicidade”. Essas palavras encontram-se na introdução do guia do Second Life, publicado recentemente na Itália. E o jogo se apresenta como possibilidade justamente nesse nível: “Este mundo permite – lê-se ainda – que nos concentremos na busca da própria felicidade pessoal. Não há necessidade de nos preocuparmos com todas aquelas questões mundanas que ocupam completamente o nosso tempo no planeta Terra; aqui somos livres para fazer o que quisermos. A única coisa que pode dificultar a busca da verdadeira felicidade é a vida real”.
É fácil começar a jogar, o acesso “base” é gratuito. Mas se a gente quiser ter sucesso é preciso investir dinheiro de verdade, oportunamente reconvertidos na moeda local, o Linden Dollar; virtual mas real, pois é cotada à base do dólar americano e sofre variações e flutuações segundo o ritmo dos mercados financeiros, internos e externos ao jogo.
Quem mais gasta...
Quanto mais dinheiro se investe, mais alto é o teor de vida nessa comunidade, e maior será o sucesso dessa segunda vida. E, então, pode-se comprar uma ilhazinha, construir uma bela casa, mudar o visual... Gasta-se dinheiro para ser alguém, para construir relacionamentos: se você não tem status, dificilmente será levado em consideração. O objetivo de tudo? Satisfazer a própria ambição e os próprios desejos, sem sair da cadeira em frente ao computador. Pode-se conhecer uma pessoa através do seu alter ego, freqüentar sua casa, pode-se... namorar, pode-se até fazer sexo virtual com ela. Sem as pessoas se verem, sem saber quem está por trás do avatar com aparência de um belo rapaz, vestido na moda, amavelmente abraçado a uma avatar loira e provocante. Esse é o amor na Second Life.
Basta isso? Absolutamente não. Navegando pelos fóruns, blogs, diários de jornalistas com dupla vida, descobrimos um mar de possibilidades. Quer uma gravidez? Três mil Linden Dollars. Parece caro? “Damos-lhe a possibilidade de escolher qual bebê quer carregar na barriga, e de engravidar mesmo sendo homem, além de um monitoramento completo durante os nove meses da gravidez”, explica a bela avatar proprietária de uma clínica virtual. Pode-se casar, pode-se divorciar: o custo é igual em ambos os casos. E se podem escrever livros, enciclopédias sobre o que é possível encontrar navegando pelas várias “sims” (como são chamadas as múltiplas regiões da Second Life); em resumo, sobre as coisas que já foram criadas: missionários, igrejas, discotecas, prostituição, pornografia, associações políticas, grupos revolucionários, jornais, academias de ginástica, grupos de alcoólicos, charity...
Nova criação?
Sim, criado, porque nessa plataforma não existe nada “a priori”, a não ser sob a forma de “prims”, tijolinhos que cada um pode elaborar, juntar e atribuir-lhes movimentos ou características, que estão na base de qualquer coisa que se encontra na Second Life: se escolho a possibilidade de uma “segunda vida”, que tem como premissa alcançar a verdadeira felicidade, ainda que virtual, é porque no fundo a realidade não me satisfaz, ainda que eu possua muitas coisas na vida real; a verdadeira novidade, então, é o fato de que eu mesmo é que crio aquilo que desejo, coisas que satisfarão meus desejos, e a nova realidade será a projeção das minhas vontades. Realidade e desejo: certamente esse é o tema central em torno do qual gira todo o jogo, e não se pode encontrar um tema mais atual do que esse.
Há poucos dias, Bento XVI sublinhava isso em Pavia, citando santo Agostinho: “Com agudo conhecimento da realidade humana, santo Agostinho evidenciou que o homem se move espontaneamente, e não por constrição, quando se relaciona com algo que o atrai e desperta o seu desejo”.
Aqui, na Second Life, a perspectiva é totalmente invertida: desaparece a experiência da realidade como dado e é o desejo que cria os objetos. E nessa dinâmica inevitavelmente somos atraídos pela prometéica possibilidade de ser onipotente, de poder criar, de ser, no fundo, como deus: “Second Life funciona como se na vida real você fosse um deus – explicam os autores do guia –. Talvez não um deus onipotente, mas um daqueles deuses mitológicos menores, que tendiam a se especializar em certos âmbitos”. Portanto, tudo é possível. Não é de admirar, então, o sucesso incrível que alcançou, inclusive no campo dos negócios que surgiram em torno dessa realidade de mentirinha.
Um mundo onde cotidianamente acontecem transações de dinheiro superiores a um milhão e meio de dólares não podia deixar de despertar a cobiça do business world. Alguns bancos verdadeiros abriram portais na Second Life, empresas criaram ilhas para aí fazer publicidade, muitos produtos são lançados primeiro na Second Life e só depois na vida real: tudo pondo em movimento negócios milionários. E a vida real do mundo começa a cruzar com a segunda vida. Políticos que compram ilhas ou que convocam entrevistas coletivas, enquanto fora do auditório grupos de avatares entram em confronto, com manifestações de protesto, empresários abrem negócios, abrem-se lojas onde se podem comprar objetos ou produtos reais, ou vice-versa, empresas reais comercializam produtos para a Second Life.
