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Passos N.85, Agosto 2007

CULTURA - Literatura / Bruno Tolentino

“Tudo dói, menos a graça” – algumas notas sobre a vida e a obra de Bruno Tolentino

por Juliana P. Perez

“Lâminas, golpes agudos.” – assim termina o primeiro texto de As horas de Katharina, livro de poesias publicado por Bruno Tolentino em 1994. E assim inicia a história da monja carmelita que teria escrito o livro e que, como Santa Teresa d’Avila, se converte dentro de seu próprio convento, através de um caminho de redescoberta de si que inclui fugas, rancores, rupturas e traições até que a “andorinha” – a alma – deixe de se debater, “solitária, entre as paredes”, abandone a idéia de si mesma e se entregue a um espaço livre. “Lâminas, golpes agudos” – a história de conversão de Katharina, que sempre foi reconhecida como a história da conversão de seu criador, inicia com um Adeus, com uma experiência de abandono e dor: Katharina despede-se de seu amante e resta com “os longos vazios” (título da primeira parte do livro) até descobrir “o castelo interior” (segunda parte) e alcançar o “carmim da tarde” plena de uma leveza, de uma serenidade melancólica nascida do perdão e da inevitabilidade da morte:

“Eu apenas lhe pedira
perdão por ser como sou...
Que me tomasse na mão,
que rasgasse tira a tira
esta múmia que cansou
de arrastar um coração
agarrado a uma mentira,
a farrapos de ilusão...
Mais nada. E de supetão
senti-me levantar vôo!
Um sopro me levantou
como uma folha do chão!
[...]”
(“Leveza”, p.190)


Vai, festa da vida,
amor, sonho, ilusão,
padecimento, ida
e volta... Vai, canção,
e tu, meu coração,
minha velha ferida.
Em toda despedida
há um aceno de mão
e o meu é este rabisco.
É tudo a que me arrisco
debruçada ao balcão
para a última visita,
a última visão:
o adeus da parasita.
(“À janela”, p. 209)


[...]
Se falhei à vida,
se errei de endereço,

se compliquei tudo
sem necessidade
e fiz da saudade
o meu grito agudo,

agora me espanto
de andar tão calada,
leve como nada,
doce como o manto

da tarde lá fora.
[...]
Caem-me uma a uma
pétalas do centro
da alma, e por dentro
já se me perfuma

mesmo o pensamento!
[...]
(“Reincidências”, p. 193)

Se vale a pena citar aqui alguns versos de As horas de Katharina é porque eles continuaram na vida e na obra de Tolentino: a dor é a viga mestra de seus textos, pois somente ela possibilita a passagem da idéia ao real. Assim, embora seus livros se dividam entre os de caráter mais abstrato, cujo exemplo maior é O mundo como idéia (2002), e os de caráter narrativo, em que uma idéia principal toma corpo em uma história, como As horas de Katharina (1994), A balada do cárcere (1996) e A imitação do amanhecer (2006), eles sempre apresentarão as fases de um caminho filosófico e existencial cujo ápice são a aceitação do sacrifício e a conseqüente visão da vida ressuscitada. Por este motivo, entre todas as personagens criadas por Tolentino para representar o drama da razão que luta entre se apegar a uma idéia ou se abrir à realidade, Katharina sempre foi a preferida: nela se vêem as contradições e paixões da alma, o combate entre a ilusão e a realidade e, enfim, o encontro com Cristo como fonte de paz.

Só a dramática conversão de Katharina explica a preocupação central de O mundo como idéia: não haveria motivo para criticar a cultura ocidental dos últimos dois séculos, não haveria por que lutar contra a “Dama Idéia”, nem por que defender a abertura constante ao real, se não houvesse uma possibilidade verdadeira de encontro entre a criatura e o Criador. Neste livro, dois quadros resumem o problema central: o mundo como idéia – representado pelo quadro de Paolo Ucello, – opõe-se ao mundo como rapto – representado pelo olhar de uma jovem no quadro de Vermeer: “a doce viga mestra do fugaz,/ sustém o olhar da moça: o instante veio/ e assustou-a... Uma vespa? Algum rapaz?/ A vida, em todo caso, a vida em tudo!”.