A inquietação reaparece
É de se perguntar se, de fato, tal mundo é realmente capaz de manter as promessas de felicidade e de sucesso que proclama. Como se pode encontrar satisfação num mundo que não existe? Se a realidade não satisfaz, pode satisfazer um substituto virtual dela? “Esta noite estou aqui – escreve um jogador, num fórun sobre o site italiano de Second Life –, diante desse mar eletrônico, pensando naquilo que eu esperava desta segunda vida e, provavelmente, também da primeira. Somente alguns bits além desta minha ilha, uma humanidade se agita e faz barulho, cria laços por uma noite e os destrói com a mesma velocidade. E me pergunto sobre o sentido desse rio infinito que atravessa as nossas vidas de figurinhas de papel, destinadas a se perder em seu próprio fluir. O que é essa inquietação que sinto? O que estou procurando neste mundo? Existe a poseball (possibilidade de ação dos avatares; nde) para o sentimento? Para a dúvida e a perplexidade? Ou isso só existe na Real Life?”.
É uma inquietação inevitável, é a insatisfação que ressurge inclusive na nova realidade construída para escapar da realidade verdadeira, como uma larva desconhecida que aos poucos vai comendo as pernas de uma cadeira sobre a qual estamos sentados: é a descoberta da ilusão. Ou melhor, da desilusão que nasce do sonho de querer realizar o próprio desejo através de algo que não é capaz de satisfazê-lo.
O sonho, explicou Dom Giussani a um grupo de rapazes, no início dos anos 90, “é uma imaginação, projeta no futuro algo inconsistente, que traduz um estado de espírito, uma reação. (...) Se não levar em conta as indicações da natureza, não se realizará e você ficará desiludido, isto é, jogado (desilusão vem de uma palavra latina que quer dizer ‘ser enganado’); somos nós que podemos enganar a nós mesmos; ilusão é uma outra forma da mesma palavra; somos nós mesmos que podemos iludir e desiludir, ‘enganando’ o quanto quisermos, em vez de obedecer”.
Para o homem, a ligação com a realidade é algo vital, e quanto mais essa ligação se enfraquece, mais o homem poderá ser manipulado e se iludir com a possibilidade de uma nova vida, num lugar que não existe: é a utopia. Por quanto tempo podemos sonhar? Ao despertar, quando com um clic do mouse a gente sai desse mundo virtual – é o tão temido logoff – a realidade obstinadamente volta a invadir nossa existência. Mas deve existir algo no mundo real, feito de objetos verdadeiros e de pessoas de carne e osso, mais atraente do que uma segunda vida, ao estilo da Second Life. Para não sermos jogados, no mundo dos avatares como no mundo real, é preciso uma coisa. Escreveu a respeito a mais firme lutadora do séc. XX contra a ilusão da ideologia, Hannah Arendt, que sabia tudo a respeito das ilusões do poder: “Ser fiel à realidade das coisas, para o bem e para o mal, implica um integral amor à verdade e uma total gratidão pelo fato mesmo de termos nascido”. Difícil? A alternativa, ao despertar do sonho, é a amarga desilusão: “jogados” por um jogo.
A NATUREZA E O IDEAL
Além do muro dos sonhos
Publicamos um trecho de um diálogo de Dom Giussani com jovens colegiais de CL no início da década de 1990, publicado em Realidade e juventude. O desafio (Turim, SEI, Itália, 1995)
Vendo os meus colegas, percebo que eles enfrentam a vida como se ela fosse uma idéia, um pensamento, um sonho. Eu consigo entendê-los, porque até pouco tempo eu também pensava do mesmo jeito. A experiência que estou fazendo é uma realidade e não um sonho, por mais que seja fácil cair nos sonhos e imaginar uma vida não como ela é na realidade. Eu queria saber mais sobre a diferença entre espera, esperança e sonho.