Para Tolentino, o duro combate à Idéia, “uma perfeita construção/ sem as falhas da vida” (p. 403) só vale a pena porque no encontro com o real está a verdadeira liberdade.

Em A imitação do amanhecer, o drama se repete na figura de um amante que, por recusar aceitar a morte do amado, mumifica-o e passa a recordar sua presença. A estranha narração emoldura, na verdade, uma filosofia da História e coloca em confronto duas visões da vida e da morte: uma que “imita o amanhecer” e deseja escapar do sofrimento – como flamingos que voam na direção oposta do ocaso, refletindo o sol em suas asas avermelhadas –; outra que aceita a despedida, como o cervo da Lapônia, que curva sua cabeça majestosa à descida da noite que, naquelas regiões longínquas, durará vários meses.

Não foi por acaso que os principais livros de poesia de Bruno Tolentino trouxeram, ao mesmo tempo, polêmicas e prêmios: são obras de uma pessoa que Deus fez “partir em dois, de vez em quando” e que ousou afirmar, das mais diversas e belas formas, que “tudo dói, menos a graça”.

 


Cronologia: vida, obras e prêmios

1940 - Nasce, a 12 de novembro, no Rio de Janeiro, Bruno Lúcio de Carvalho Tolentino, filho de Heitor Jorge de Carvalho Tolentino e Odila de Souza Lima Tolentino.
1946 - Inicia os estudos no Colégio Batista, onde faria os antigos cursos primário e ginasial.
1954 - Abre conta na recém-fundada Livraria Leonardo da Vinci. O convívio contínuo com os proprietários Vanna e Andrei Duchiade influenciaria de maneira decisiva sua formação intelectual.
1957 - Escreve seu primeiro poema, uma homenagem aos 70 anos de Manuel Bandeira. Na função de revisor do “Suplemento Dominical” do Jornal do Brasil, convive com Mário Faustino e Ferreira Gullar.
1958 - Conclui o curso clássico no Colégio Anglo-Americano. Depois de ler Du Mouvement et de l’immobilité de Douve, de Yves Bonnefoy, escreve ao poeta francês.
1959 - Matricula-se na Escola de Teatro da Universidade da Bahia. Recebe a primeira carta de Yves Bonnefoy, início de uma longa correspondência que o levaria a se estabelecer na Europa.
1960 - Recebe o Prêmio “Revelação de Autor”, do Sindicato de Editores e da Câmara Brasileira do Livro, pela coletânea inédita Seteclaves, da qual irá extrair seu primeiro livro, Anulação e outros reparos.
1961 - Ganha o processo judicial referente aos textos de Seteclaves, pelos quais era acusado de plágio. Com o dinheiro recebido, compra um sítio na Estrada dos Bandeirantes, onde passa a criar galinhas.
1963 - Publica Anulação e outros reparos.
1964 - Com o golpe militar no Brasil, parte para Europa. Desembarca em Cardiff, no País de Gales. Elizabeth Bishop – poetisa americana a quem conhecera no Rio, nos anos 50 – apresenta-o ao poeta inglês Wystan Hugh Auden, marcando o início de sua amizade com o autor de The Age of Anxiety. Conhece o poeta italiano Giuseppe Ungaretti.
1965 - Ao lado de João Guimarães Rosa, Murilo Mendes e Antonio Candido (seu primo), integra a delegação brasileira enviada ao congresso Nuovo Mondo Columbianum, realizado em Gênova, na Itália.
1966 - Gradua-se como tradutor-intérprete na École Interprète de Genebra. Passa a fazer parte dos quadros da prestigiosa AIT (Agence Internationale dês Traducteurs), antigo departamento da Liga das Nações. Na condição de intérprete estagiário, participa da Conferência Interparlamentar de Teerã e vai a Tóquio, Bang-coc e Hong Kong. De volta a Bruxelas, é efetivado no cargo de tradutor-intérprete junto ao Mercado Comum Europeu. Nasce, em Varsóvia, Witold Andjei, seu filho com a polonesa Danuta Klossowska.