O sonho não tem fundamento nenhum. É uma imaginação. Faz um projeto para o futuro, que pode até não acontecer, uma coisa inconsistente que traduz um humor, uma reação. Já a espera, não. A espera nasce de dados, de fatores concretos. Você vai crescer, se tornar adulto e, na medida em que lhe for dado tempo, terá de fazer alguma coisa. Aproveitar as oportunidades para criar, para construir: essa é a espera vivida. Mas eu gostaria de esclarecer dois termos, opondo um ao outro: sonho e ideal. O coração é feito para o ideal. O sonho esvazia a cabeça, depois que a encheu de nuvens. O ideal é determinado pela natureza e aparece com o passar do tempo, quando seguimos a indicação que a natureza traz consigo. O ideal, antes de mais nada, é uma indicação da natureza: por exemplo, a exigência do amor ou a exigência da justiça. Você não estava errado quando fazia o que fazia por paixão pela justiça; estava errado, isso sim, quando identificava, como resposta à justiça, aquilo que você imaginava. Porque a justiça implica relações que são estabelecidas pela natureza. Não fomos nós que fizemos a nós mesmos, nós não nos fazemos; não fomos nós que construímos as exigências que urgem dentro da nossa personalidade. O que você pode fazer é construir uma determinada imagem de justiça. Se essa imagem, aquilo que você chamou sonho, não levar em consideração as indicações da natureza, não vai se realizar, e você vai ficar desiludido, ou seja, enganado. Desilusão deriva de uma palavra latina que significa “ser enganado”; somos nós mesmos que nos podemos enganar. Ilusão é outra forma da mesma palavra; somos nós mesmos que podemos nos iludir e desiludir, “enganando” o quanto quisermos em vez de obedecer.
É como se a pessoa estivesse num barco a vela, e movesse as velas na direção contrária ao que é imposto pelas leis do vento e da navegação. Quando seguimos as leis - que nada mais são que a diretriz da natureza -, o barco vai em frente. Mas, se a pessoa move as velas segundo o seu capricho - porque gosta que fiquem desse jeito -, o barco gira sobre si mesmo e pode virar e afundar.
Seguir o sonho significa, com o tempo, reduzir a cinzas tudo o que vem parar nas nossas mãos. A coisa parece bonita, quando a agarramos, mas depois se reduz a cinzas. “O bem perdido:/ um breve raio em lágrimas caído./ O que eu havia agarrado desejosa,/ na mão fechada se desfez,/ como à noite a rosa/ sob a abóbada da eternidade./ Tudo empalideceu, se calou,/ perdeu a cor e o sabor,/ (e mais aquilo que mais me agradou)”, diz uma bela poesia de O. Mazzoni.
O ideal, por sua vez, indica uma direção que não somos nós que fixamos; é a natureza que a fixa. Seguindo essa direção, mesmo com dificuldade, mesmo nadando contra as ondas - como nos lembrou o “cartaz” de Páscoa -, o ideal, com o passar do tempo, se realiza. Ele se realiza de uma maneira diferente da imaginada pela pessoa; sempre diferente, sempre mais verdadeira. Aos cinqüenta anos, olhando para trás, a pessoa diz: “Que sorte que eu fiz esse encontro! Hoje eu entendo as coisas com uma verdade que os outros não têm”. Por isso, precisamos procurar conhecer o ideal cada vez mais profundamente e não nos abandonar aos sonhos. O sonho deriva de nós mesmos e é efêmero; o tempo o reduz a cinzas. O ideal nasce da natureza de que somos feitos, nasce daquilo que nos fez, e é uma direção seguindo a qual, com o passar do tempo, torna-se cada vez mais evidente e certo aquilo a que aspiramos.
(tradução de Durval Cordas)
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EUA
O negócio desperta o apetite de Tio Sam
por Marco Bardazzi
Quando Veronica Brown começou a vender, na Second Life, vestidos feitos com o Photoshop, pensava que seria apenas um passatempo, entre uma entrega e outra; ela trabalhava como motorista de caminhão, em Indianápolis. Mas logo essa senhora de 45 anos de idade compreendeu que para os europeus que invadem cada esquina do mundo virtual (sobretudo os franceses), aquelas peças de vestuário eram uma tentação, e começaram a chover os Linden Dollars, a moeda virtual que pode ser convertida em dinheiro real. Agora, Brown largou a vida sobre quatro rodas, estacionou para sempre os caminhões e dedica todo o seu tempo a administrar um dos maiores negócios de adornos da Second Life. No final deste ano, contou ao jornal local, o Indianapolis Star, que já ganhou pelo menos 150 mil dólares.
Se os europeus em geral adoram a Second Life sobretudo pela vida social “alternativa” que oferece – ou para aventuras puramente à base de sexo –, os mais pragmáticos americanos entenderam que se trata de um outro lugar onde podem fazer negócios e ganhar dinheiro. Grandes empresas, como a IBM, e marcas rentáveis como a da NBA, já entraram na luta para conquistar o mercado on-line, enxergando a possibilidade de logo serem criados negócios volumosos como no mundo real.
Apesar de ter nascido e ser administrado nos EUA, em São Francisco, pela sociedade Linden Lab, Second Life capturou a imaginação, sobretudo dos europeus. Mas o fenômeno está crescendo também nos EUA, em especial entre pessoas que não são assim tão jovens, ou entre os que têm problemas de mobilidade (uma praga crescente num país onde a obesidade e a diabetes crescem vertiginosamente), que confessam encontrar aí um novo modo de vida social, cada vez mais difícil de acontecer na realidade, sobretudo para quem vive longe das grandes metrópoles. Mas na América do Norte o desenvolvimento da Second Life parece depender sobretudo do crescimento das possibilidades de negócios.
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