1968 - Fixa residência em Londres. Passa a lecionar na Faculdade de Artes da Universidade de Bristol.
1970 - Nasce, em Londres, seu segundo filho, Phillip John Murray, de mãe inglesa. Casa-se na Igreja Anglicana de Battersea com a brasileira Márcia Martins de Brito.
1971 - Sai em Paris Le Vrais le vain. Pára de produzir poemas em português. Na qualidade de visiting professor, dá aulas na Universidade de Essex.
1972 - A convite de W. H. Auden assume as funções de deputy director da Oxford Poetry Now (OPN), a editora de poesia contemporânea da Universidade de Oxford.
1973 - Com a morte súbita de Auden, vê-se regimentalmente obrigado a assumir a direção de Oxford Poetry Now; transfere-se, então, de Londres para Oxford. Depois de renunciar ao cargo, seria eleito para um mandato oficial de cinco anos como novo executive director da OPN.
1975 - Na condição de membro da delegação de Oxford, realiza sua primeira viagem aos Estados Unidos, a fim de participar, na Casa Branca, em Washington, da Garden Party do então presidente Gerald Ford, referente às comemorações da data nacional americana, o 4 de julho.
1979 - Lança, pela OPN, About the hunt. É reeleito para o cargo que exercia na editora e por esse motivo renuncia às suas funções na Universidade de Bristol. Volta a escrever em português, decidido a não mais produzir em línguas estrangeiras.
1980 - Com a iminência do golpe do general Jaruzelski na Polônia, reivindica a guarda do filho – e Witold Andjei passa a viver em sua companhia na cidade de Oxford.
1982 - Divorcia-se de Márcia Martins de Brito.
1984 - Renuncia ao cargo de executive director da OPN e prepara seu retorno ao Rio de Janeiro.
1985 - Chega ao Brasil.
1986 - Nasce, em Oxford, Raphaël Phillippe Bruno, seu filho com Martine Pappalardo, professora de Literatura Francesa. Retorna à Inglaterra.
1987 - Acusado de tráfico de drogas, é preso e condenado a 11 anos de prisão. Durante 22 meses cumpriria a sentença em Dartmoor; ao final desse período, a pena seria suspensa.
1991 - Muda-se para Marselha, na França.
1992 - Termina A balada do cárcere.
1993 - Desembarca com a família no Rio de Janeiro.
1994 - Publica As horas de Katharina.
1995 - Recebe, da Câmara Brasileira do Livro, o Prêmio Jabuti de Poesia. Sai Os deuses de hoje.
1996 - Lança Os sapos de ontem e A balada do cárcere (Prêmio Cruz e Souza de Poesia, outorgado pela Fundação Catarinense de Cultura). Operado para a remoção de um tumor, constata-se a presença do vírus HIV. Inicia o tratamento; dada sua recuperação – lenta porém contínua – decide permanecer no Brasil.
1997 - Viaja a Recife para dar a aula magna da Fundação Joaquim Nabuco. Recebe, da Academia Brasileira de Letras, o Prêmio Abgar Renault. A convite da Universidade de São Leopoldo (RS), participa de um congresso de juristas, no qual o tema seria A balada do cárcere.
1998 - Sai a “edição definitiva” de Anulação e outros reparos. Transfere-se para São Paulo, a fim de assumir a função de editor nas revistas República e Bravo!
1999 - Deixa o trabalho e retorna à Europa. Volta a escrever em inglês, dando início à composição de The Years the Locust Hath Eaten.
2000 - Pronuncia a aula magna do Instituto de Estudos Superiores da Faculdade de Direito de Santo Ângelo (RS). Assina contrato de exclusividade com a Editora Globo.
[Até aqui, extraído de O escritor por ele mesmo. Bruno Tolentino. São Paulo: Instituto Moreira Salles, sd. p. 15-18]

2000 - Bruno é procurado por alguns membros do Movimento Comunhão e Libertação (CL) para colaborar na fundação do Núcleo Fé e Cultura de São Paulo. Manifesta o desejo de conhecer melhor esta iniciativa e a experiência que a sustenta. Conhece, assim, padre Vando Valentini e outros membros de CL, com os quais inicia uma grande amizade. Passa a viver na casa paroquial da Capela da PUC, hospedado por padre Vando.
2001 - Bruno se transfere para Caeté - MG, onde passa a ser hospedado na casa paroquial do Santuário da Serra da Piedade, junto com padre Virgilio Resi, responsável nacional do Movimento Comunhão e Libertação no Brasil.
2002 - Volta a viver em São Paulo. Publica O mundo como idéia.
2003 - Recebe o Prêmio Jabuti de Poesia.
2004 - Participa da 25ª. edição do Meeting de Rímini, na Itália. Participa da sessão de encerramento do Meeting, apresentando o livro Una presenza che cambia, de Luigi Giussani, para 10 mil pessoas. Conhece pessoalmente Dom Giussani, fundador de Comunhão e Libertação.
2006 - Vive por um período em Salvador. Publica A imitação do amanhecer.
2007 - É indicado como finalista para o Prêmio Jabuti de Poesia. Concorre ao Prêmio Portugal Telecom de Literatura.
27 de junho de 2007 - Falece em São Paulo, por falência múltipla de órgãos.

 


Olhar nos olhos

Trechos da palestra de Bruno Tolentino sobre o livro Una presenza che cambia (Uma presença que muda), de Luigi Giussani, no Meeting de Rímini de 2004

“Outro dia eu pensava, justo eu, pequenininho, tendo chegado a este momento, e como poeta (que, sendo um poeta cristão, não sirvo para nada duplamente, porém tenho duas vezes a mesma função) eu pensava: ‘Qual seria a função do poeta na apresentação de um livro como este aqui [Una presenza che cambia, de Luigi Giussani; nde]? Um poeta pode dizer isto – e talvez só um poeta possa dizê-lo – que um livro como este prova que o cristianismo é uma comunicação. Não o comunicar-se de alguma coisa, mas da totalidade do ser, e essa totalidade do ser não pode estar senão numa pessoa viva, ali, em uma presença: é um olhar, dois olhos que encontram dois olhos, que o questionam, e o esforço para responder a esse questionamento. Aí está o Mistério de Deus, do cristianismo, que não é uma religião, uma filosofia ou um modo de ser. Uma filosofia pode pretender menos, mas não o cristianismo: o cristianismo é o presente que Cristo deu à carne, isto é, se fez dom, se fez carne, para vir ao nosso encontro. Tudo, está tudo aí, nesse comunicar-se fisicamente. E não podemos deixar-nos substituir por uma teoria: o mundo como conceito não pode tomar lugar dAquele que morreu na cruz por nós, depois de ter nascido no seio de uma mulher, de uma moça que não era ninguém. Por isso entendi que o Movimento [Comunhão e Libertação] não é nada se não for um método; o movimento é um método, não uma filosofia, menos ainda uma magia. Não, o movimento é um modo de nos colocarmos em relação, de encontrarmos Jesus. Porque – diz Giussani (e vocês cairão na risada quando lerem isso) – Jesus não é, antes de tudo, a verdade, Jesus é o caminho para a verdade. Giussani diz algo assim [em um encontro, nde.] e aquelas pessoas ficam realmente “horrorizadas”: “Como não é a verdade?” “Não, não, Jesus é o método que Deus encontrou para se fazer conhecer, é o Caminho, a Verdade e a Vida, nessa ordem”. Para nós é, antes de tudo, o Caminho e, assim, nós, tudo aquilo que fazemos, é um modo de manifestar essa Verdade que nos leva à Vida. [...] Há coisas magníficas neste livro, que vocês não encontram nem na mais brilhante teologia. Por exemplo, quando nos faz pensar que Pascal intuiu que o Batismo não muda somente o estado do ser, mas a natureza do ser: não é que eu sou melhor ou um pouco melhor; não, eu sou diferente, sou uma pessoa diferente depois do Batismo. Este livro nos faz entrar, a cada duas ou três páginas, no apelo do sobrenatural, isto é, ele nos chama a viver o cristianismo como algo que acontece continuamente, num outro nível, diferente daquele no qual vivemos ou escolhemos viver normalmente. O cristianismo nos faz viver normalmente o bío e a zoe dos gregos, porque vivemos sempre com o dom desta graça que nos faz ser mais que um mero processo biológico, embora eu tenha que lembrar o que são Boaventura dizia da criatura: o seu presente estado terreno seria uma primeira, uma cópia ruim do ser. Isso significa que ainda há muito que fazer. Porém, nós não conseguimos, não podemos nos transformar em nova criatura – é Deus quem a faz No máximo, poderíamos ser uma cópia menos feia, mas mais que isso não. Isso nos faz depender constantemente de Deus, para que Ele complete sua obra, e isso nos eleva juntos a um nível em que não podemos prescindir de ninguém.

Todos sabemos que Deus quer ser amado acima de todas as coisas e, como se não bastasse, nos diz para amar ao próximo como a nós mesmos – o que parece ainda mais difícil. Todos sabemos que o próximo, quanto mais distante estiver, melhor!; por isso, ninguém consegue de fato confiar na capacidade de amor ao próximo. Mas no método de se colocar constantemente em atitude de acolhimento, em uma relação de acolhimento, está o carisma do Movimento. É nessa “coisinha de nada” que Giussani apóia todo o Movimento, ou seja, em acolher o outro, estar ali, olhá-lo e se relacionar com ele, sem tentar convencê-lo de nada (pois as pessoas não querem ser imediatamente convencidas de nada, já têm convicções demais). Baseado nesta pequena coisa ele ergueu o Movimento e é curioso, pois o livro causa este efeito: depois de meia hora de leitura, uma horinha de leitura, antes de dormir ou caminhando pela rua, esperando o ônibus, percebemos que temos ali, constantemente, um exercício de ser, que estamos aprendendo, re-aprendendo a pensar no que fazemos. E aprendemos realmente juntos: se tudo está no olhar de acolhimento, então devemos nos olhar nos olhos, devemos poder nos olhar nos olhos uns dos outros. Não temos nada a esconder, podemos realmente fazê-lo: não queremos manipular, não queremos instrumentalizar os outros, portanto, podemos nos olhar nos olhos.

Hoje, na coletiva de imprensa, um jornalista me perguntou quem enfim tinha razão, do meu ponto de vista: Sartre, quando dizia que “o inferno são os outros”, ou Giussani, com tudo o que nos faz saber. Eu respondi que Giussani não nos faz saber nada, nos leva a dar atenção ao outro. O outro será sempre um inferno se quisermos instrumentalizá-lo, talvez até pensando no bem dele. Até quem mata está pensando no bem de alguém – aliás, aprendemos que esta é a fórmula mais segura de matar milhares e milhares de pessoas; um mundo melhor nos ajuda muito a assassinar um monte de pessoas. De qualquer modo, as coisas dependem desse olhar, de olhar um nos olhos do outro, [...] pois é por isso que Cristo veio pessoalmente: se fosse para outra coisa, teria nos mandado um e-mail!

Penso que o método – esta coisa simplicíssima que Giussani apenas plagiou do Senhor: vir pessoalmente e nos olhar de frente –, esta insistência coloca-o em contraste não só com os profetas do nada, os Sartre, os Baudelaire, os Proust, os Beckett, mas também com Kierkgaard ou outros pensadores cristãos, porque Kierkgaard diz, falando do olhar vazio das estátuas gregas: “Será que a Grécia entendeu mal, não entendeu o instante, e por isso as suas estátuas nunca olham nada de preciso?” Não é que a Grécia entendeu mal o instante, porque é no instante que se encontra o Ser, o Mistério; o Ser se dá aí. Enquanto o observo, sou visto, nesse momento o instante e o Ser são inseparáveis – portanto, não é importante se a Grécia compreendeu o instante ou não, mas que ela não viu o homem. Com tudo o que sabemos do homem, com toda essa maravilha, os tesouros que os gregos nos deixaram, não souberam ver a pessoa, isto é, esta coisa que morre, que verdadeiramente tem necessidades, que não pode existir senão a partir de uma troca de olhares.

Falta-nos dizer apenas, com Giussani, que não podemos viver, que não podemos nos contentar com menos do que viver a dimensão sobrenatural da fé. O método é muito simples: olhar nos olhos uns dos outros, estar com os outros, acolher. Mas não podemos estar juntos só por estar, é preciso fazê-lo porque há uma Presença que muda tudo. A Presença que fez isso primeiro, que veio, que não tinha nenhuma necessidade de fazê-lo, mas veio para nos olhar de frente. Também terá olhado nos olhos de Judas, quando disse: “Trais o Filho do Homem com um beijo?”. Judas poderia ter sido completamente ignorado, Jesus poderia não olhar nos olhos dele naquele momento, e assim com todos os outros. Quando Pilatos lhe pergunta: “O que é a verdade?”, Jesus não diz nada, porém certamente olha nos seus olhos, e Pilatos, sem dúvida, compreendeu muito bem que fez uma pergunta idiota.

Termino com algo que me parece importantíssimo, entre tantas outras coisas importantes dessas trezentas páginas. Giussani nos fala da natureza da corrupção e relaciona a palavra corrupção à raiz corruo, às coisas que caem aos pedaços – ele diz que o corpo de um morto é algo que se desfaz, os membros se separam, não têm mais unidade, e nos diz que isso começa muito antes. Eis o trecho: “Por esse impasse passam as mães com os seus filhos, pois têm vergonha de lhes dizer, a uma certa idade: ‘Vá à Igreja, faça uma oração’. Têm vergonha. E depois, quando assistem ao décimo filme, concordam com o filme! Não há mais nenhuma lembrança que se contraponha positivamente à corrupção de todas as coisas. Pois a palavra corrupção pode ter um significado, mas me parece que corrupção pode ter derivado não só de corrumpo (corromper), mas também de corruo: os pedaços de uma pessoa que vão uns para cá, outros para lá. De fato, a corrupção de um morto significa que ele se desfaz em pedaços, as coisas se separam umas das outras.” (p.119).

Esta é a tragédia do mundo moderno, que se desfaz: as coisas não têm mais sentido e não têm mais sentido porque não estão unidas. E o movimento é um apelo a nos movermos continuamente, a não pararmos nunca, a estarmos sempre a caminho de um horizonte que nunca alcançaremos, mas que sempre nos chama. Isso nos leva sempre um ao outro; não percorremos o caminho sozinhos, mas – curiosamente – um rumo ao outro, olhos nos olhos – pois do contrário não teremos o antídoto contra o veneno moderno, que é exatamente este despedaçamento. Não podemos desistir, devemos estar sempre atentos à unidade que nos mantém juntos, juntos no nome de Cristo, dessa Presença que muda tudo e nos faz caminhar sempre adiante, adiante: não é preciso alcançar o horizonte, não precisamos nos preocupar com isso: Ele virá ao nosso encontro.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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